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A praça contra o povo

Sou carioca. E, por ser carioca, padeço de algumas paixões urbanas incuráveis, desde a infância. Talvez sejam inexplicáveis, confrontadas com a realidade da cidade hoje. Fazer o quê? Mesmo com a cidade contra, descuidada pelo prefeito e demais autoridades que deveriam zelar por nós, contribuintes e eleitores, as paixões sobrevivem dentro de mim.

Explico. Se eu contar para um forasteiro o meu prazer inebriante, noturno, de flanar ao léu pelas ruas da cidade, ele dirá: és louca. Pois andar a passeio à toa, com os olhos em estado de flerte com a paisagem exuberante daqui se tornou risco de vida total.

E tem coisas piores – passear a pé pela orla carioca, no acalanto da noite, respirando o ar pesado de maresia e brincando de alternar a visão entre o mar e o perfil urbano, pode existir exposição maior ao perigo? Bem ali, diante do colar de pérolas mais famoso do mundo, a curva sedutora de Copacabana… Sim, ah, eu sei, tem coisa ainda pior. Vejamos.

Teatro João Caetano, o rei da Praça Tiradentes.

Sábado visitei um dos maiores amores de toda a minha vida: a Praça Tiradentes. Passei todas as décadas vividas até agora sem saber dizer qual o meu amor maior: a velha praça dos teatros ou o Campo de Santana, o jardim das cotias?

Não sei responder. Um mistério. Adulta, porém, acabei desvendando algo da trama de atração destes dois lugares: de certa forma, o teatro brasileiro, a arte mais amada da minha vida, nasceu no Campo de Santana e se criou na Praça Tiradentes.

Sim, o campo, imenso, foi o legítimo berço do nosso teatro, o lar das gargalhadas primeiras, ancestrais. Depois de ter sido um monumental terreno baldio para despejo de barris de esgoto doméstico pelos escravos, o campo se tornou um lugar de passeios, barraquinhas, feiras e quermesses.

Uma das barraquinhas de maior sucesso era a Barraca do Telles, dedicada a apresentações de teatro, danças e cantorias, com atores ou bonecos articulados. Era uma das atrações favoritas do público durante os dois meses dedicados à celebração da Festa do Divino. Lá foram apresentadas peças de Martins Pena (1815-1848).

 Campo de Santana, por Franz Fruhbeck, 1818. 

Mas lá aconteceu um outro sucesso popular notável, depois que a velha barraca sumira, em favor dos teatros de prosa e revisteiros da Tiradentes.  A praça imensa – logo o seu tamanho seria reduzido com a abertura da Avenida Presidente Vargas – abrigou o histórico Teatro da Natureza, em 1916, uma forma de grande teatro ao ar livre em que se consagrou definitivamente o nome estrelar de Itália Fausta (1878?-1951). Fausta foi a nossa grande atriz trágica da primeira metade do século.

Entre estas duas marcas temporais – a Barraca do Telles e o furacão cênico chamado Itália Fausta – afirmou-se o império da Praça Tiradentes. O lugar se tornou uma espécie de bairro teatral carioca, pois as casas se estendiam da Rua do Lavradio até a Rua Uruguaiana, num número formidável de edifícios.

Veja-se bem: tanto a grande loja maçônica como a atual escola municipal Celestino Silva foram teatros (ou projetos de teatro). Não, não vou enumerar todos e cada um: sinto vergonha. Pois é, vergonha: o orgulho carioca fica muito arrasado. Praticamente, todos desapareceram. Mas não é só vergonha não.

Por ser carioca, além da vergonha diante do patrimônio perdido, uma dor profunda magoa a minha alma. A dor de ver a cidade encantadora se desfazer como a areia se dissolve nas ondas do mar.

Como pode o cidadão, o prefeito e o governador permanecerem imóveis diante da crise terrível que varre o teatro, outrora a mais valiosa joia da coroa? Alguém acredita que o teatro não é necessário para o poder da cidade, para a saúde da economia urbana? Quem foi que fez o famoso jeito carioca de ser – o Zé Carioca – se não foi o palco?

