Existem lendas urbanas sedutoras. Tenho as minhas preferidas. A vencedora, eleita entre tantas, registra, na minha opinião, o primeiro grande ato de amor à cidade do Rio de Janeiro. Vou dar a minha versão da lenda aqui.
A história afirma que o vice-rei – a meu ver, ele será para sempre o Vice-Rei, primeiro e único do título – D. Luiz de Vasconcelos e Souza, futuro Conde de Figueiró (1740-1807), governante do país sediado no Rio entre 1778 e 1790, apesar de gordinho, era andarilho. Por isto, ele se esgueirou pelos lados da fétida Lagoa do Boqueirão e ali, naquela miséria, vislumbrou uns belos olhos tropicais, merecedores de outra paisagem.
Perdido de paixão como um amante real à moda muito antiga, mandou erguer este deslumbrante Passeio Público que ainda hoje coroa o local, muito embora exaustivamente maltratado por prefeitos desprezíveis, incapazes de qualquer realeza. Pois bem, o nosso Vice-Rei secou a nauseante Lagoa do Boqueirão!
E o fez de tal forma que, mal ou bem, a obra assinada pelo virtuoso Mestre Valentim sobrevive, para nosso deleite, quando temos coragem de por lá andar. Curiosamente para um chão tomado de uma lagoa, o lugar não enche, como acontece com os arredores da Rodrigo de Freitas e com as terras que foram da Lagoa do Senado. A obra foi consistente. Muitos têm tentado acabar com ela, mas em vão, o gesto de amor resiste.
Não se sabe qual foi a reação da moça. Nunca descobri nada a respeito e rogo, caro leitor, que me conte tudo, se algo souber. Por causa desta carência de fontes e de informações, eu, sonhadora, pensei muito e, claro, atinei com a explicação verdadeira de todos estes fatos.
Penso, leitor, que não houve moça alguma descortinada de soslaio ou de súbito sob qualquer humilde gelosia. Não houve amor proibido, delirante ou retumbante por uma donzela nativa. Houve, antes, um outro encantamento fatal, monumental mesmo, irresistível.
Mas o que poderia encantar o olhar de um passante tão nobre naquele ermo fedido, vizinho de um matadouro sinistro? Sim, havia um matadouro, que empesteava a lagoa e mais, a Praia da Lapa e até, ao que parece, a Praia de Santa Luzia – tudo por ali era praia. Imagine, por favor, o que seriam aquelas plagas no limite da povoação nascente, o morro de Santa Teresa florestal, a lagoa plácida, mesmo fedida, e, depois, ao revirar a caminhada, logo ali, puro e límpido, apesar das carcaças, o mar.
Sim, para um andarilho – de uma forma geral todos eram naqueles tempos andarilhos – a aventura daquele canto era a definição sumária, precisa, da Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: um encontro verdejante entre o mar e a montanha. Portanto, acredito convicta de que o que aconteceu foi isto – uma declaração de amor à beleza natural do Rio.
Tonto com tanta beleza, o Vice Rei decidiu escrever a sua declaração delirante na própria paisagem, direto na carne da terra. Assim, para acalmar os sentidos, instaurou uma ordem cartesiana no espaço, graças aos jardins de desenho francês concebidos por Mestre Valentim. Com isto, ofereceu a todos a chance de um flerte prodigioso com a essência da cidade.
Sei que hoje este amor traz um profundo sofrimento, pois não existe mais ao redor do parque a paisagem fabulosa de outrora, nem o verde, nem a visão da montanha, nem o mar, nem o encontro de tudo. E sabemos todos que os governantes recentes da cidade, plebeus desvairados no pior sentido da expressão, se dedicaram a, antes, destruir as maravilhas que receberam para administrar. É gente que não ama o Rio.
Quando circulamos ao redor do Passeio Público, a ruína urbana é deplorável. De nada adiantou a demolição do velho Theatro Cassino, em 1937, cuja construção, concebida para os festejos da Independência em 1922, se prolongou sob desacertos orçamentários até 1926, ano de sua inauguração (quer dizer, fracassou como obra pública e não ficou pronta para o evento festivo!).
