High-res version

O teatro e sua alma

Vamos comemorar – a vida retorna à sua pulsação. Não por aqui, claro, mas em Paris. E na França. Vale a pena ver o planejamento feito por lá para o “desconfinamento”. A partir de um conjunto de indicadores, o governo criou um mapa para o retorno às atividades correntes. Elas estarão sujeitas a medidas de segurança sanitária, tais como a distância entre-corpos, as máscaras, etc.

O território foi classificado em três zonas diferentes – vermelha, laranja e verde. Pelas cores, dá para imaginar a situação de cada uma, com o vermelho significando restrição total ainda. Durante o mês de junho, gradualmente estarão abertos cafés, restaurantes, comércio, museus, galerias.

Os teatros começam a retomar os seus ensaios mas as voltas às apresentações ainda não estão marcadas. No Théâtre du Soleil, Ariadne Mnouchkine declarou em live organizada por Eduardo Barata, na APTR, que a esperança é que o retorno possa acontecer no outono, em outubro. Mas ainda são vagas suposições, hesitantes diante das condições de controle do vírus.

A nossa surpresa diante destas notícias é total e ela nasce de um fato claro: não se vê por aqui este tipo de tratamento da grave pandemia que, no Brasil está fazendo história no pior sentido da expressão. Qual o planejamento das autoridades para o enfrentamento da doença? Quais os indicadores que norteiam o planejamento? Como deve ser programado o retorno à produção? Não sabemos. Qual a saída?

Teatro, claro. Não, não seja um materialista vulgar e banal e não se pergunte quando. Teatro é sempre, é para sempre. Enquanto não vem – e sequer podemos planejar a volta com clareza e objetividade – faça alguns exercícios, estude, mexa-se. Não deixe a sua teatralidade criar mofo.

Respire fundo. Expire calmamente. Concentre a sua atenção na respiração. Imagine uma luz radiosa, fascinante, vindo do universo e invadindo o seu corpo através do ar inspirado… Tente, em meio a tanta luz, descobrir as imagens teatrais da sua vida. O que o teatro deu para você, como imagens impactantes?

Parece brincadeira – e é. Mas o assunto é sério. O teatro opera por imagens, cada amante da cena tem o seu próprio álbum relicário de imagens preciosas. Às vezes as imagens são comuns a muita gente. São imagens-ícones, momentos ápices de uma peça, ali onde toda a poesia e toda a beleza visual se encontrou e eclodiu em emoção, dando um banho sensível na plateia.

Nem toda peça tem imagem-ícone. Melhor dizendo, raras peças têm imagens-ícones. Elas não dependem da vontade do diretor ou do elenco, ou do cenógrafo ou do iluminador ou do público. Elas acontecem. Representam um encontro criativo muito forte e muito gratificante.

Sim, está sob o foco aqui uma velha relação entre teatro, visualidade, artes visuais, artes plásticas e pensamento. Teatro é a palavra viva, transformada em imagem presente. A força desta palavra-imagem-pulsante sempre foi forte, a banalização da arte, um assunto importante mas secundário aqui neste texto, é fato de tempos recentes.

Fala-se na força da palavra vivificada em cena no teatro grego, comentaristas sustentam que mulheres grávidas chegavam a abortar sob o impacto do que viam. No medievo, em alguns momentos a Igreja, numa visão platônica curiosa, condenou a cena, sustentando que ela apresentava duplos da vida capazes de levar os homens ao pecado.

No Renascimento, muitos quadros vivos chocantes do teatro alcançaram tamanha repercussão que foram reproduzidos nos quadros, ainda que não se indicasse a fonte. Só o teatro contemporâneo pode esclarecer as imagens pictóricas de bocarras infernais flamejantes, guirlandas voadoras de diabinhos ou de anjos, por exemplo.

Os diretores, no teatro moderno, se dedicaram bastante ao tratamento visual da cena – o teatro moderno é o teatro da encenação, o que significa dizer, de certa forma, a cena desenhada como imagem poética. Mas isto não significa a criação de imagens-ícones, necessariamente. A construção visual pode ser acabada, perfeita, mas oca, fria de sentimento: não vai ficar impressa nas almas. Não arrebata.

