Carnavais teatrais
Carnaval, desengano? A dor fica em casa, esperando? Melhor esquecer? A alegria é fingida, um disfarce, uma forma de esconder a verdadeira condição da vida? Será? Difícil separar brasileiro de carnaval. Uma velha paixão une o par. Quando a festa chega, o brasileiro se ajoelha e entrega a alma. A vida para.
Convenhamos, isto não é normal, mesmo se acharmos que normalidade é uma abstração absurda, descabida. Talvez ainda não tenhamos pensado profundamente todos os mistérios contidos nestes ritos sociais tão cultuados pelos brasileiros. Seria o carnaval a grande arte nativa do país?
Um professor querido, Antônio Martins, grande especialista na vida e na obra de Artur Azevedo (1855-1908), costumava afirmar nas suas aulas que AA não gostava de carnaval. A possibilidade dá o que pensar. Como assim, o inventor da alma carioca, supremo mestre do riso e do humor brasileiros, não gostava de carnaval?
Para a coluna, na beira da festa, fui procurar textos do homem de teatro para ver se encontrava algo forte. O resultado, depois da pesquisa rápida, foi zero: não apareceu nenhum texto do célebre autor desancando com o carnaval. Vale continuar a busca, claro. AA era um espírito conciliador, não iria atacar a festa de frente. Os poucos textos que encontrei, entre as croniquetas reunidas por Tatiana Siciliano e Olga Bom num livro que é leitura obrigatória para quem ama teatro, insinuam o desgosto, sem desenvolver o tema. Um ponto claro de desagrado era o entrudo.
Passei, então, um pente fino nos jornais, para tentar obter uma visão a respeito da densidade histórica do carnaval na vida carioca e algo de sua repercussão no teatro. Fiz uma escolha estratégica: como terá sido o carnaval de 1890, o carnaval depois da Proclamação da República, no qual, em tese, o país mudou de repente? Como aconteceu a folia nas ruas depois que o Império desabou?
Escolhi um jornal forte – para a política, para o teatro e para as lides sociais – o sempre interessante O Paiz. Assim mesmo, com z. Ler o periódico é tarefa fácil, basta recorrer à Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Aviso aos navegantes: a Hemeroteca, como os frequentadores habituais gostam de chamar, é uma delícia. E atenção: se não for manejada com delicadeza, pode viciar.
Pois a leitura foi inspiradora. A partir de comentários de Artur Azevedo pinçados no livro citado, uma constatação importante surge de saída: o teatro brasileiro mudou o carnaval brasileiro. No início, a coisa se configurava como uma espécie de caos, um desacerto. O teatro era um festejo de corte bem instável, cultivado por D. João e logo por seu filho imperador, enquanto o carnaval sacudia os ânimos nas ruas sob a violência do entrudo português.
Sim, o carnaval já foi, basicamente, uma brincadeira de rua bastante grosseira, na qual as pessoas, surpresas, levavam em cheio baldes de água, nem sempre limpa, laranjinhas ou limões de cheiro (neste caso, podiam ser recheadas com água perfumada – ou não) e outras substâncias polêmicas. As bisnagas (avó do lança-perfume) tinham a mesma utilidade. E havia o polvilho. O objetivo era emporcalhar o outro. A coisa agradava tanto que, apesar do combate pela polícia e pelos espíritos cultivados, atravessou todo o século XIX.
Artur Azevedo se refere à necessidade de banir o entrudo, civilizar o carnaval. Em boa parte o teatro fez isto, contaminou a festa com formas de diversão menos hostis, menos agressivas. Se a aclamada atriz Estela Sezefreda (1810-1874) chegou a ser presa na juventude por ousar atirar um limão de cheiro contra o imperador D. Pedro I, as atrizes do fim do século atingiram outro perfil: animavam bailes, inspiravam fantasias e difundiam canções alegres. Os ritmos saltitavam dos tablados para os salões.
Pois um dos inimigos fatais do entrudo, mais perigoso do que a polícia, foi o baile de carnaval, público e privado. Até onde se sabe, o primeiro baile de máscaras do nosso carnaval aconteceu no dia 20 de janeiro de 1840, realizado no Hotel d’Itália, no Largo do Rocio (Praça Tiradentes atual). Foi um sucesso. Logo a festa ganharia os teatros, num movimento crescente de adesão do palco à folia.
A partir da década de 1850, começaram a surgir as grandes sociedades, um tipo de lugar de sociabilidade bastante impregnado pela teatralidade e bem pouco estudado até hoje. Neste caso, a aproximação com a cena se tornou fortíssima, muitos cenógrafos colaboraram com as associações, pois elas faziam apresentações nas ruas, cortejos, quer dizer, desfiles, e se tornaram as precursoras das escolas de samba.
