Adeus ao teatro?
É consenso: o teatro é prisioneiro do seu próprio tempo. Ele existe como se fosse uma sala de visitas da vida. Ou uma sala de jantar. No abrigo que ele oferece, está na pauta a conversa, com frequência muito densa, entre os contemporâneos.
De certa forma, o teatro transforma os seres que atrai para si, para o palco e para a plateia, numa vibrante família, a família dos seres do agora. Como acontece em todas as famílias, os encontros são marcados por lavagens de roupa suja, celebrações, confrontos, ajustes de contas e gargalheiros. Vale tudo, ao pé do abajur ou ao redor da mesa de jantar.
Sim, esta constatação vem do século XIX. A sua melhor fórmula foi escrita por Francisque Sarcey (1827-1899), o grande crítico inspirador de Artur Azevedo (1855-1908). Para o célebre francês, o teatro deveria se manter em transformação permanente.
Nesta abordagem, a cada geração, ele deveria incorporar os interesses e gostos do momento. Vale dizer: deveria manter sintonia fina com o senso comum. Em consequência, viver do pensamento pequeno de cada época. Esta condenação, quase uma praga daquelas gregas, traz perguntas acachapantes.
A primeira é a mais rascante – o teatro, que seria uma velha arte, é um engenho descartável? Se é assim, como o teatro poderia cogitar se tornar clássico? Alguém, no futuro, entende as vozes distantes do passado que insistem em bradar palavras antigas? O teatro morre com os seus?
O tema é particularmente importante para o teatro brasileiro. Talvez, neste caso, estejamos diante de um natimorto – pois, apesar das lutas e das paixões pontuais aqui e ali despertadas, a grande arte amada pelos brasileiros foi sempre… a música! Vivemos no adeus ao teatro, então?
Algum espírito cruel diria que somos, por aqui, absolutamente realistas. Ou melhor, monarquistas. Pois justamente a música impregnou a alma brasileira por ser a arte preferida da família de Bragança. Vale lembrar que, fosse qual fosse o resultado, D. Pedro I, nosso libertador do jugo português, era compositor!…
Bom, nada de ótica preconceituosa, importa destacar. Afinal, a música, de fato e de direito, possui o dom de embriagar as almas. Mas, justamente nesta embriaguez, reside uma diferença importante: a música fala a cada um, nos faz solitários. Não existe, na dinâmica da arte musical, a ideia de coletivo, cara ao teatro. Na música, sobrevivemos sensíveis como indivíduos, não somos uma família, nem somos expostos às nossas ideias.
Um exemplo? Basta pensar no fantástico evento de empreendedorismo que é o carnaval das escolas de samba. Ali, apesar da estrutura de organização da “escola”, o desfile acontece por que um bando de gente deseja e quer. E vai. O folião vem da Noruega, do Japão ou do Leblon e desaba na avenida. Os ensaios técnicos nasceram há pouco tempo e, no final das contas, não são essenciais.
Portanto, fica evidente, nesta linha argumentativa, o quanto o teatro mora longe do Brasil – está para lá da Noruega ou do Japão. Provavelmente não está no Leblon. Pois o Brasil, apesar da Independência em breve bicentenária, pulsa bem lá no seu interior como se fosse um emaranhado de aldeias coloniais estanques. Neste redemoinho de almas, em lugar da pulsação da pátria, no máximo podem ser localizadas pequenas famílias, grupelhos aldeãos. Um multidão de indivíduos solitários e egoístas, em geral indiferentes ao todo.
Há a grande nobre aldeia – a do poder e dos poderosos, aquele percentual mínimo afortunado da população. A fortuna, aqui, aliás, pode até mesmo significar apenas o acesso aos mais altos graus de formação. Em geral, o teatro brasileiro persiste em prática neste recorte social. E o grosso da classe teatral vive ou tenta viver neste lugar.
Depois, vêm as aldeias medianas, marcadas por coloridos variados, em função das ocupações profissionais e dos meios de vida. Às vezes o teatro consegue ecoar em alguns pontos deste núcleo, às vezes existe prática de teatro neste espaço social. Mas a cena figura aqui como fato acidental.
A seguir, uma profusão de círculos gigantescos faz a base da sociedade, numa incontável dança de geografias físicas e sociais. Claro, inúmeras formas de arte de inspiração teatral ou para teatral fervilham neste meio. Porém, em geral, são práticas amadoras, espontâneas, com escasso eco no jogo social geral. O teatro acontece longe desta multidão, o caldeirão Brasil.