A conclusão é simples. Sim, o teatro, apesar de ser um mestre das palavras, é também um fato visual, ainda que ele não seja apenas isto. Ele é, digamos, uma espécie de pensamento visual tecido por palavras. E quem vai ao teatro, ao longo da vida, constrói, mesmo sem saber ou sem se dar conta, uma coleção de delicadas imagens revolucionárias. Imagens-ícones.

Tente, portanto, acessar o seu álbum-relicário de imagens-ícones. Não, não recorra a peças recentes, busque as emoções mais antigas. Dê um espaço de tempo grande, para a névoa da percepção se dissipar. Procure o que ficou como imagem, quadro-vivo tão intenso que quase dói na alma. Posso ajudar revelando, sem constrangimento, alguma coisa do meu álbum pessoal.

O espaço não permite que eu me estenda, mas os principais exemplos devem ilustrar bem o ponto em questão. A minha imagem-ícone mais antiga traz Bibi Ferreira na esfuziante Dolly, com um vestido de festa repleto de brilhos e um chapéu de plumas capaz de agigantar qualquer imagem de mulher. Eu era jovem adolescente, hesitava diante do desafio do mundo e esta imagem ficou gravada no meu imaginário como um amuleto para a vida.

Depois, o teatro me levou a ser arrebatada por Paulo Autran, um ator não cantor capaz de dotar os versos dedicados ao sonho impossível, em O Homem de la Mancha, de um colorido humano raro. Aliás também tenho Paulo Autran no fundo da alma na cena desesperada do rei Lear sob a tempestade. São duas imagens-ícones tremendas e até um pouco antagônicas.

Vale frisar que imagens-ícones perfeitas me ficaram a partir de Pássaro do Poente, encenação deslumbrante dirigida por Marcio Aurélio no Grupo Ponkã. Na fábula, o ator Paulo Yutaka personificava uma garça, uma forma lírica de representação humana libertadora. Talvez esta seja a imagem-ícone mais forte que me tenha ficado do teatro brasileiro: o futuro dirá.

Tenho ainda a escultura humana feminina – quase um móbile-fêmea – materializada por Marília Pêra em Brincando Em Cima Daquilo. Duas outras silhuetas de mulher ficaram comigo como acalanto existencial, as duas de Vera Holtz – a sua estreia-aclamação no musical, no turbilhão de irreverência, alegria e exuberância que ela instaurava no Theatro Musical Brasileiro, de Luiz Antonio Martinez Corrêa, e o impressionante monumento hierático de dor e desolação existencial gravado em carne e luz em Palácio do Fim, de Nehrias Al Saffarh.

Ainda teria que incluir Rubens Corrêa, ao celebrar, braços alçados, a intensidade humana total a partir do mais completo despojamento, em Artaud!. Curiosamente, a medida mínima também se impôs, mas como pequena poesia do cotidiano a partir da mágica combinação de simplicidade, luz etérea e palavra forte, doada por Fernanda Montenegro em Dona Doida, um interlúdio.

Esta foi uma montagem precursora, de certa forma revolucionária, pois não havia em cena a antiga grandiloquência da declamação, mas a modernidade do coloquial, do estar junto. A palavra expressa com justiça buscava instaurar, a partir da cena seca, um caleidoscópio na mente da plateia.

Vale então lembrar a cena dos corpos nus de Macunaíma, de Antunes Filho, tão marcada pela força criativa de Naum Alves de Souza. Talvez a cena signifique uma espécie de síntese histórico-existencial do Brasil, com o palco atravessado por uma espécie de fantasmas humanos. Assim como o imenso sentido trágico da América Latina exala de Evita. Ele brota, insurreto, da força da cena de Claudia/Evita Mauro Mendonça/Péron, da canção Não chores por mim Argentina.

Poderia trazer mais alguns exemplos, mas na verdade a lista não é extensa. A propriedade central das imagens-ícone é exatamente sua força rara, o seu valor de acontecimento definidor de uma era teatral ou até mesmo humana.

