Amar é para os fortes
Esqueça aqueles pensamentos antigos, bolorentos, inclinados a juntar amor, carinho e fraqueza. Se você vive no Rio de Janeiro hoje ou, mesmo que seja à distância, ama o Rio ou conhece bem a cidade, você vai concordar. Amar é para os fortes…
Para tirar a prova dos nove, enverede por um desafio simples. Faça uma incursão pelo Centro da cidade. Não, não precisa ser à noite ou no final de semana. Pode ser de dia mesmo, à tarde. Claro, se você gosta de teatro, terá que fazer o teste à noite e, aí, prepare o seu coração para o sertão que vai encontrar.
O preço do amor, neste caso, surpreende: exige uma fortaleza inacreditável. O Centro da cidade virou um deserto cheio de perigos e ameaças. Uma tristeza infinita envolve quem tenta a aventura. Como o ponto vital de uma cidade, o grande núcleo histórico do seu nascimento, pode ser arruinado assim, de forma tão patética?
Pois, sim, o Rio nasceu no Centro, fugiu da exposição fácil aos inimigos oferecida pela praia da Urca. Também, por lá, fizeram apenas uma singela paliçada, difícil de defender. O melhor foi buscar abrigo no Morro do Castelo, com uma fortaleza – e não é que derrubaram o morro? Gente insana de escasso amor, claro. E como se não bastasse, agora a demolição ameaça o Centro, mas o assombro vem de ser uma demolição em geral… Uma demolição diferente: descaso, incúria e o que mais?…
Confesso: o meu coração não consegue entender. O problema mais grave nasce de uma constatação simples – apesar do nosso namoro com a era digital, com a vida virtual, cidades ainda são corpos espaciais objetivos que demandam a existência de um centro, um coração urbano, um ponto ao redor do qual a vida corre. Ainda não conseguimos criar outra estrutura, em rizoma ou virtual, sei lá. Portanto, que medo: quando o Centro de uma cidade morre, uma suspeita maior assola as mentes – a suposição de que a cidade toda, sem coração, está à morte.
Mas vamos agir, não? Se precisamos ser fortes para encarar a ruína do Centro do Rio, podemos ser práticos para buscar soluções. Como a região ainda abriga um formidável número de instituições culturais, incontáveis exemplares de uma arquitetura histórica impactante e uma rede de vias, ruas, becos, ruelas, de comunicação eficiente, a hora é agora para pôr em andamento projetos culturais de dinamização.
Se as empresas fugiram do Centro, se o comércio enfrenta dias de grande penúria e as repartições públicas minguam, a única chance de revitalizar a região está na cultura. Na verdade, o investimento vertiginoso em arte e cultura parece ser a única solução para a falência geral da cidade.
Cabe ao prefeito dar a partida. Claro. O prefeito Eduardo Paes precisa agir para ontem. De saída, há um rol imenso de iniciativas fáceis e decisivas que podem ser postas em andamento.
Ptaça Tiradentes, Teatro Carlos Gomes, imagem CEDOC Funarte.
Para começar, existem muitos grupos de teatro na cidade carentes de espaço próprio – o senhor prefeito pode fazer um edital para a ocupação imediata, apoiada pela prefeitura, de espaços livres disponíveis, por grupos interessados em organizar um local de trabalho. Os espaços devem servir para a produção e o ensaio de espetáculos, bem como para a apresentação.
Uma outra linha de trabalho preciosa pode unir a educação e a cultura – a criação de roteiros culturais permanentes no Centro, para a visitação escolar rotineira, com monitores especializados. Os monitores podem ser os integrantes dos grupos teatrais interessados em história da cidade ou estagiários bolsistas universitários. Está na hora, aliás, de a prefeitura criar uma fundação de pesquisa da cidade, uma FARIO, para acelerar o investimento na cultura carioca.
Ainda apostando na vitalidade universitária, a prefeitura pode unir a ideia das áreas de lazer, vigentes nos domingos e feriados, com um projeto de extremo sucesso, antigo, realizado no MAM – os Domingos da Criação. Basta escolher algumas ruas estratégicas do Centro, interditar o trânsito, contactar instituições universitárias dispostas a colaborar e tocar a agenda. Sucatas industriais de tecidos e papel, possíveis doações de fábricas, se tornam excelente matéria-prima.