Sob este desenho social histórico, compreende-se a dificuldade para a difusão do teatro. Apesar da classe teatral ser sempre progressista e politicamente engajada, historicamente ela faz teatro dentro da aldeia nobre a para a aldeia nobre. O cúmulo da contradição, capaz de explicar os motivos porquê este teatro para ricos não vinga, não fica forte, surge de uma trava poderosa: com frequência a aldeia nobre desgosta do que é nacional, desgosta do teatro. Pois estes requintados nobres não querem integrar a tal família de teatro, assumir um pensamento coletivo: eles são especiais, diferentes. Vivem no ritmo do “fora, gentalha.”
A tensão vem também desde o século XIX: os nobres viajam, acompanham o teatro internacional, que reputam divino, e muitos expressam um profundo desprezo pelo teatro local. Diante deste quadro, vários intelectuais e artistas buscaram se mobilizar para “elevar” o nível do palco da pátria, transplantar formas perfeitas estrangeiras e combater formas populares, “grosseiras”, bem sucedidas (todas hoje extintas), como as revistas.
O caminho do tempo, do século XIX para o século XXI, não trouxe uma mudança de fundo nesta dinâmica – o fato notável foi a liquidação do teatro popularesco e do teatro comercial. A única fresta de luz nasceu com a retomada dos musicais, gênero hábil por aclimatar a verdadeira paixão do brasileiro, a música, no jogo teatral.
Assim, dá para dimensionar com bastante clareza o fato histórico da redução (ou demolição) dos edifícios teatrais e a sua localização nos bairros “nobres” das cidades. Este fato nasce como uma derivada direta do alcance social, tão reduzido, trabalhado pelo teatro. Hoje, talvez não se tenha no país público de teatro, mas apenas plateia eventual para certos espetáculos, muito embora o teatro musical caminhe para implodir esta situação, pois o público de musical, primo jovem do velho povo da ópera, se notabiliza por sua fidelidade.
Portanto, isto não significa que este teatro, hoje sitiado, não interesse ao conjunto da sociedade e não possa falar para todos os trabalhadores do Brasil. Existem perspectivas estratégicas para viabilizar a afirmação do teatro na sociedade. Para tanto, seria necessário contar com políticas publicas permanentes de formação da cidadania. Quer dizer, contar com investimentos, fortes e estáveis, no trabalho com a sensibilidade cidadã. Numa expressão curta, é preciso querer formar a tal família brasileira, aquela na qual o teatro, na verdade, gosta de viver.
Uma política publica primordial é a prática do teatro-escola; a segunda, a construção e a manutenção de edifícios teatrais; a terceira, a política de ingressos-cidadão; a quarta, o estímulo à edição de textos e de literatura especializada. Para quem estuda história do teatro brasileiro, um grande exemplo de busca de implantação de política publica consistente foi a gestão Orlando Miranda no Serviço Nacional de Teatro. Então, não é nada impossível. Basta que se queira edificar um país, no lugar de um aglomerado de aldeias selvagens.
Importa, sem dúvida, construir lugares de memória. Quer dizer, apostar em práticas, rituais, cerimônias, procedimentos capazes de oferecer grandes balizas para a sensibilidade coletiva. Se os avanços políticos levam, na atualidade, à necessidade de demolir marcos da dominação ou da desumanidade histórica criminosa – por mais polêmica que estas ações possam ser – deveria ser parte da reivindicação instaurar forças poéticas libertadoras como referência coletiva.
O raciocínio é simples: se tiramos um vulto como Borba Gato (1649-1718) da praça, por que não aclamarmos um Gregório de Matos (1636-1696) ou um Vasques (1939-1892)? Estes teriam a vantagem de propiciar a construção de monumentos palanques – monumentos em que periodicamente se poderia recitar poesias ou apresentar cenas, conforme o caso.
Quantos nomes permanecem trancados no limbo, distantes, plenos de energia para, graças ao seu contato, promover a transformação dos indivíduos e da sociedade? E insistimos em mantê-los congelados, fora do nosso tempo. Pois, se o idioma português nem sempre celebrou a cena, muito ele fez pela palavra. A estante beira o infinito. De certa forma, na nossa tradição, ela começa na Grécia.
Uma boa nova: está em cena um espetáculo que pode funcionar como prova de ouro para estas afirmações. O ator Daniel Dantas está em cartaz no Teatro Petra Gold com a inspirada Ilíada de Homero. No monólogo, ele apresenta o Canto 1 do poema e interpreta dez personagens.
