Apenas um gigante solitário e boboca
Para muita gente boa, o símbolo do Brasil deveria ser um abacaxi. Sim, um imenso abacaxi. Não, a escolha não nasce da localização tropical. Também não surge do fato, digamos, inusitado, do país ter sido império, com direito a coroa e manto, quando proclamou a independência sob os trinados franceses recentes da guilhotina, uma arma apaixonada por pescoços de sangue azul.
Ah, esqueça o fato de o imperador escolhido ter sido o provável futuro rei da metrópole – tampouco o aludido abacaxi nasce desta espécie de erro de pessoa. Pois o monarca, escolhido para um cargo vitalício, não chegou a ficar uma dezena de anos no trono. Abdicou a favor do filho, um órfão menor de idade, e se mandou – admirável, não?
Contudo, a qualificação não nasce de nada disto, mas sim, antes, do conjunto da obra. Olhem bem para um abacaxi – agora está chegando a temporada do mel de Marataízes – e pensem bem se os tais donos do verbo estão certos ou não na sua escolha. Abacaxi é bom e espinhento.
O Brasil é áspero, pode chegar a ser cortante, ferino como a casca do abacaxi. Morre de veleidades monárquicas e reais – aqui, não faltam reis e rainhas por toda a parte, coroados com a mesma imponência das tais frutas. Mas, surpresa, as coroas concedidas com tanto gosto são, afinal, pura decoração. Não servem para nada. O miolo, no entanto, é mole e doce, se desmancha à toa, sob qualquer pressão, se desfaz.
Fala-se muito na índole pacífica do povo brasileiro, mole feito miolo de abacaxi. Bom, talvez esta narrativa esconda um outro lado, rascante como casca de abacaxi, difícil de analisar… Para o poder destas terras, amigo íntimo da escravidão por longuíssimo tempo, oficialmente do século XVI ao século XIX, ainda é muito difícil enunciar a face e a identidade do povo.
Talvez tal situação tão patética imponha uma necessidade objetiva ao teatro: lidar com o reconhecimento da identidade do poder. Sim, do poder. Como ele se formou, como se estrutura, quais os seus componentes, como funciona? Quais são as engrenagens existenciais desta gente, capaz de conviver por séculos e séculos com um estado de miséria tão consolidado sem buscar formular caminhos sociais de transformação?
Existe um teatro engajado preocupado em radiografar a miséria e a fome desde a década de 1950. Não tenho números, mas talvez, tanto em termos absolutos como relativos, a miséria nacional, neste mais de meio século, só tenha feito crescer. Qual terá sido o sentido desta arte engajada que mostrou a miséria para os que já a conhecem? Ao mesmo tempo, os teatros foram entrando em eclipse e talvez, se a arte do palco acabasse hoje, no Brasil, talvez o conjunto da sociedade sequer notasse.
Difícil afirmar a relevância histórica do palco para a nação. No final do século XIX, uma época considerada pelos historiadores como um tempo de paixão fervilhante do brasileiro pela cena, um olhar de relance às páginas de anúncios dos jornais revela a insistência dos produtores e da classe numa retórica retumbante para atrair o público. Os anunciantes usam tons exclamativos e bombásticos, juram estar às voltas com sucessos de-mo-li-do-res.
Contudo, qualquer circo de cavalinhos enlouquecia as plateias e permitia que teatros tão imponentes como o S. Pedro (depois, João Caetano) fosse devastado para tornar viável a apresentação de cavalos e atletas. Destaque-se: os tais circos de cavalinhos não eram apresentações de circo…
A pergunta necessária, neste jogo da sensibilidade, parece simples. Qual o projeto da sociedade brasileira? Existe uma forma, uma força estruturante, um motor humano identificável com este aglomerado de gente? Se no caso norte-americano se pode jogar o foco sobre o individualismo e os temas relacionados à história do indivíduo parecem cruciais para a identidade do teatro norte-americano e da Broadway, qual a tessitura humana fundamental a considerar por aqui?
Importamos os valores europeus, em particular as questões definidoras do teatro francês, profundamente ligadas ao exame da relação entre pessoa e sociedade, mas qual a relação sensível tecida com estes debates? Fomos sempre franceses de cristaleira, pura ostentação para as visitas?
O motivo para descobrir o abacaxi e enveredar por tantas perguntas? Ora, muito simples – caminhamos para o fim do ano do bicentenário da independência do país com modestíssimas comemorações. Parece até que nos envergonhamos de ser livres ou – sabe-se lá – talvez não saibamos bem a nossa liberdade. Saber, aqui, nos dois sentidos, conhecer e sentir o gosto…
Teria sido ainda o ano do centenário do maior dramaturgo gerado pelo teatro moderno – Jorge Andrade. E São Paulo, uma terra definitivamente iluminada por sua obra, ficou sob constrangedor silêncio. Foi o centenário de dois pilares da cena brasileira mais poética – Paulo Autran e Tonia Carrero. Receberam homenagens discretas, inadequadas à grandeza do casal. E tais casos, pontuais, figuram aqui como exemplos rápidos, no fundo apenas demonstrações da fraqueza histórica do palco nacional. Um palco sem história é um palco morto.
