Segredos do teatro: como se tornar imortal!
Repare bem, arregale os olhos, olhe bem ao seu redor. Tem gente que não morre. O corpo, esta coisa transitória, descartável, diz tchau, mas o sujeito, o cabide que mantinha o corpo em pé, não parte. Não, não se trata de história de assombração, Deus me livre. É, antes, história de iluminação.
Existem personalidades que são tão importantes para a vida, para a sociedade, que não há qualquer chance de que partam para outro plano, depois de cumprirem a temporada daqui. Talvez não sejam tão numerosas, pensando melhor o tema. Talvez a presença oscile conforme o perfil da figura – mais ou menos popular, digamos. Peço que considere alguns casos, na certeza de que a sua perspicácia descobrirá alguns nomes, alguns outros seres que nem de longe passaram por minha lembrança.
Penso, de saída, em Sócrates. Claro, ele anda de braços dados com o seu discípulo brilhante, Platão. Parece muito natural considerar que eles se foram, mas não partiram, deixaram a sua presença marcada a cinzel nas nossas ideias. Vale falar em cinzel, claro, pois era a ferramenta grega para esculpir o mármore: numa época em que não existiam livros, a filosofia era, mais do que tudo, verbo. Aqui e ali, virava mármore na obra de um ouvinte atento.
Outro nome forte para as ideias, que se recusou a sumir da sociedade humana, já na era em que começaram a surgir os livros: Descartes. A sua ousadia de afirmar o “Penso, logo existo” alcançou um sucesso tão notável que volta e meia vemos a ideia andando sozinha, sem ter nem mesmo a sombra da companhia do nome do autor… E isto sem falar na carnavalização da frase famosa.
Com certeza os exemplos da filosofia são fáceis de enumerar, em especial nos casos dos fantasmas mais ousados, os que se projetaram ao provocar revoluções no pensamento. E no teatro? É costume considerar que o teatro passa sem deixar marcas visíveis, palpáveis – como se o teatro fosse a brotoeja da sociedade.
No entanto, não é bem assim. Com certeza o teatro é uma forma de pensamento social, por isto é tão necessário e, sob diversas formas e aparências, existiu sempre. O garimpo, contudo, é bem mais trabalhoso… Por favor, façam as suas listas! Quem desceu do palco e ficou para sempre zanzando entre nós?
Talvez não seja muito fácil encontrar fantasmas diretos, objetivos, no caso do teatro, fantasmas com identidade e cpf, digamos. Sempre sinto espanto diante da popularidade evanescente dos atores. O tempo passa, ela se esvai.
Certa vez, fiz uma pesquisa sobre Oscarito – Oscar Lorenzo Jacinto de la Inmaculada Concepción Teresa Díaz (1906-1970). Perguntei aos porteiros da Avenida Atlântida, ao porteiro do prédio em que ele morou, entre eles, se podiam me dizer qual era o prédio do Oscarito… e foi difícil explicar a palavra “oscarito”, ninguém a entendia.
Então, honestamente, João Caetano que me perdoe, mas não sei de nenhum ator brasileiro que tenha virado fantasma social. Em compensação, temos Shakespeare – e para aqueles que acham que ele é uma lenda teatral, pois duvidam que ele tenha existido, deve soar estranho saber de sua sobrenatural popularidade, até mesmo aqui no Brasil. Com certeza os culpados da proeza são Romeu e Julieta.
Trata-se de uma fama indireta. A fama indireta do bardo, contudo, é mais sólida do que a fama de outro monumental ator-autor, o irresistível Jean Baptiste Poquelin (1622- 1673), um fantasma nascido há quatrocentos anos, digno de muito respeito.
Por aqui, contudo, a sua fama ecoa nos teatros graças a uma acontecência banal, cotidiana e prosaica: a adoção das famosas três pancadas de Molière, para sinalizar o início da representação. Ele inventou o recurso para tentar sossegar o público da época, um tanto inquieto. Virou uma convenção do teatro e nós aqui, frutos civilizados da cultura ocidental, a adotamos, ainda que não tenhamos tanto teatro quanto a dose recomendada na receita do Ocidente.
Sim, o ocidente – um lugar de cultura que nos persegue, pois há uma forte suspeita de que estejamos noutro lugar, mais distante e sombrio, saiba-se lá qual o nome das coordenadas geográficas capazes de definir estas nossas delicadas terras tropicais.
Há uma densa discussão política embutida na afirmação – aliás, ela está em todo este texto, com seu inventário de fantasmas, no fundo a busca de identificação de uma névoa imaterial impregnada na vida da sociedade, uma névoa que pode ser chamada de cultura.
Qual a cultura, o delicado véu imaterial de sensibilidade e invenção, que envolve uma sociedade na qual é corrente matar por espancamento, trucidar gays e mulheres, deixar crianças esmolar por comida nas ruas, fuzilar desafetos e rivais, roubar descaradamente dinheiros públicos fundamentais para combater a extrema miséria social…? E mais e mais e mais… A lista é de tirar o fôlego de qualquer fantasma, mesmo de um fantasma barítono.
O fato é que as criações dos artistas, os fatos de cultura, circulam, compõem o tecido de uma parte importante da vida social, uma vida que não vemos, mas vivemos. Por exemplo – quando contemplamos um quadro renascentista e vemos anjos e demônios voando ao redor das figuras, quando vemos esculturas religiosas do barroco brasileiro e temos revoadas de figuras angelicais ou diabólicas pairando no ar, de onde vêm esta invenção? Da mente do artista??