Uma versão nova dos antigos domingos também poderia ser planejada com as escolas de samba – uma forma de carnaval do povo – com oficinas de samba e de carnaval abertas ao público. Por sinal, na Cidade do Samba existia um show, capitaneado por Milton Cunha, de extrema competência para difundir as artes do carnaval carioca. Poderia surgir algo com este alcance, nas ruas, para injetar alguma vida em tantas ruas mortas.
A revolução vital do Centro não apresenta dificuldade para acontecer – basta ter vontade política e arregaçar as mangas, pois dará algum trabalho. Nada, contudo, comparável ao desgaste de conviver com uma cidade cadáver, um coração urbano inativo, morto por desamor.
Praça Tiradentes, Moulin Rouge, foto CEDOC Funarte.
Ao que tudo indica, existiram grupos teatrais dedicados a celebrações urbanas no Rio de Janeiro de outrora, muito embora a sua história esteja por ser escrita. O único sinal de sua existência recebeu a atenção de Galante de Sousa (O Teatro no Brasil). O pesquisador observa que, na falta de jornais, os espetáculos da cidade colonial eram anunciados por bandos, com a localização de apenas um deles, autorizado a divulgar a apresentação da noite em praça pública no mesmo dia da execução de Tiradentes. Existia, portanto, um teatro de rua cuja história nos escapa.
O tema do teatro itinerante – em cortejo, melhor dizendo – foi bem pouco estudado até o presente, infelizmente, pois a prática pode revelar fatos importantes sobre o passado da nossa cidade. Ao lado dos temas religiosos, ligados às procissões do catolicismo, e dos temas políticos, pois os cortejos constituíram também formas importantes de aclamação de autoridades, o cortejo criou um padrão arquetípico para o carioca, com ou sem adesão dos passantes, ao ponto de desembocar nos desfiles de carnaval.
Em tempos recentes, mais exatamente em 1992, Aderbal Freire Filho encenou um espetáculo itinerante, Tiradentes, a Inconfidência no Rio, um tipo de evento teatral de absoluto espírito carioca. Mas que, para se impor no calendário urbano, precisaria da lucidez dos poderes públicos, coisa nem sempre disponível por aqui.
Grupo Teatro ao Redor, Alex Teixeira, Clarisse Zarvos e Rach Araújo. Foto Diogo Nunes.
Pois agora entrará em cartaz uma proposta de excepcional qualidade para a recuperação do Centro e até mais. A Travessia Tiradentes, com estreia prevista para dia 8 próximo, às 16h., do grupo Teatro ao Redor, vai ser um belo elixir para a redenção da alma da cidade. Trata-se de um projeto multiplataforma – várias atividades serão oferecidas aos espectadores, ao lado da peça cortejo. Não vai faltar atividade: música, intervenções plásticas e exposição de mural de fotos e materiais diversos estarão na ordem do dia.
Para surpreender o público, a equipe, integrada por Alex Teixeira e Clarisse Zarvos, reuniu dados de extensa pesquisa. Se a praça conta hoje com apenas dois teatros, um total de 40 estiveram localizados na região, ao lado de cafés, cinemas e muitas outras atrações populares. Até mesmo o desenho geral dos teatros, ungidos com palco à italiana, obedecia a um outro modo de pensar a diversão – algumas casas ampliavam as ofertas de convivência de forma enfática, pois reuniam atrações dignas dos parques de diversões, e contavam com casas para residentes.
Teatro ao Redor – foto Diogo Nunes.
O convite tem tudo para recuperar o romance tórrido dos cariocas com a Praça mais querida de toda a história da cidade. Uma torcida parece obrigatória – que este seja o primeiro de um longo passo para uma lua de mel urbana.
Afinal, amor é amor, e nunca é demais – a Praça Tiradentes sempre soube como fazer o cidadão feliz. Lá nasceu o teatro de revista, o musical e muitas pautas grandiosas da MPB.
De certa forma, podemos dizer que a velha praça ensinou a cidade a cantar e inculcou nos corações o amor pelo teatro cantante. Por isto, não deveria nunca enfrentar o abandono resultante de um amor tóxico, destilado por amantes ingratos.
Afinal, a discussão do tema está em cena numa peça musical, cartaz recente de horário alternativo. Mas, graças ao amor do público, ela está de volta e fará esta semana mais duas apresentações: corra para ver, pois é um novo musical biográfico de inspiração redondinha.