Para pensar este vazio enorme que nos sufoca, parece urgente começar a tentar pensar a independência – o que foi a independência? Acredito na necessidade de um trabalho denso, um projeto minucioso. No meu entender, a Independência do Brasil foi proclamada por D. Leopoldina da Áustria (1797-1826). Sim, também me filio ao partido propenso a defender a ideia de que ela foi morta pelo marido. E aguardo com ansiedade pesquisas e estudos inclinados a demonstrar o cotidiano da arte do palco em tais tempos – mas estes dois temas são auxiliares, escapam do corpo principal.
O mais importante no fim das contas é definir a história do poder no país – a junção das ideias antagônicas rígidas de escravidão e nobreza teria gerado uma compreensão social profunda do poder como prática autoritária; para proteger esta estrutura genocida de sensibilidades, teria sido necessário fazer da cultura um bem superficial, descartável ou déjà vu?
O debate pode ser cênico, claro – ao vivo e a cores. A estrutura do tema, isto é, o esforço para definir a engrenagem histórica do poder e pensar ao mesmo tempo a força social da arte, nunca esteve longe dos grandes textos teatrais. Os dramaturgos de alta estirpe lidam com o debate sempre, em algum grau.
E não é outro o caso do excelente texto Neva, do chileno Guillermo Calderón, infelizmente ainda pouco conhecido por aqui. Para a felicidade geral da plateia carioca (e, logo, claro, da nação), o grupo Armazém decidiu encenar uma versão do texto, sob a direção de Paulo de Moraes, para comemorar os 35 anos de formação do coletivo.
A festa ecoa grandiosa por causa das dimensões históricas envolvidas. O Chile se tornou independente um pouco antes do Brasil, sob um ritmo de guerra acirrado contra os espanhóis e, logo, sob múltiplas variantes políticas, contra o Peru e a Bolívia. Trata-se de uma terra na qual a construção do patriotismo e a estruturação do exército se deram sob um tom bastante intenso. E precoce.
Pois a peça focaliza, no seu pano de fundo, este tema – qual a possibilidade de mobilização decidida do sujeito (e da arte) em favor da saúde social? No texto de 2005, o autor retrata as tensões dentro de um teatro, o de São Petersburgo, na Rússia, no dia 9 de janeiro de 1905, o Domingo Sangrento. Na ocasião, a Guarda Imperial massacrou manifestantes pacíficos, integrantes de uma marcha para pedir ao Czar condições de trabalho mais humanas. No interior do teatro, atores que iriam se encontrar para encenar O Jardim das Cerejeiras, se abrigam da fuzilaria e acabam por discutir as razões e os sentidos de sua arte.
Não são quaisquer atores, vale frisar. Lá está a alemã Olga Knipper (Patrícia Selonk), um nome histórico absoluto, primeira atriz do Teatro de Arte de Moscou e viúva de Tchekhov. Contida pelo luto, pois o marido morreu há seis meses, Olga incita Masha (Isabel Pacheco) e Aleko (Felipe Bustamante) a representar com ela, repetidas vezes, a morte de Tchekhov, enquanto o mundo desaba lá fora.
A sedução emanada pelo texto chileno nasce desta delicada trama, capaz de aproximar a poesia, os artifícios da linguagem da arte e a sintonia com o jogo social fervente, sob uma sutil camada de humor. Um redemoinho de perguntas a respeito do significado da arte enovela a sala. Quer dizer, é teatro em estado puro, mais inebriante do que licor de abacaxi. Imperdível.
Um detalhe muito importante marca a nova montagem da Armazém, uma companhia a um só tempo densa e longeva – a produção foi erguida a partir do esforço coletivo, sem nenhum patrocínio. Graças a uma campanha nas redes sociais, constituiu-se o capital necessário para viabilizar o projeto. Ou seja: a equipe conseguiu mobilizar o universo social a seu favor, movimentou o poder do teatro na sociedade.
O desejo de pensar o poder no Brasil – e neste caso a busca mergulhou decidida nas lides da Independência – aflora como tema central de Pedro I, trabalho em cartaz desde meados do ano, agora em temporada na Casa de Cultura Laura Alvim, no Espaço Rogério Cardoso.