Como se pode perceber a partir do mero cotejamento das datas, os administradores da cidade consumiram um considerável montante de capital para erguer um teatro frequentado pela elite, louvado em prosa e verso, e, coisa impressionante, este empreendimento durou onze anos. Demoliram. Seria uma invasão espúria do parque.
Não estenderei aqui a exposição dos detalhes da história do teatro, de arrepiar cabeleireira de cômico. Apenas desejo observar que a casa teve aquele tipo de trajetória ping-pong tão marcante na história dos edifícios teatrais cariocas – vai para a iniciativa privada, vem a falência, vai de volta para o governo em leilão, volta para capitalistas por arrendamento, volta para o governo por dívidas… até a demolição, neste caso, bastante rápida, surpreendente.
O palco ilustre, situado com nobreza, a bem dizer no colo do Vice-Rei, abrigou a estreia do Teatro de Brinquedo, de Álvaro Moreira, em 1927. Em 1934, o estado o repassou para Renato Vianna, para a instalação do Theatro-Escola, situação que levou a prefeitura a alojar na casa a Escola Dramática, a atual Escola Martins Pena, então dirigida por este mesmo profissional.
Vários outros momentos gloriosos tornam a história do teatro decisiva para a história do Rio. Nele, por exemplo, apresentou-se a estonteante Josephine Baker. Já o espetáculo de inauguração, em 1926, contou com uma ficha técnica alentada. A peça apresentada, de nome bem adequado para um teatro cassino, foi A sorte grande, de Bastos Tigre, com a Companhia Jaime Costa. No elenco, entre outros, estavam Jaime Costa, Maria Falcão, Maria Lina, Elza Gomes, Ismênia dos Santos, Davina Fraga, Armando Duval, Delorges Caminha,.
Não era uma casa desprezível, portanto, negligenciável, ainda que a sua ocupação tenha sido oscilante e a sua demolição não tenha provocado uma comoção teatral. De estilo eclético, combinava na arquitetura o rococó e o neoclássico. A sala oferecia 500 lugares na plateia, além de frisas, balcões e camarotes. O crítico Mario Nunes comentou na inauguração:
“…o teatro reúne todas as qualidades inerentes ao fim a que se destina. Decorado primorosamente, mobiliado com elegância e distinção… A sala adapta-se a qualquer estação do ano: no inverno, fechada, agasalhada por tapeçarias, pára-ventos; no verão, abertos os janelões, olha para o mar ou se debruça sobre o Passeio Público. … Sob a sala ficam os camarins, com água corrente, campainhas, ventiladores e aquecedores; usina de eletricidade, com geradores próprios; e atelier de cenografia.”
A constatação se impõe por si. Nada nestes atos hesitantes de construção e bárbaros de demolição se aproxima do amor do Vice-Rei pelo Rio de Janeiro. Vale ir além, fazer um destaque: o desenho do seu Passeio Público, obra elegante do mesmo Mestre Valentim, sofreu uma considerável atualização, pela prancheta de Glaziou, devoto dos jardins ingleses.
A nova moda grassou no século XIX. Encantou D. Pedro II. Desposada pelo poder, fez com que nossos grandes parques ficassem todos com a cara parecida – a quinta da Boa Vista, o Campo de Santana e o Passeio Público ficaram todos sob o mesmo conceito. Para uma cidade do tamanho do Rio de Janeiro, apesar da presença da Floresta da Tijuca, o número de parques soa decepcionante. Afinal, desmatamos e queimamos tudo para fazer as nossas cidades, por isto elas deveriam ser um pouco mais tropicais.
Isto significa reconhecer que, afinal, pouco resta por aqui, agora, do amor nobre de outrora. O deprimente abandono do prédio do Automóvel Club, diante do Passeio Público, denuncia a falta de amor dos poderosos atuais, uma gente para esquecer. Dá arrepio ver o prédio gigante que vão espetar ali junto do Rio Sul, onde podia brotar um parque deslumbrante, com um teatro no meio do arvoredo. E aquele terreno esplendoroso do Leblon, aquele dos quartéis, que delícia urbana poderia abrigar…? O nosso grande teatro de musicais?