Um campo de estudo ainda por avaliar, contudo, parece desafiador: a presença ou a influência do carnaval na cena. Claro, ela aparece na trajetória do ator Vasques (1839-1892), responsável por levar para o palco a figura do Zé Pereira (inclusive a concepção da música ainda hoje famosa). A influência sem dúvida desponta nítida em alguns pontos, como o teatro de revista. Aracy Cortes (1904 -1985), criadora da bahiana no teatro, teria levado para o palco revisteiro, no Teatro Recreio, os primeiros ritmistas de escola de samba.
Contudo, ao lado das referências pontuais, ao lado de alguns textos impactantes, como o Forrobodó, de Bettencourt e Peixoto, parece que não existiu uma impregnação decidida do palco pelo carnaval. Já o sentido inverso aparece claro – e não se resume a um possível impacto “civilizatório” em prol dos bons costumes contra o entrudo.
Um olhar mesmo rápido para a programação das “sociedades” – Democráticos, Feninianos, Tenentes do Diabo – revela a adoção de procedimentos de nítida origem teatral. As rotinas de funcionamento das sociedades supõem a existência de personagens curiosos dotados de funções dramáticas, nos bailes acontecem rituais liderados por tais figuras e existe mesmo um modo de falar “ficcional” bastante curioso, registrado nos anúncios dos jornais.
O fato surpreendente, todavia, é que a leitura dos jornais de 1890 não revelou um carnaval festivo, de libertação, sugerido pelo final da monarquia. Segundo uma nota, as sociedades até cancelaram as festividades de rua, externas, e se restringiram aos bailes de salão. Os desfiles aconteceram apenas no peri1odo pré-carnavalesco. As folhas deixam entrever um gosto da sociedade pela festa, mas a contenção é visível.
Ainda assim, mesmo que o período tenha sido uma fase conturbada de mudanças, ao longo do mês de janeiro os anúncios de artigos de carnaval (máscaras e roupas de “setim”, “setim”, roupas de seda, venda e aluguel de fantasias, doces e bombons então ligados à festa) progressivamente aumentam em número. Em paralelo, a vida teatral se retrai, enquanto os anúncios das sociedades se ampliam, o noticiário de bailes e eventos se transforma em coluna fixa.
Um abismo conceitual ronda o tema, claro – o carnaval, a folia das ruas, os desfiles e bailes, todos derivam da inclinação pessoal, direta, para a alegria e o prazer. A representação se dá em função de um desejo objetivo do sujeito, regido pela imediatidade; o seu resultado é a descarga emocional e a exaustão física. A prática do carnaval pode, quando muito, se aproximar da performance – e aqui neste texto o ato artístico denominado performance não é teatro.
O teatro, ao contrário, se estrutura a partir do desejo da arte; quer dizer, ele é uma expressão ligada à sensibilidade, mas à sensibilidade codificada por uma linguagem, uma instituição, uma história. O seu alvo é o outro e não o sujeito formulador da prática. Portanto, trata-se de sensibilidade coletiva, no sentido de não ser imediata. O ator não se submete (necessariamente) a formas pessoais de exaustão; ele é um técnico a serviço da sensibilidade coletiva.
Vale estudar, então, ao lado do teatro e fora do palco, este fio rebelde de expressão das pessoas que participa da estruturação da sociedade brasileira. O que será que “carnaval” quer mesmo dizer? Como uma sociedade com tantos problemas estruturais graves consegue materializar ano após ano num crescente de invenção festas absolutamente espontâneas, improvisadas, que dependem da adesão pacífica de milhares de pessoas para acontecer? E elas acontecem, não falham. Há na empreitada uma forma coletiva de engano – portanto uma atitude deliberada de escamotear uma dor profunda, uma imensa tristeza?
É necessário pesquisar – importa desvendar o mistério. Talvez o entrudo, raiz primeira de tudo, que esteve no subterrâneo dos velhos blocos de sujo, que parece despontar nos tradicionais blocos de lama existentes ainda hoje no país, traduza algo desta força bruta de busca da transgressão, afirmação selvagem do sujeito.
Se o carnaval acende uma luz redentora nas almas e arrasta o povo para dançar solto nas ruas, talvez ele tenha uma lição muito forte para ensinar à cena. Quem sabe o caminho capaz de levar algo a se tornar paixão popular? Talvez o teatro, aqui, precise com urgência deste segredo. Em resumo, bom carnaval: este ano a coluna não vai carnavalizar, vai mergulhar num tranquilo recesso.
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