A iniciativa é parte de um movimento cultural de grande densidade, liderado pelo diretor Octavio Camargo. Em 1999, ele fundou a Cia Iliadahomero de Teatro. O objetivo, perseguido com brio e sucesso, é o de apresentar em cena o texto original do belo poema, ao lado de outras obras literárias de grande interesse artístico.
Com trajetória nacional e internacional – o projeto já se apresentou até mesmo na Grécia – o coletivo apresenta a singularidade de ser a única companhia de rapsodos do mundo. Há uma aguda inteligência teatral no centro deste fazer: de certa forma, a proposta usa a ideia do individualismo brasileiro para envolver o texto clássico em valores cênicos atuais e disseminar potência poética.
Daniel Dantas interpreta ao todo dez personagens – Agamemnon, Aquiles, Crises, Calcas, Júpiter, Juno, Nestor, Tétis, Ulisses e Vulcano. Para ampliar o desenho narrativo, a luz foi construída com extrema acuidade, tanto para a definição da ação e a sugestão da ambiência, como para o colorido de cada personagem.
Na verdade, não se trata de uma iniciativa isolada: a companhia pretende realizar a montagem integral da Ilíada no Rio de Janeiro em 2022, com atores de nomeada interpretando cada um dos 24 cantos do texto clássico. De certa forma, estes rapsodos trarão um pouco do muito que falta ao Rio: simplesmente nos farão contemplar o texto considerado como fundador do pensamento grego. Talvez falte exatamente isto, no Rio e no teatro nacional – o velho e bom hábito do pensamento.
Um exemplo? Por décadas a cidade ficou sem um palco que foi sinônimo exemplar de carioquice, o Teatro Copacabana Palace. Só a falta absoluta de ideias pode explicar o fechamento da casa, em 1994. Historicamente, o Copacabana tentou se tornar o grande motor da vida teatral carioca quando ela migrou do Centro para a Zona Sul, num processo aldeão muito radical.
Pois bem – para brindar a vida, a saúde e a possibilidade de transformar o teatro em ferramenta social relevante, o Teatro Copacabana Palace está anunciando a sua reabertura, justamente com um musical de homenagem à história da fabuloso hotel. Com certeza o evento, com preços de mercado, estará distante da possibilidade de romper com os limites aldeãos do teatro. Contudo, o fato de reverter o processo de fechamento de palcos representa por si uma virada histórica sensacional.
E parece no mínimo espirituoso ter a reabertura da casa com um texto dedicado a um capítulo efervescente da história do Rio de Janeiro. Com dramaturgia assinada por Ana Velloso e Vera Novello e direção de Gustavo Wabner e Sergio Módena, o original idealizado por Gustavo Wabner explora a história do hotel e do palco sob uma aura de magia e encanto.
Logicamente, uma das referências básicas do texto é o livro do jornalista Ricardo Boechat, obra fundamental em qualquer estante de história do Rio de Janeiro. Boechat cultuou sempre a grandiosidade histórica do hotel, um empreendimento capaz de transformar um areal distante em um oásis de sonho, cercado por um bairro que se tornou lenda.
O fio condutor – um pouco como se fosse a estrutura de uma revista – tece prováveis memórias de Mariazinha Guinle, esposa do construtor do hotel, Otavio Guinle. O artifício sustenta a exposição da cena como feérie, fluxo propriamente teatral. A cena, sob este cálculo, pode ser apenas isto: uma homenagem de agora ao grande monumento hoteleiro, segundo o gosto do nosso tempo. Não se trata nem de teatro documental, nem de reconstrução histórica, mas, sim, de celebração.
Portanto, o musical, com um elenco de 20 artistas sob a liderança de Suely Franco, Vanessa Gerbelli e Claudio Lins, materializa de forma não cronológica um imenso tesouro de memórias cariocas. Há uma aposta decidida no amor ao Rio. Sob um cálculo agudo, a montagem focaliza o grande lugar de emergência da cidade no momento, o coração do Rio, combalido, sem oxigênio, mergulhado em crise por todos os lados.