Pois o Rio necessita com urgência de um novo Vice-Rei apaixonado, disposto a cuidar da nossa felicidade urbana, da alma e do espírito da cidade. De saída, para neutralizar o vazio e o desamor, o nosso novo prefeito amante bem podia optar por um gesto simbólico de abraço ao Passeio Público – ali se faria a celebração de uma nova era de amor ao Rio, com a recuperação do jardim, a restauração do prédio do Automóvel Club transformado em Centro Cultural, um faxinão geral na Cinelândia.
Depois o amor seguiria para a Zona Sul, tomava de assalto estes grandes terrenos indefesos diante da construção civil. Com a expansão recente da vida teatral carioca em direções renovadas, o Prefeito Vice-Rei mandaria erguer dois novos teatros na cidade: um teatro multiforme, de grandes dimensões, para musicais, e outro, mais intimista, para a nova era feminista que vivemos – seria um palco dedicado a projetos pensados por mulheres, ainda que homens pudessem estar na ficha técnica.
Por exemplo – a nova criação de Bia Lessa, Macunaíma, teria abrigo certo neste imaginado Teatro Lapinha, nome tomado de empréstimo a uma das primeiras atrizes do país. Pois o projeto foi idealizado por Andréa Alves, produtora da Sarau, responsável pelo convite à inquieta diretora. A face mais notável da proposta, bem surpreendente, nasce do núcleo básico da ficha técnica – a trupe A Barca dos Corações Partidos, cerne do elenco, é formada por homens, coletivo base completado por atores e atrizes escolhidos em audição.
Destaca-se ainda um outro ponto – o texto original de Mario de Andrade, outrora inspiração para uma encenação histórica realizada por Antunes Filho, passou por uma adaptação assinada pela escritora Veronica Stigger. Esta dramaturgia funcionou como base para os ensaios e, através de um dinâmico processo colaborativo, ofereceu a inspiração para a criação do texto cênico por Bia Lessa. A direção musical, de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos, trará a marca histórica d’A Barca.
Portanto, a montagem é, digamos, feminista e extrapola bastante o simples quadro da cena teatral cotidiana. Carrega, como um antigo tropeiro errante, pedaços preciosos da memória teatral brasileira. Faz aflorar o desejo legítimo de contar com espaços de memória dignos, memória teatral e sentimental, memória cívica mesmo. Novas casas de teatro de excelência deveriam existir para cumprir este papel.
A pergunta de fundo do texto localiza-se neste terreno um tanto dilacerado: para onde vai a nossa memória? Ou antes – como vai a nossa memória? Somos um país de esquecidos? Escravos, molambos, tudo o que desejamos para sempre é esquecer?
Duas outras iniciativas percorrem a semana e atuam a favor deste desejo de turbinar a memória e indagar a respeito da presença do teatro na cidade e na vida. Uma delas vai, inclusive, povoar o mês.
A primeira acontece esta semana, na UNIRIO e importa para todas as pessoas interessadas em conhecer uma amostra expressiva das pesquisas universitárias do momento. Será a V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura, organizada pelo laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana, da UNIRIO.
Sob o foco, um alentado painel de debates indicará alguns caminhos atuais a respeito deste encontro refinado, da cidade com a arquitetura, o teatro, a cultura e a história. Pesquisadores especialistas apresentarão conferências e participarão em mesas redondas, formas objetivas para revelar o estado da arte.
Uma outra iniciativa terá duração mais extensa, percorrerá a semana para povoar o mês – trata-se da celebração do centenário de Martim Gonçalves (1919-1973) um nome de primeira grandeza do palco brasileiro que, infelizmente, caminha para ser esquecido. É o mês do seu aniversário e a data não poderia ficar ao léu.
Graças à jornalista, pesquisadora, professora e atriz Jussilene Santana, o brasileiro notável estará mais uma vez agitando a vida dos acomodados – num gesto de inspiração maiakovisquiana, a jovem brada para todos os amantes de teatro brasileiro: “Ressuscita-me!”, como se fosse um apelo do próprio homem de sete instrumentos mais do que morto. E para quê este brado retumbante?
Para inscrever o seu nome na história, muito justamente libertá-lo de um apagamento inaceitável. De certa forma, sabemos bem que o Brasil é um país acometido de Alzheimer crônico e esta forma estúpida de ser tem dimensões vorazes no teatro. Apesar de sua atuação ciclópica a favor da cena, Eros Martim Gonçalves não tem a sua obra reconhecida na medida do que ela representa para o país.
