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Um amor maior

Eu confesso: tenho um amante. Um amante secreto, pois se não fosse secreto, qual seria a graça? Mas, por ser secreto, muita gente sabe que ele existe – também, como diria Nelson Rodrigues, se ninguém soubesse, para quê valeria a pena ter um amante secreto…?
O meu amante é velho e gasto, vivido e sofrido. Apanha da vida como um cão vadio. Mas não é por causa deste rosário de lágrimas que o nosso amor existe, claro que não. O amor existe justamente por que, ainda que triturado por forças impiedosas, ele resiste, nem se importa. Altivo, ele apanha e distribui alegria, energia de vida, amor e humanidade. Bravio, ele distribui bordoadas requintadas, elegantes, estocadas abstratas, típicas de quem não é vulgar.
Sim, o danado é forte: apanha, mas não cede. E esta qualidade de resistir ao adverso talvez seja a sua faceta que mais me fascina. Não adianta bater, ele não deixa o baixo-astral entrar… Ele segue impávido colosso todo feito de ideias transgressivas – o meu amante não é um escoteiro bem comportado. Mas, com tanta oposição, há um problema – ele tem um lado obscuro, perdido, coisas que se perderam pela vida, pois quando não há estima, a matéria se perde. Tento ajudar: não poderia ficar indiferente ao extravio de preciosidades. Mas a luta é árdua.

Já pensei muitas vezes em largar o meu amante – afinal, talvez fosse mais prazeroso ter um caso menos acidentado, um amor sem sobressaltos, sem tantos descaminhos. Um amor maior que fluísse tranquilo como o tal barquinho da tardinha de verão. Porém, fazer o quê? Confesso: eu traio o amante, invento outros e, logo, logo, me vejo ali, de volta, diante dele, apaixonada e entregue. Como diriam os franceses, Il’a quelque chose là… Os franceses, aliás, são nossos cúmplices, atuaram para selar a nossa união clandestina. Nada como um tempero francês para incorporar um sabor picante a uma relação. Neste caso, a França foi tudo.
Da França, inclusive, surgiu o maior rival do meu amante, uma promessa tentadora de amante secreto para enganar o amante. Ménage à trois. Mas, convenhamos, seria muita bagunça e eu, que adoro ser bem arrumadinha, optei por um único e exclusivo amante, o amante oficial. Até porque o tal francês foi sempre um coração vadio, inebriado diante de todas as mulheres. A bem da verdade, era um francês falso, nasceu alemão e se debandou para a terra dos napoleões, onde alcançou enorme sucesso, tanto sucesso que a sua fama ganhou o Brasil…
Se você leu o texto até aqui, deve estar ansioso para saber o nome deste meu amante tão querido… Pois saiba que viajei com ele para Paris, cidade amada dos nossos corações. Foi a primeira vez que ele andou de avião – não sei quantas vezes ele veio aqui, uma ou talvez duas, sei lá, mas ele tinha o hábito elegante de andar de navio. Voava alto, mas só com as ideias.
O nome deste ser precioso? Claro que posso revelar, se você, leitor, jurar por todos os deuses do teatro que irá guardar segredo, até para evitar ciumeiras e disse-me-disse. Ele foi batizado Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo. Nasceu em 1855, o mais carioca de São Luís, e foi para o além em 1908 – não, ele não está morto: foi o maior homem de teatro da história do país e, não duvidem, não morrerá nunca. Vim participar com ele num colóquio dedicado à obra de Offenbach, um dos nomes fundamentais do teatro francês para o conhecimento da obra de Artur Azevedo. Para entender a alma carioca, a dupla é fundamental.
Pois aí está toda a verdade, caro leitor. Não poderia deixar o meu amante de tantos anos – aliás, décadas, o nosso caso começou quando eu era adolescente – longe das reflexões oportunas que serão expostas aqui a respeito da obra de Offenbach. Neste turbilhão teatral, está presente muita chance de entendimento da história do teatro brasileiro. Tudo passa por aqui: o nascimento da revista, a febre das operetas, o encanto e o desencanto do musical brasileiro, a invenção da burleta, a carpintaria teatral refinada de Artur Azevedo. E mais não posso falar por enquanto, pois o meu amante está ansioso para saber como seu mestre e aliado, com duzentos anos de nascimento até aqui, apesar de tantos inimigos, sobreviveu. Já disse para ele ficar calmo: dos dois lados do oceano, são muitos os amantes devotos, uma gente ardorosa e guerreira, vibrante como um bom can-can, uma gente que não deixa a alegria de viver morrer. Se depender desta turma borbulhante, com alma de champanhe, nenhum dos dois jamais acabará encerrado em bolorento túmulo.