A magia do palco deseja agir neste caminho – da zona norte à zona sul, fomos, somos e seremos sempre Copacabana. Do norte aos pampas, Copacabana nos enfeitiça e envaidece. Qual o segredo? O que causa este arrebatamento? A possibilidade de deixar a sensibilidade fluir, viva e livre? Quem responderá? O resultado é claro: vamos ficar na torcida, quem sabe conseguiremos superar a solidão cruel destes tempos e deste dilacerado Brasil, para pulsarmos, com muita música, como uma família: a família do teatro.
Seja bem vindo, senhor teatro.
Espetáculo “Ilíada de Homero”, com Daniel Dantas
Ficha Técnica:
Texto: Homero
Tradução: Odorico Mendes
Direção: Octavio Camargo
Projeto: Cia Iliadahomero de Teatro
Fotos: Crédito: Callanga / Agência Amarelo Urca).
Divulgação: Rodrigo Duarte – Lide Multimídia
Serviço:
Local: Teatro Petra Gold
Endereço: Rua Conde de Bernadotte, 26 – Leblon (Rio de Janeiro – RJ)
Datas e horários: 11, 12, 18 e 19 de dezembro (sábados e domingos) às 20h no Teatro Petra Gold,
Ingressos: R$ 30 (meia) e R$ 60 (inteira) à venda no site do teatro: www.teatropetragold.com.br (obs: é necessário apresentar comprovante de vacinação)
Classificação: 14 anos
Duração: 60 minutos
Informações: (21) 2529-7700
Copacabana Palace – O Musical
Ficha Técnica
Idealização: Gustavo Wabner e Sergio Módena
Texto: Ana Velloso e Vera Novello
Direção: Gustavo Wabner e Sergio Módena
Elenco Protagonista: Suely Franco, Vanessa Gerbelli e Claudio Lins
Elenco Coadjuvante: Saulo Rodrigues, Ariane Souza, Erika Riba, Julia Gorman, Ana Velloso, Luiz Nicolau, Daniel Carneiro, Chris Penna, Guilherme Logullo, Hugo Kerth, Natacha Travassos e Patricia Athayde
Músicos:
Heberth Souza – teclado e regência
Evelyne Garcia – teclado, acordeom e regência
André Dantas e Thiago Trajano – Guitarra e violão
Marcio Romano – bateria e percussão
Tassio Ramos e Pedro Aune – contrabaixo acústico e baixo elétrico
Direção Musical: Heberth Souza
Arranjos: Heberth Souza e Evelyne Garcia
Coreografia e Direção de Movimento: Roberta Fernandes
Cenografia: Natália Lana
Figurinos: Karen Brusttolin
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Direção de Imagens: Irmãos Vilarouca
Projeto de Som: Branco Ferreira
Visagismo: Guilherme Camilo
Assistência de Direção: Hugo Kerth
Assistência de Direção Musical: Evelyne Garcia
Programação Visual: Cacau Gondomar
Fotografia: Renato Mangolin
Mídias Sociais: Rafael Teixeira
Registro Videográfico: Chamon Audiovisual
Gestão do Projeto: Renata Leite – Rinoceronte Entretenimento
Assistente Financeiro: Patricia Basilio – Rinoceronte Entretenimento
Direção de Produção: Alice Cavalcante, Ana Velloso e Vera Novello
Realização: Sábios Projetos e Lúdico Produções
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
Serviço:
Estreia: dia 18 de dezembro (sábado), às 19h
Teatro Copacabana Palace – Av. Nossa Sra. de Copacabana, nº 291
Tel: (21) 2548-7070
HORÁRIO: sempre às 19h
INGRESSOS: 240,00 e 120,00 (meia); balcão: 50,00 e 25,00 (meia)
VENDAS: www.sympla.com.br
CAPACIDADE: 332 espectadores
DURAÇÃO: 120 min
GÊNERO: musical
CLASSIFICAÇÃO: 12 anos
TEMPORADA: até 06 de fevereiro de 2022
SESSÕES EM DEZEMBRO: 18 e 19 de dezembro de 2021 (sab e dom) às 19h; 21, 22 e 23 de dezembro de 2021 (3ª, 4ª, 5ª) às 19h; 28, 29, 30 de dezembro de 2021 (3ª, 4ª, 5ª) às 19h
SESSÕES EM JANEIRO E FEVEREIRO: de 5ª a domingo, sempre às 19h
▶ no primeiro final de semana do ano, excepcionalmente, não haverá sessão no sábado dia 08/01, e sim na quarta dia 05/01
PARA LER E CURTIR:
O sensacional livro de Ricardo Boechat:
Como nasceu Copacabana?
O ator Vasques e a sua imensa carioquice: