FESTIVAL DE CURITIBA: O teatro aqui e agora
Se o teatro não leva a sua alma ao paraíso, esqueça o teatro, pois ele se tornou um bastardo na sua vida. Talvez a frase seja a melhor definição para sintetizar o pensamento do diretor e ator Omar Porras, um homem de teatro no sentido maior da expressão.
Colombiano, radicado na Suíça, ator e diretor, líder do Teatro Malandro, com um repertório de fazer qualquer amante de teatro perder o fôlego, ele veio ao Festival de Curitiba. A rigor ele é um teatrista – um artista de teatro. E as fotos e vídeos do seu trabalho, disponíveis na internet, comprovam a grandeza de sua obra, inédita no Brasil.
Sim, ele veio ao festival por acaso, fora da grade e do planejamento oficial, graças a um destes descaminhos que fazem com que os festivais se tornem lugares essenciais de criação e de pensamento. Amigo em Paris de Deolinda Vilhena, uma mulher de teatro brasileira incansável batalhadora a favor da arte, ele aceitou o convite para vir até Curitiba.
O motivo foi bem simples, puro amor ao teatro: conhecer o trabalho de Gabriel Villela, outro nome forte do panteão afetivo da moça. Para Deolinda, era fundamental conseguir que os dois barrocos teatrais latino-americanos se conhecessem. A inclusão de Gabriel Villela na grade oficial com dois espetáculos – Hoje é Dia de Rock, de José Vicente, e Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, gerou a oportunidade.
Neste jogo do destino, fui contemplada com a sorte de conhecer o furacão criativo que se chama Omar Porras, uma personalidade inquieta, curiosa, apaixonada, comprometida até a última fibra do seu ser com a latinoamericanidad e com a humanidade. Ouvi-lo traz a certeza de que o palco é uma espécie de altar, um lugar-memorial que deve ser cuidado e cultivado, pois a interlocução profunda necessária para manter a vida em estado pleno passa por lá.
Conversamos muito. Não fiz uma entrevista no sentido técnico corrente, jornalística, mas mantivemos uma conversa teatral que, espero, deve prosseguir. O centro de nossas falas é muito próximo: a necessidade de se pensar – quem sabe algum dia entender – a dinâmica profunda que cimenta a nuestra América.
Colonizados, ibéricos, donos inconscientes de imenso potencial criativo e vasta fortuna natural, somos estranhos uns aos outros, no entanto, quase desconhecidos. Vivemos em estado permanente de solidão sensível afetiva. Continuamos a sonhar com alguém que venha apontar caminhos e soluções, dissolver os impasses, instaurar a luz, nos levar à realização de nossos sonhos. Inebriados, não nos movemos, andamos tontos em círculos e, quando confrontados na nossa inércia, achamos sempre um culpado logo ali, o algoz que não nos permite assumir o que somos. Ou podemos ser.
Esta solidão carente não nos define, ela é o nosso vazio, o nosso abismo. Qual o seu significado histórico? Por que somos reféns da marginalidade? Deveríamos reconhecer um princípio fundador, uma identidade, uma espinha dorsal comum, a nos estruturar? Existe um plano inefável capaz de definir a latinoamérica? O tema é urgente e é muito forte – por causa da crise, da necessidade de novos conceitos e instrumentos para pensar o impasse do presente, através do novo.
Em larga medida, Omar Porras rompeu a ciranda, se foi e realizou o seu potencial criativo. Como todos os que partem, ele tem a latinoamericanidad dentro dele e sente a angústia de não resolver, não lidar com este mistério humano continental. Brasil e Colômbia possuem muito em comum, ainda que nós, brasileiros, vivamos virados para o Atlântico.
Mas, se a Colômbia de Omar Porras, retalhada e pressionada pelo tema da contravenção e pela ânsia de viver a sociedade tecnológico-virtual, é um pouco como o Brasil, ela é, no entanto, a Colômbia de Bolívar, um idealista sonhador guerreiro que desconhecemos. Como dialogar e aproximar territórios com vivências históricas tão díspares?
No Brasil, além de herdarmos o Sebastianismo português, somos fruto de um pai da Pátria que era o herdeiro da Coroa Portuguesa, que seria (e foi) rei de Portugal. A nossa independência talvez tenha sido feita por uma mulher austríaca, não reconhecida enquanto tal, D. Leopoldina. O bolivarismo é estranho ao nosso processo histórico.
Dá para notar que o papo foi longo, percorreu inúmeros caminhos, algumas inusitadas trilhas históricas. Qual o sentido de uma conversa tão longa, tão ampla, para o debate teatral do presente, para se pensar o que fazer no nosso país e, talvez, para buscar alguma sintonia continental?
Em primeiro lugar, vale considerar que pensar teatro é um enorme prazer, o teatro se estrutura a partir de um compromisso com o coletivo no qual a sensação se expande, para servir às ideias. O teatro não é uma feira de amostras nem uma vitrine de curiosidades descartáveis.
No entanto, ainda assim parece justo supor que o teatro, hoje, vive ao redor de duas vertentes diferentes de criação, necessárias, mas nem sempre essenciais. Uma vertente imediata, especular, do aqui e do agora, preocupada com a busca de simples reflexos da situação ao redor. Ela pode até sugerir radicalidades e ousadias, mas não passa da superfície do que está aí, se encerra no flerte com o existente.
Inebriada com a chance de enfrentar o real, esta vertente até mostra cenas cruas, mas todo o esforço se esvai no furor de fazer ver o que há para ver. Talvez nem fosse imprescindível o teatro para chegar a isto e é curioso como estas cenas muitas vezes são naturais, como se fossem conversas corriqueiras.