Ela vem do teatro. Sim, aquele teatro das praças e mercados, das carroças, das mansões. Aquele teatro onde os efeitos de anjos, diabos, nuvens, céus estrelados, bocas fumegantes do inferno eram frutos de engenhocas mecânicas, invenções fundamentais para atrair o olhar do povo. Máquinas de teatro. O impacto destas criações atravessou séculos: foi parar nas fantasias carnavalescas cariocas de rua, populares outrora, fantasias de diabo, morcego, caveira…
Portanto, pasmem: o teatro é imortal. Tem poder para sacudir a percepção das pessoas, chacoalhar valores, dinamitar certezas, difundir visões do mundo… o que mais? De certa forma, o teatro torna o ser humano imortal. Como se fosse uma máquina diabólica de Leonardo da Vinci, o teatro tem a capacidade de reinventar a experiência humana. Neste jogo profundo, talvez ele nem precise de pequenos fantasmas, pobres restos humanos, pois ele manipula o grande fantasma da vida.
Duvida? Pois entrou em cena em São Paulo, no SESC Pinheiros, um experimento teatral perfeito para o debate destas ideias – Leonardo da Vinci – a Obra Oculta, do autor italiano Michele Santeramo. Esta é a segunda parceria entre o autor e o ator Cacá Carvalho, que já encenou, em 2016, a sua versão de A Próxima Estação – Um espetáculo para ler.
O desenho do experimento se torna perceptível a partir do título do primeiro trabalho. Santaremo trabalha com o conceito de teatro mínimo, o teatro reduzido ao seu núcleo expressivo básico. Assim, a montagem se faz no palco nu, centrada na leitura, com intervenções acessórias de ilustrações, graças a imagens projetadas, e luz. A ênfase no texto e no dizer do ator deve funcionar como uma máquina de emancipação do espectador, convidado a deixar a imaginação fluir em estado de liberdade.
O centro da reflexão cênica é a obra oculta de Leonardo da Vinci, protagonista da ação, muito embora a peça não trate de acontecimentos reais. Uma suposição move o texto: ela gira ao redor do fato de que, depois de inventar tantas máquinas, o artista se voltaria para a pesquisa a respeito de uma máquina ideal, eficiente para mudar a realidade, evitar a morte. Nesta busca, surgem personagens reais e imaginados, concebidos para tentar dimensionar o que é o humano e questionar o sentido da vida.
Antes da estreia no palco, por causa da pandemia, este trabalho foi apresentado em formato de filme, gravado na Casa das Caldeiras, e esteve em cartaz em novembro de 2021, on-line, no YouTube. A versão foi indicada ao prêmio APCA de teatro.
Vale destacar: é notável a força das perguntas reunidas na proposta. Sob este ponto de vista, o retorno ao cartaz do trabalho no formato virtual seria uma conquista importante para a sua difusão mais ampla por todo o país. Afinal, a peça está centrada numa inquietação atual, contundente e oportuna, a pesquisa a respeito da força do teatro junto ao cidadão e na moldagem do pensamento social.
Sim, Leonardo da Vinci (1452-1616) é um dos maiores fantasmas da nossa sociedade – se não for o maior de todos, de todos os tempos. A sua genialidade nos surpreende e parece justo supor que ele possa ter inventado uma máquina para liquidar a morte; a máquina seria provavelmente a arte, ou o engenho de ser, de viver, em sintonia com a arte?
Então, elucubrações de lado, o melhor é ir ver a peça. Afinal, Cacá Carvalho é um dos maiores atores brasileiros, um gigante da cena, dono de uma capacidade inesgotável de criação. Temos o privilégio de sermos contemporâneos, não sabemos se ele será no futuro um ilustre fantasma.
Mas sabemos que, vivos, aqui e agora, podemos contar com ele para afinar a potência criativa de nossa sensibilidade, reinventar nossas almas, como se a morte não nos espreitasse para apagar nossas pegadas reais. Por um curto período de tempo, no teatro, entregues à arte dele, somos o que não somos: somos imortais.
Leonardo Da Vinci – A Obra Oculta
Ficha técnica
Com Cacá Carvalho
Texto Michele Santeramo
Ilustrações Cristina Gardumi
Direção no Brasil e espaço cênico: Márcio Medina
Assistente de Direção: Victor Mendes
Iluminação: Michele Bezerra
Operação técnica: Fabio Retti e Kenny Rogers
Designer: Danusa Carvalho
Colaboração Artística: Roberto Bacci
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto | Marcia Marques
Produção no Brasil: Corpo Rastreado
Produção Executiva: Thaís Venitt
Realização Sesc
Agradecemos ao Centro per la Sperimenrazione e la Ricerca Teatrale della Fondaziine Teatro della Toscana – Teatro Nazionale, que produziu a versão italiana do espetáculo.
Foto: Cacá Carvalho por Maria Fanchin
Serviço
De 3 de fevereiro a 5 de março de 2022.
Quinta, sexta e sábado, às 20h.
*Nos dias 19 e 26 de fevereiro, excepcionalmente às 18h.
Ingressos: R$ 30 (inteira), R$ 15 (credencial plena/meia)
Local: Auditório (3º andar)
Duração: 70 minutos.
Classificação: 12 anos.
*Informações sobre venda de ingressos no site
Endereço: SESC PINHEIROS
Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, SP
Bilheteria: Terça a sábado das 10h às 19h. Domingos e feriados das 10h às 18h. Tel.: 11 3095-9400.
Estacionamento com manobrista: Terça a sexta, das 7h às 20h; Sábado, domingo, feriado, das 10h às 18h.
Informações à imprensa: Canal Aberto Assessoria de Imprensa
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