Algumas peças são fortes, históricas, mas não produzem imagens-ícones, ainda que os seus encenadores possam ter se esforçado neste sentido. A simples marcação estética, aliada à composição espacial bem resolvida, produz cenas nobres, impactantes, mas é preciso um pouco mais para que a mágica aconteça.

Vários espetáculos históricos ficam perpetuados na memória e no imaginário; possuem um fluxo de energia impressionante e dizem bastante da época. Este é o caso de Último Carro, por exemplo, límpida direção de João das Neves, com cenário-ambiente impressionante, explosivo, de Germano Blum.

Não dá para ignorar um outro exemplo, Amante Inglesa, com Tônia Carrero e Paulo Autran, legítima provocação cênica em que a bela atriz aparecia sem qualquer glamour num texto pesado, de trama judicial, para espanto do público incauto.

Outro tanto de ousadia, com uma cena cirúrgica e terrivelmente bela em sua composição, trouxe Antonio Fagundes em Restos, de Neil Labute, direção de Marcio Aurélio. O texto, marcado por uma teatralidade surpreendente, propenso a ampliar a visão do humano, graças à força do ator estabelece um fluxo de energia de extremo requinte, inesquecível.

Na outra ponta, quase no modo barroco, uma turbina de energia popular enlouquecida permitiu que Viva o Cordão Encarnado, de Luiz Marinho, direção de Luiz Mendonça, cristalizasse em cena a potência humana brasileira em seu grau mais elevado, de rua mesmo. A cena transbordava uma pulsação popular espontânea rara.

Já em Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho, José Renato conseguiu dar vida a um outro fluxo, a transitoriedade histórica – e contava com a verve de Ary Fontoura para tornar mais intensa a cena. Mas estas todas são peças de energia, digamos – algo normal e necessário, seguem a mecânica elementar que o teatro se impõe a trabalhar, muito embora tenham sido grandes acertos. São formas espetaculares grandiosas, vale frisar. Pode ser que sejam vistos como espetáculos históricos. Mas não contam, apesar de suas grandezas, com imagens-ícones

Estamos neste campo diante de um mistério – como é tecida a significação histórica de uma obra para o seu tempo? Quais as coordenadas históricas que tornam um autor e um determinado alfabeto cênico importantes? O que faz um espetáculo implodir as almas ao redor?

Porque motivo algumas obras passam anônimas por sua época e outras são recebidas com estardalhaço? O que faz uma obra ecoar na sensibilidade de seu tempo ao ponto de criar uma imagem-ícone importante para os contemporâneos?

Certamente ainda temos muito para estudar a respeito do teatro. Indo ao teatro, logicamente. A torcida para que a arte retorne logo ao palco mobiliza um bocado de gente ao redor do mundo. Na Checoslováquia  já se começou a fazer teatro-drive-in, com opiniões díspares a respeito da qualidade da relação palco-plateia. Com certeza as peças mostradas não ficarão.

Por aqui, algumas quadras de escolas de samba contam com estacionamentos amplos adaptáveis para fazer teatro-drive-in. E há o Lagoon, os grandes estacionamentos dos shoppings. Falta, claro, todo o resto – rigoroso mapa de contaminados, testes para delinear  o universo da pandemia e estabelecer circulações, visões globais para definir a retomada da vida fora de casa, protocolos exeqüíveis para o retorno…

Por enquanto, não podemos comemorar nem o fim do isolamento, nem os planos para a retomada – no caso do teatro, corpos em estado de representação, a demora deverá ser maior. Resta um consolo: aproveitar o recesso para estudar. Uma sugestão está neste pensamento, o desafio de tentar entender como o teatro se estrutura como cena, visualidade, criação visual… para nos apaixonarmos e seguirmos abraçados pelos caminhos da vida.

Serviço:

Dois textos podem trazer uma contribuição interessante para o debate do tema:

FRANCASTEL, Pierre. “O TEATRO É UMA ARTE VISUAL?”, in: Revista Ensaio/Teatro, Rio de Janeiro, 1983. Tradução Tania Brandão.

Panofsky, Erwin. O significado nas artes visuais. pdf