Tauã Delmiro, Analu Pimenta e Victor Maia. Foto Amyra Alaouieh.
O muso sob o foco é o cantor Fábio Jr., cuja obra foi estudada para a elaboração da comédia musical As metades da laranja, em cartaz no horário alternativo do Teatro Prudential. Escrita e dirigida por Tauã Delmiro, a peça conta a história de amor de um casal, Dom e Linda, afetada por ciúmes com intensidade bastante para transformar a relação em amor tóxico.
O roteiro de canções inclui os sucessos Alma gêmea, Pai e Só você e chega a um total de 16 canções, cantadas ao vivo pelos atores com o piano de Tony Luchesi. Naturalmente, o formato convida a plateia para cantar junto, celebrar o amor e homenagear o cantor-tema da montagem.
Tauã Delmiro. Foto Amyra Alaouieh.
Não há qualquer dúvida: o objetivo aqui está muito claro. Se no passado a literatura aclamou o sertanejo com suas agruras na caatinga como um forte, um novo capítulo da brasilidade aparece na tela da alma nacional.
No violento deserto urbano do Centro da cidade, agora um lugar, por abandono histórico progressivo, transformado em espaço humano árido, o carioca, amante do Rio, devoto de sua cidade e apaixonado por teatro, pode mostrar que é antes de tudo um forte. A sua fortaleza vem do amor, colorida, definitivamente, por profundas densidades musicais populares. Que este amor nos abençoe, acorde os nossos impulsos vitais maiores e faça com que tenhamos força para restabelecer os encantos mil do outrora célebre coração do país. O altar celebrado no hino deve voltar a ser um lugar para cantar alegremente a beleza da Cidade Maravilhosa…
Evoé, Rio.
Travessia Tiradentes
Serviço:
Local: Praça Tiradentes, s/nº – Centro (ponto de partida: atrás da estátua equestre de D. Pedro I)
Datas: 8/09 a 1º/10 (quinta a sábado)
Horário: 16h
Informações: (21) 97121 0081 (WhatsApp)
Instagram: @teatroaoredor
Duração: 60min
Gênero: teatro documental (peça site specific)
Classificação indicativa: Livre
Capacidade: 30 pessoas
Ingresso: Gratuito
Exposição:
Temporada: de 8/09 a 1º/10
Onde: Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Sala Multiuso 1
Dia/Hora: segunda a sábado, das 10h às 18h,
Endereço: Rua Luís de Camões, 68 – Centro
Faixa etária: livre
Entrada: gratuita
Ficha técnica:
Direção, dramaturgia e performance: Alex Teixeira e Clarisse Zarvos
Direção musical e performance musical: Rach Araújo
Direção de arte e figurino: Elsa Romero e Lia Maia
Fotografia e mídias sociais: Diogo Nunes
Design: Alessandra Teixeira
Pesquisa: Alex Teixeira e Clarisse Zarvos
Produção: Aninha Barros
Assessoria de imprensa: Lyvia Rodrigues (Aquela que divulga)
Realização: Teatro ao Redor
Edital FOCA 2021, Prefeitura do Rio de Janeiro, categoria Artes Urbanas.
As Metades da Laranja – Um Musical
Teatro Prudential
Endereço: R. do Russel, 804 – Glória, Rio de Janeiro
Classificação: 12 anos
Temporada: Dias 6 e 7 de setembro de 2022
Dias e horários: Terças e Quartas, às 20h.
Duração: 70 min
Ingressos: entre 25 e 70 reais
ingressos à venda pelo https://bileto.sympla.com.br/event/72356/d/132185
Ficha Técnica
Texto e direção: Tauã Delmiro
Co-direção: Manu Hashimoto
Direção musical: Tony Lucchesi
Elenco: Analu Pimenta, Victor Maia, Tauã Delmiro e Tony Lucchesi
Produtor Assistente: Isaac Belfort
Fotografia: Amyra Alaouieh
Consultoria: Débora Polistchuck
Realização e Direção de Produção: Produtora Alada
Assessoria de imprensa: MercadoCom (Ribamar Filho e Leonardo Minardi)
Instagram oficial: https://www.instagram.com/asmetadesdalaranja/