Muito intelectualizado, personalidade plural de admirável capacidade criativa, ele incomodou mediocridades do seu tempo e pagou um preço caro. Deixou um acervo extenso de obras e documentos, hoje reunidos no Instituto Martim Gonçalves, estopim acionado por Jussilene Santana para garantir uma grande comemoração. A verba para viabilizar a festa está sendo arrecadada através de vaquinha virtual. Se você ama teatro e deseja contribuir para a memória da cena, vá lá, participe.
Afinal, o homenageado não economizou talento – diretor, crítico, professor, cenógrafo, figurinista, tradutor, produtor, animador cultural, gestor institucional, ele mudou muito da forma de fazer teatro no Brasil. Segundo o crítico Yan Michalski, foi “um dos homens de teatro mais completos do país.” Criou a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, foi crítico de teatro de O Globo, dirigiu peças no Rio e em São Paulo. Como poderemos esquecê-lo?
Parceiro de Helio Eichbauer, Martim Gonçalves influenciou a formação de alguns nomes de destaque da cultura brasileira. A lista das suas ações é imensa e o elenco de personalidades atingidas por seu trabalho é bem alentado – reúne de saída Glauber Rocha, Helena Ignez, Geraldo Del Rey, Antonio Pitanga, Othon Bastos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Tom Zé, entre muitos outros.
Portanto, fique atento, para ficar forte – um rol muito bem bolado de atividades estará em pauta neste setembro, em que uma primavera feminina fará o Rio de Janeiro celebrar a cultura com muito vigor. Uma cidade que foi amada de tal forma por um Vice-Rei, a um ponto que ele ordenou mudar a geografia urbana para a celebração do seu amor, não pode esquecer esta lição primeira.
Amemos, pois, em obediência ao nobre! E amemos especialmente a cultura. Afinal, segundo uma outra lenda, teria sido o mesmo ilustre Vice-Rei um pródigo mecenas de nossa primeira companhia de teatro – justamente a trupe de teatro da qual fazia parte a Lapinha, uma mulher negra de canto forte, nome que escolhi aqui para este nosso novo teatro, de mulheres pródigas no amor à cena, homenageadas por um governante cioso, interessado em cuidar do amor, aquela que deveria ser a qualidade verdadeira de uma bela cidade…
FOTO: LAGOA DO BOQUEIRAO E AQUEDUTO DA CARIOCA, Leandro Joaquim (c. 1750 – c.1790), Museu Histórico Nacional.
SERVIÇO
Macunaíma
Temporada de 5 de setembro a 13 de outubro
Teatro Carlos Gomes – Praça Tiradentes
De quarta a
domingo
Quartas,
quintas e sextas, às 19h. Sábados e domingos, às 18h.
Ingressos a R$ 40 (plateia) e R$ 20 (balcão).
Classificação etária: 18 anos
Duração: 180 minutos
*não haverá espetáculo dia 26/09, mas teremos sessão extra no dia 24/09.
Martim Gonçalves – 100 anos – Homem de teatro (Recife 14/09/1919 – Recife 18/03/1973).
A partir de sexta-feira, 06/09/2019 – estruturação da leitura dramática e dos eventos previstos na agenda de comemoração, viabilizados a partir de vaquinha virtual.
Sábado, 21 de setembro, às 17h: evento em homenagem ao centenário do diretor Martim Gonçalves.
Local: Palcão do CLA, UNIRIO.
Programação: leitura dramática de Noite de Guerra no Museu do Prado, de Rafael Alberti, dirigida por Ewald Hackler, com atores e alunos selecionados por audição. Lançamento de Selo comemorativo dos Correios, seguido de coquetel.
A data marca a abertura da programação do centenário: variadas atividades estão previstas até o final do ano, palestras nos diferentes estados onde Martim trabalhou (RJ, BA, PE, SP) e exposição e vida e obra e uma peça entrará em “cartaz digital” durante um mês.
Todos os produtos são originados do “Arquivo-Vivo” que compõe o Instituto Martim Gonçalves (IMG).
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