São obras que contabilizam o que já se sabe, o que já se sente, e mantém os seres atrelados a esta roda de obviedades, como se formassem um círculo de penitentes. Podem aparecer atores nus, perseguidos, cenas dos impasses cotidianos dilacerantes, mas o que se propõe é apenas fotografia, o sentido último de tudo permanece velado, distante. Vale o choque pelo choque.
A outra vertente, que se poderia chamar de metafísica, posto que especulativa, lida com o presente desafiador, busca encontrar ferramentas profundas para situar o dilema humano do momento e do tempo, dilema que é sempre histórico.Não abre mão da arte, da linguagem da arte. Não se trata de fazer registros ou reportagens da vida imediata ao redor, fotografias, mas antes radiografias, sintonia com o fluxo mais subterrâneo que governa – ou desgoverna – a superfície dos fatos. São mapas poéticos, convites ao mergulho no imaginário.
Apesar da aparência por vezes rebelde ou irada do teatro especular, ele é um teatro vazio, alienante como o velho teatro de diversão, uma empreitada mimética de simples atualização com os fatos, tão contido em si, autorreferente, como o noticiário da TV ou a final do campeonato de futebol. O choque, fruto de uma realidade presente chocante, e o conformismo, a confraternização de iniciados, caminham lado a lado. Apenas pulsações epidérmicas estão agenciadas e a plateia se vai feliz com a sensação gloriosa de que é assim mesmo, eu sei.
Em contraste, o teatro especulativo move o espectador do conforto da contemplação da rotina brutal ao redor. Obriga-o a se perguntar sobre as forças que movem as sensações que recebe. Leva-o a sair da vida para a poesia, para ser confrontado com o ímpeto da criação, transpor os limites do seu tempo, do aqui-agora, num percurso que não poderia ser realizado fora do desafio da arte. Ainda que encerrado na sua dimensão de indivíduo, a sua herança é ou o desconforto ou o desafio para a invenção. Mesmo quando lida com o realismo ou o documentário, o teatro especulativo não abre mão de ser teatro, teatralidade.
O teatro de Omar Porras é sempre especulativo, é sempre um ato de arte, envolve a criação de obras que exigem pesquisa, estudo, um longo processo de maturação. Portanto, ele se interessa em falar ao cidadão da polis e ao cidadão do universo, e a sua fala implica num compromisso mais denso do que a escolha de um alvo qualquer ao redor, para retratar ou reproduzir ou retalhar.
Neste sentido, um dos grandes fatos do Festival de Curitiba de 2018 foi a visita do encenador, ainda que ela tenha sido um resultado imprevisto da presença, na grade oficial, dos espetáculos de Gabriel Villela. O diálogo com Gabriel Villela e seus atores, a chance de conhecer o jovem elenco do Teatro de Comédia do Paraná, integrante da montagem de Hoje é Dia de Rock, o início de um diálogo criativo com a excelente companhia Ave Lola foram resultados imediatos da visita inesperada. Ao lado e ao redor, ele revelou um desejo vibrante de realizar um trabalho no Brasil, pesquisar a sensibilidade que nos aproxima. Ou poderia nos aproximar.
Não acompanhei todo o Festival deste ano, estive na cidade um par de dias como convidada do evento, mas a viagem valeu, foi preciosa para o meu interesse em pensar teatro brasileiro. No plano político, a edição 2018 foi importante por manter o protagonismo de Curitiba – e do Paraná – na cena nacional, pois o Festival continua a ser o evento mais importante de teatro brasileiro no país. E é sempre uma emoção indescritível ver como a cidade fervilha teatro.
No que se refere à grade oficial, ela se manteve fiel à tradição, não sofreu qualquer mudança conceitual de fundo, persistiu sendo uma vitrine da produção teatral brasileira do momento, com algumas inclusões de música e dança. Apresentou, contudo, cores intensas desta inclinação recente, bastante objetiva: a presença de muitas obras de teatro especular. Foram muitas peças preocupadas em discutir o aqui-agora mais imediato, oferta de oportunidades para vivenciar os fatos de forma sensível, performáticas, por vezes tão performáticas que solicitam a participação da plateia. Em estado bruto, naturalizados, desfilaram os dramas e acontecimentos que percorrem a vida cotidiana do país.
Sim, a tendência tem se tornado forte nos palcos, parece natural que compareça ao Festival, talvez não em número tão elevado. Trata-se de um teatro de confraternização de iniciados, encontro de pessoas que sabem das coisas, flerte de esclarecidos. É um teatro de certezas. Aos poucos esta linha está se tornando a base do mercado, com salas pequenas, público seleto. Tudo indica que este é o sucessor do teatro comercial do passado, e o risco é ver o teatro poético definhar, desaparecer enquanto hábito social. Seria um off-teatro, criação nossa.
Boa parte das produções em cartaz no Rio de Janeiro sintoniza este caminho. Talvez a escolha permita atrair um público mais jovem, mas com certeza afasta as plateias convencionais, o chamado público de teatro, amante da poesia e da oportunidade de transmudação sensível, naturalmente oferecida pelo teatro há séculos.
Que venha o novo, então – mas é uma pena que o teatro não esteja preocupado em lidar profundamente com a crise que varre a alma de todos, aqui e agora. Há pouco, o Papa, argentino, afirmou que não existe o inferno. E o que mais? Somos latino-americanos, somos ocidentais: o paraíso, para as nossas almas, persiste sendo o pensamento, como queria Brecht. Talvez valha a pena retomar este velho teatro do paraíso, capaz de não ser escravo da vida rotineira, mas antes, ser o senhor de uma sensação transgressora, uma sensação ousada o bastante para tentar governar o pensamento.
FESTIVAL DE TEATRO DE CURITIBA
27 de março a 8 de abril de 2018
festivaldecuritiba.com.br
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