A proposta tem um desenho curioso e, para quem cogita sinceramente pensar o Brasil, interessa muito. A partir de um motivo contemporâneo, um desejo do imperador desencarnado de voltar a reinar através do corpo do ator, D. Pedro I se instala em cena. O desafio para o intérprete nasce da necessidade de materializar o papel duplo, ao fim e ao cabo reduzido ao perfil do soberano.
O texto, escrito na sala de ensaio e trabalhado por um coletivo de criação, busca desvendar não apenas a personalidade explosiva do monarca, mas o desenho da época e os efeitos sociais e históricos dos seus gestos e escolhas. Uma pergunta flamejante nasce do jogo e flerta com a consciência histórica: quais as tramas vigentes ainda hoje que foram tecidas ali?
O monólogo desafia a arte do jovem ator João Campany exatamente a partir deste contorno – o D. Pedro I da cena não se reduz a si, funciona, antes, num sentido amplo, uma incômoda indagação sobre o que nós deixamos fazer de nós. Nada na dualidade sofisticada se tornará desafio perdido, pois a direção coube aos artifícios de Daniel Herz.
Em suma, são espetáculos que as secretarias de educação deveriam escalar para as rotinas obrigatórias das escolas, caso se dispusessem a implementar autênticas políticas de formação da cidadania. Caso se inclinassem a mudar os rumos cristalizados do poder e formulassem políticas culturais consistentes. O caminho não se revela nem politiqueiro, nem demagógico; seria portanto, desinteressante para políticos convencionais – os nossos tradicionais plantadores de abacaxi, interessados apenas na preservação do gigante solitário, adormecido no seu leito esplêndido, sob a sua coroa inútil, e, definitivamente, boboca.
Ficha técnica
Texto de Guillermo Calderón
Montagem da Armazém Companhia de Teatro
Direção: Paulo de Moraes
Tradução: Celso Curi
Elenco: Patrícia Selonk (Olga Knipper), Isabel Pacheco (Masha) e Felipe Bustamante (Aleko)
Interlocução Artística: Jopa Moraes
Iluminação: Maneco Quinderé
Música: Ricco Viana
Figurinos: Carol Lobato
Instalação Cênica: Paulo de Moraes
Maquete ‘Teatro de Arte de Moscou’: Carla Berri
Mecânica da Maquete: Marco Souza
Design Gráfico e Vídeos: Jopa Moraes
Fotografias: Mauro Kury
Preparação Corporal: Patrícia Selonk e Ana Lima
Técnico de Montagem: Djavan Costa
Assistente de Produção: William Souza
Produção: Armazém Companhia de Teatro
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Serviço
NEVA
Local: Fundição Progresso – Espaço Armazém
Rua dos Arcos, 24, Lapa, Rio de Janeiro
Estreia dia 11 de novembro de 2022, sexta-feira, às 20h.
Temporada: 11 de novembro a 18 de dezembro, sextas e sábados, às 20h e domingos, às 19h. (Não haverá apresentação nas semanas de 2 a 4 de dezembro e de 9 a 11 de dezembro)
Venda na bilheteria do Espaço Armazém (uma hora antes das apresentações) ou pelo site www.sympla.com.br/armazemciadeteatro
Meia-entrada: Estudantes, idosos, menores de 21 anos, pessoas com deficiência, professores, profissionais da rede pública municipal de ensino e classe artística, apresentando identificação.
Capacidade de público: 107 lugares
Ingresso: R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia-entrada)
Classificação: 14 anos
Duração: 80 minutos
Drama
FICHA TÉCNICA:
Texto: Daniel Herz, João Campany e Roberta Brisson
Direção: Daniel Herz
Atuação: João Campany
Cenário e figurinos: A Cecília Cabral
Iluminação: Aurélio de Simoni
Trilha sonora original: Pedro Nêgo
Consultoria histórica: Flávia Campany
Assistente de direção: Roberta Brisson
Fotografia: Patrick Gomes
Assessoria de Imprensa: Racca Comunicação (Rachel Almeida)
Produção executiva: João Campany e Eduarda Magluta
Assistência de produção: Daniel Paz
Direção de produção: Alina Lyra
Idealização: João Campany
Realização: Midiática e Alina Lyra Produz
SERVIÇO:
Pedro I
Temporada: De 04 a 27 de novembro de 2022
Casa de Cultura Laura Alvim/Espaço Rogério Cardoso: Av. Vieira Souto, 176 – Ipanema, Rio de Janeiro – RJ
Telefone: (21) 2332-2016
Dias e horários: Sextas e sábados, às 19h, e domingos, às 18h.
Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia-entrada). Vendas na bilheteria e no site
https://funarj.eleventickets.com/#!/home
Lotação: 40 lugares.
Duração: 60 minutos
Classificação: 12 anos