Este edifício sentimental mais alto do que o Avenida Central desabou sobre a minha cabeça no último sábado. Resolvi dedicar o dia, tradicional marco de animação urbana, a um passeio na Praça Tiradentes. O lugar está irreconhecível e me deu um dia de forte emoção.

Sim, o meu sábado na Praça Tiradentes foi emocionante graças a um espetáculo lindo, o musical Leci Brandão – Na Palma da Mão, cuja temporada termina no próximo fim de semana. Recomendo o programa a todos os cariocas-raiz, é felicidade pura.

No entanto, nada é tão simples hoje no mui heroico arraial de S. Sebastião. O dia  foi depressivo, irremediavelmente depressivo, por causa da decadência fragorosa da região. Não dá nem para pensar em tomar um café na praça. Uma restrição do direito de ir e vir inadmissível.

A coisa é tão grave ao ponto de afetar os horários das apresentações teatrais.  O espetáculo do sábado acaba cedo, para não expor muito a plateia aos riscos da noite ao redor. E aos domingos, simplesmente não há espetáculo. Teatro fechado, praça sem circulação de povo.

Em grande parte, a decadência da praça nasceu por causa da criação do VLT, que instaurou um deserto de gente no lugar. Aliás, o mesmo crime foi cometido contra a Cinelândia. Portanto, a prefeitura tem que resolver o problema: não dá para sufocar o amor carioca por recantos apaixonantes em benefício de um trem. Nas velhas piadas da cidade, tão arrogantes e preconceituosas, quem comprava trem era o mineiro. Por ironia do destino, nos tornamos compradores de trem e pagamos a compra com a alma da cidade.

A coisa incomoda mais ainda por uma razão de alta estirpe local, só conseguirá entendê-la e pensar em agir quem gosta de samba de verdade. Quando o espetáculo termina, um musical retumbante de louvação a Leci Brandão, um dos nomes mais ilustres do samba carioca, a vontade é dançar na rua, como o povo fazia diante da Barraca do Telles.

O belo terreiro de folhas de mangueira…

O texto do jornalista Leonardo Bruno, trabalhado para a cena pelo diretor Luiz Antonio Pilar, Lorena Lima e Luiza Loroza, atinge uma voltagem de sedução muito elevada, pois trata de revelar a dinâmica de uma vida libertária, profundamente marcada pelos valores culturais afro-brasileiros. Suburbana, negra e homossexual, Leci Brandão não se projetou facilmente – muito ao contrário. A sua potência de luta é inspiradora. E arrebatadora, claro.

Sob a proteção de seus orixás de frente, num terreiro de samba coberto por folhas de mangueira, com a narração em prosa e música entregue à magistral atriz Veronica Bonfim, no papel da mãe, a cantora defendida por Tay O’Hanna materializa Leci Brandão num tom eletrizante. E remexe os alicerces da alma da plateia.  

Veronica Bonfim e Tay O’Hanna.

Por mais de um século, a praça ao redor se consagrou como ponto de encontro de músicos – não apenas profissionais de teatro, mas da cena musical em geral. A sonoridade brasileira se consolidou como uma forma de ser deste espaço urbano. O espetáculo honra esta tradição.

Ao todo, são apresentados 17 números musicais, a maioria composições de Leci Brandão. Os seus maiores sucessos estão presentes e fazem a plateia cantar – números como A filha da Dona Lecy, Ombro amigo, Gente negra e Preferência acionam um caminho delicado de emoção pura.

Contudo, a força musical emana não só da compositora e dos atores cantores, mas dos quatro músicos exímios que tocam ao vivo. Matheus Camará (violão, clarinete e agogô), Thainara Castro e Pedro Ivo (percussão) e Rodrigo Pirikito (violão, cavaquinho e xequerê) seguem com maestria a direção musical de Arifan Junior, orientada para a africanização do samba e para a materialização do clima real, efetivo, das rodas de samba.

