Mãe de Santo
Antigamente o Natal não escapava do teatro: por toda a parte surgiam autos de celebração da data e os presépios vivos faziam sucesso. Ainda não foi escrita, mas há uma história teatral rica em eventos religiosos, se associarmos o palco com o calendário cristão, o católico em particular, no caso brasileiro.
O segredo da escolha? Coisa simples: o teatro não podia sobreviver se ficasse parado, cismando com os seus botões, longe da vida das gentes. Então, apesar das proibições religiosas de representação nos dias santos, arranjava-se um meio de abrir a bilheteria e atrair o público, sem pecar… Naquele tempo, o teatro precisava do público para existir.
As coisas mudaram. A vida segue. Inventamos o teatro sem público. O ator Cecil Thiré (1943-2020) gostava de anunciar que o palco nacional caminhava para este estranho feito. E profetizava que, um dia, a temporada das peças iria se reduzir à noite da estreia, encerrada com um coquetel festivo entre o elenco, o marketing e a direção da empresa patrocinadora, sob o testemunho da imprensa especializada, com ou sem público…
Então, vamos lá, a pergunta de final de ano se impõe: a nossa classe teatral sabe quem é o seu público? Entende as razões capazes de mover um cidadão de sua casa até o teatro? Este assunto ainda interessa aos profissionais de teatro? Por que as representações de temas natalinos desapareceram? Viramos todos descrentes?
Fiquei enrodilhada nestas perguntas ao me deparar com o notável sucesso de público da excelente peça Mãe de Santo, cartaz até as vésperas do Natal na Casa de Cultura Laura Alvim. Uma beleza vizinha do indizível revestia a cena: era a religião do teatro em estado puro. A temporada terminou, mas não se preocupe, ela vai voltar ao cartaz em 2023, pois, sem dúvida, é para ver e rever – é um daqueles espetáculos históricos.
Vale a pergunta – de onde vem a força vital admirável deste trabalho? Em parte, a explicação está na ficha técnica, composta por nomes memoráveis; em parte o segredo nasce da profunda inteligência histórica mobilizada pela equipe.
Com direção geral de Luiz Antônio Pilar, o espetáculo contou com a dramaturgia afiada de Renata Mizrahi, redigida a partir de material contundente oferecido pela obra de Helena Theodoro. Sob o foco, está a mulher preta, mas a visão extrapola todos os estereótipos e reducionismos, para chegar a uma dimensão transcendental, acima e além de todas as miudezas e pequenos papéis. Neste caso, mãe de santo não significa apenas ser liderança religiosa ou comunitária, mas grandeza humana absoluta, todas as mulheres pretas do mundo e, por quê não?, todas as mulheres.
Nasceu assim o encanto capaz de enfeitiçar as plateias abençoadas com a chance de ver a encenação. Protagonista exemplar, em estado de graça e de magia, a notável atriz Vilma Melo evolui em cena como se fosse uma renda feminina de muitas tramas.
O fio condutor – ora narrado, ora representado – surge logo de saída, na figura de uma mulher negra famosa, com alentada agenda de sucesso internacional. Estrategicamente, histórias de outras mulheres negras, histórias até da própria atriz, são incorporadas, num impacto crescente.
O fluxo do texto tem requinte: a identificação dos nomes reais que viveram cada história, bem clara no final, não reduz o alcance da proposta, não faz da peça uma coleção de casos particulares; cria, antes, uma emocionante cadeia de libertação feminina. E humana.
Ao lado de uma capacidade intensa de expressão emocional, hábil o bastante para eletrizar os sentimentos do público, Vilma Melo desenha climas sutis com o corpo no espaço e modula a voz, no canto, como se invocasse todos os deuses do mundo. A performance da atriz no palco expressa com rigor o que deveríamos chamar de brasilidade contemporânea.
A direção de Luiz Antônio Pilar impõe ao trabalho uma espessura poética admirável. Além da direção preciosa da atriz, Pilar concebe a cena como construção visual dotada de fina geometria, qualidade hábil para gerar um fluxo de imagens arrebatadoras.
A direção de arte de Clívia Cohen concebeu uma cena a um só tempo limpa, moderna e ancestral. Há uma singela cadeira-trono de alguma imponência, delicadas sugestões de cercas-paliçadas tribais ao fundo e um impressionante painel de turbantes femininos, uma instalação assinada por Renata Mota, submetido a efeitos de luz dignos de nota.