Por isto, explica-se, surge a arrebatadora vontade de dançar na praça. Vontade frustrada. O ímpeto festivo some na calçada ameaçadora, é impedido pelo desinteresse governamental, incapaz de honrar os impulsos mais elevados da alma carioca.

A Praça Tiradentes já contou com mais de dez teatros, todos cultuados pelos cidadãos. Hoje, em atividade, só existe o Teatro João Caetano, pois o Carlos Gomes, da prefeitura, está fechado para reformas. A solidão teatral é impactante. A solidão humana é deprimente.

A segurança, ao mesmo tempo, é nenhuma. Atualmente, a área não conta sequer com uma joaninha, um dado espantoso, pois este recanto célebre da cidade abrigou um quartel da Polícia Militar. Hoje, está lá um terreno baldio, cercado por tapume.

Para quem é carioca, portanto, a noite do Rio traz perguntas ácidas. O que foi feito da capital cultural do país? Quais os planos em andamento para a recuperação dos encantos mil da cidade maravilhosa? A saída para as artes do Rio é o aeroporto, rumo a São Paulo, como tantos artistas têm feito?

O velho teatro João Caetano, pintura de Debret, por volta de 1834, com a praça movimentada com o vai-e-vem de gente…

Enquanto as respostas urgentes não aparecem, só resta ao cidadão acabrunhado agir – é fundamental ir ao teatro. Um programa de alcance político absoluto está em cartaz, corra para comprar ingresso e desfrutar a delícia de ter ao seu dispor ainda (e tomara que sempre!) o primeiro teatro da cidade, o nobre João Caetano.

Incendiado e reconstruído três vezes, reformado e repaginado, ele segue firme e forte. Com o canto poético de luta e resistência entoado por Leci Brandão, o velho teatro festeja a alma carioca e celebra a cidade. Vá lá, leve o seu coração para passear, mesmo que você precise olhar de soslaio a praça vazia em frente, olhos tristes. Entregue o melhor de você ao Rio. Ele merece.  

FICHA TÉCNICA

Leci Brandão – Na Palma da Mão

Texto e pesquisa: Leonardo Bruno 

Adaptação dramatúrgica: Lorena Lima, Luiz Antônio Pilar e Luiza Loroza

Direção: Luiz Antonio Pilar

Direção Musical: Arifan Júnior 

Assistente de direção: Lorena Lima

Direção de Movimento: Luiza Loroza

Figurino: Rute Alves

Cenografia: Lorena Lima

Iluminação: Daniela Sanchez

Direção de Produção: Bruno Mariozz

Atriz/Cantora: Verônica Bonfim 

Ator/Cantor: Sérgio Kauffmann

Atriz/Cantora: Tay O’Hanna

Violão, clarinete e agogô: Matheus Camará

Cuíca, tantan, surdo, caixa, tamborim, congas e efeitos: Pedro Ivo

Violão, cavaquinho e xequerê: Rodrigo Pirikito

Pandeiro, atabaque, congas, repique de anel, repinique e efeitos: Thainara Castro

Preparador Vocal: Pedro Lima

Assistente Dir. Musical: Rômulo dos Anjos

Assistente Figurino: Diogo Jesus

Assistente Cenografia: Tarso Tabu

Cenotécnico: Vicente Mota

Produção Executiva: Synara Moreira

Produção: Palavra Z Produções Culturais

Idealização e Realização: Lapilar Produções

SERVIÇO:

Estreia: 07 de abril

Temporada: de 07 a 29 de abril de 2023 – sexta, às 19h e sábado, às 18h
Endereço: Praça Tiradentes, s/n – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20060-070. Tel: (21) 2332-9257

Ingressos: R$ 50,00 – inteira

    R$ 25,00 – meia entrada

Bilheteria: terça a sexta, de 13h às 18h, sábado de 15h às 18h

Vendas online:https://funarj.eleventickets.com/

Duração: 80min
Capacidade: 1.139 lugares 

Classificação indicativa: 14 anos

Acesso para pessoas com necessidades especiais