Minimalista, sob a inspirada luz de Anderson Ratto, a cenografia integra a ação – se torna, simbolicamente, uma força em movimento. Assim, em diferentes momentos, diversas imagens se projetam nas retinas: os turbantes sugerem chapéus de praia infantis, logo se tornam conchas caracóis do mar daquelas para ouvir os sons fundamentais da criação e até búzios reveladores dos destinos dos seres.
Outro tanto de efeitos arrebatadores nasce da excelente trilha sonora original composta por Wladimir Pinheiro. A música consegue mesclar africanidade, brasilidade e ocidente, oferece uma gama de efeitos eficiente para desvelar a alma do mundo. O mesmo tom pode ser observado no figurino praticável: manuseado pela atriz, ele revela algo do trajeto do corpo brasileiro na história. Aliás, uma pista importante para dimensionar o alcance da encenação nasce justamente do figurino, uma roupa marcada pela africanidade, mas abstrata o bastante para sugerir diversos arquétipos de beleza.
Então, há uma operação estética peculiar, mãe de santo traduz um fluxo de arte, uma qualidade plástica – deixa de ser um atributo pessoal e imediato, uma função social localizada, para se tornar mãe do mundo. Mãe é aquela que cuida: dos ancestrais e dos contemporâneos, logo do futuro, de quem virá. Consequentemente, amplifica-se a presença da condição feminina.
Então, ser mãe de santo significa potencializar o amor mulher. No palco, o espetáculo deixa evidente a beleza arrasadora do ato de amor maior que fundamenta a trajetória feminina. De certa forma, se, segundo a tradição, as mulheres negras são as mães de santo, pois foram elas que cultivaram a prática a maior parte do tempo, a peça aponta a realidade feminina mais profunda, a condição geral das mulheres, que, obrigatoriamente, existem como mães de santo, luzes dos caminhos da vida.
No texto, a partir da história sofrida, de muita luta e de muita dor, de Helena Theodoro, história que ela transformou em iluminação para abrir caminhos para todos, múltiplas mulheres negras surgem, com suas vitórias e derrotas, suas lutas e resistências, os seus enfrentamentos aos preconceitos e aos bloqueios sociais. Nada figura, porém, como rosário de lágrimas, mas sim como rosário de luz.
Talvez sob esta avaliação se possa vislumbrar os motivos do sucesso da montagem: diante de tempos tão difíceis, ver em cena um recorte repleto de esperança na luta, conduzido pela essência maior da humanidade, o amor professado pelas mulheres, parece ser um bálsamo.
Quer dizer – o espírito do projeto toca a necessidade humana do momento, um pouco como faziam os espetáculos cristãos dos natais de outrora. Visto sob este ângulo, Mãe de Santo foi, no Rio de Janeiro de 2022, o grande espetáculo de Natal do teatro.
Ficha técnica
Argumento/texto: Helena Theodoro
Direção: Luiz Antônio Pilar
Com: Vilma Melo
Texto: Renata Mizrahi
Direção de arte: Clivia Cohen
Instalação de Turbantes: Renata Mota
Assistente de direção: Ruth Alves
Direção de fotografia: Daniel Leite
Fotos: Daniel Leite e Guga Melgar
Trilha sonora: Wladimir Pinheiro
Sonoplastia: Vilson Almeida
Iluminação: Anderson Ratto
Visagismo: Estúdio Belezura
Programação visual: Patrícia Clarkson
Design gráfico e comunicação: Rafael Prevot
Assistente de mídias sociais: Natasha Arsenio
Assessoria de imprensa: Alessandra Costa
Direção de produção: Bruno Mariozz
Produção e idealização: Palavra Z Produções Culturais
SERVIÇO
Mãe de santo
O espetáculo cumprirá novas temporadas em 2023.
Temporada de estreia em 2022: de 25 de novembro a 18 de dezembro
Sessões: sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 19h
Local: Teatro Laura Alvim
Endereço: Av. Vieira Souto
Duração: 45 minutos
Ingressos: R$ 15 / R$ 30
Classificação indicativa: 12 anos