A vacina e a peste
Agora, a solução. Estaríamos perto da saída, depois de um longo túnel escuro. Alguma luz iria surgir logo ali, de imediato, de repente. Pensávamos… A vacina, teremos a vacina! O fim está perto!
E então anunciam que não, ele não está assim tão ao alcance. O remédio ainda vai demorar. A incapacidade do governo desgoverna o caminho. E não é só isto. Ondas vertiginosas de gente nas ruas deram corpos para a retomada da maré de contaminação.
Ah, há ainda mais. Há ainda a novidade do momento, a dúvida se a vacina trará proteção absoluta. Afinal, qual a proteção que ela traria? Ou seja, segundo a pergunta espinhosa, talvez a vacina ainda não seja a saída, não completamente… Sabemos apenas traços do mal, o seu retrato é esbatido.
Lembro a todo momento dos navegantes antigos à deriva no mar infinito desconhecido, a cabeça repleta de histórias de monstros horrendos, bocarras escancaradas de assombração. De que matéria especial seria feita a sua coragem? Como explicar o ímpeto para largar Ítaca – ou algum Portugal tão afetuoso – para abraçar o ignoto?
Estamos em pleno mar agora. Um estranho mar, novo e inclemente. Imaginário. Inimaginável. Teatros fechados, ruas vazias, comércios quebrando, amigos morrendo, conhecidos sofrendo, hospitais lotados. As fibras de nossa humanidade vergam, resistem a uma tensão inédita.
A novidade deste mar nasce do fato de não termos partido. Estamos trancados em casa, ancorados. Ao redor, o oceano se faz de uma espessa massa de desconhecimento, não saber. Tudo o que foi decifrado em tantos laboratórios, gabinetes e salas de aula não explica os sentidos desta palavra simples: peste.
Diante das espessas sombras desta nova forma de existir, vale aprender a olhar as paredes e, mesmo sem olhar de raio x, imaginar o mundo. Ficar em casa se tornou – para quem pode se dar a este luxo – condição de sobrevivência.
Os livros comemoram as horas extras novas, de afagos inesperados. Olhos ávidos compensam o vazio enchendo-o de letras. Velhas e novas leituras bailam pelos espaços, revitalizam memórias antigas e fazem brotar ideias inéditas, insinuam a hipótese de uma vida diferente. No fundo, todas as letras fazem soar a nossa pulsão de vida. Sobreviveremos.
E sobreviveremos inclusive porquê, ainda que os teatros estejam fechados, temos o teatro. Temos atores feitos da pura carne da poesia, inquietos, alertas, engajados no compromisso transcendental de louvar o ato de existir.
Seres sagrados, segundo a religião cotidiana do humano mais humano, banal mesmo, eles pegam os nossos corações e nos levam para pulsar a favor de uma compreensão maior do mundo. Nos fazem viver odisseias do mais verdadeiro amor, o amor de reconhecer a plenitude do ato de viver.
Assim é Cacá Carvalho, um dos maiores atores da cena brasileira contemporânea, uma força telúrica pura, capaz de nos revitalizar e nos reconciliar com o ato simples da nossa existência. Apesar do mar ingrato da pandemia, ele está em cena. Ou melhor, mais exatamente em cartaz, com esta nova forma teatral, responsável por nos brindar com o teatro em casa.
Ele integra, na verdade, um projeto coletivo – Teatro EmMov Digital. A proposta vai oferecer três peças instigantes, bastante diferenciadas em sua dinâmica, apesar da origem comum.
Elas nasceram do encontro com o argentino Matías Umpierrez, especialista em Teatro Digital. O trabalho em comum com o criador aconteceu através da passagem virtual pela Clínica de Obsessão – um laboratório para artistas sob sua orientação.
Portanto, graças ao seu domínio do tema, Umpierrez realizou a mentoria do Cena Web. A idealização do Teatro em Movimento – Teatro Em Mov – e a coordenação do Cena Web é de Tatyana Rubim.
Na sua origem, como o nome sugere, o Teatro Em Mov se propõe a conceber trabalhos teatrais para circular pelo país, uma navegação bloqueada pelo coronavírus. A adversidade levou ao nascimento do formato digital, um porto seguro para o cataclismo.
Os três brasileiros reunidos na proposta são nomes com extensa biografia teatral, grandes artífices do palco. Conseguem, em cena, tirar o fôlego de qualquer amante de teatro. Além de Cacá, estão presentes Yara de Novaes e Barbara Paz.
Eles apresentam três criações originais, obras construídas a partir de uma engenharia bastante peculiar. Foram concebidas a partir de mergulhos internos dos artistas, exploram as suas vivências nos planos da emoção e da linguagem. No material trabalhado, tanto estão presentes memórias pessoais, como a geografia da própria casa ou a realidade do teatro e do mundo hoje, na pandemia.
A pulsação criativa impressionante dos artistas garantiu o nascimento de obras de elevado impacto já nos seus perfis temáticos. O trabalho de Cacá, Ítaca, 365, apto 23, explora a própria casa do ator, seguindo um texto com inspiração original em Homero.
Já Yara de Novaes, excelente atriz e notável mulher de teatro, concilia em (Des)memória uma tensa imersão em memórias familiares com a estética dos games. A combinação parece desafiadora – o abismo interior associado a uma forma lúdica de olhar o mundo.
Já Barbara Paz, celebrada por obras exemplares no teatro e no cinema, ao assinar Ato optou pela pesquisa ao redor das duas artes, algo que ela própria denomina cine-teatro. A obra lida com a situação do teatro e da pandemia, a partir de um casal atingido diretamente pelo mal.
A linguagem e a técnica teatral surgem, neste projeto, sob foco intenso – de certa forma, elas são o centro do debate. Para a peça de Cacá, a transmissão ao vivo figura como a alma do jogo. Apesar de algumas inserções gravadas, a presença do ator é o que dá sentido ao projeto.
O trabalho de Yara é o mais radical quanto ao tema do digital. Gravado previamente, como acontece com os games, ele supõe a presença participativa do espectador como motor da cena. A intimidade, portanto, é condição do espetáculo – se é que este nome pode ser empregado no caso.
Na obra de Barbara, linguagem cinematográfica e gramática teatral se fundem, desenham as cenas e orientam o processo de montagem. Com filmagens em Ouro Preto, a diretora trouxe para o primeiro plano um luxo teatral excepcional – rodou cenas na Casa da Ópera, de 1770, o mais antigo teatro em atividade nas Américas, relíquia da História do Teatro Brasileiro.
Em cartaz de dezembro a janeiro, o projeto vai oferecer um outro verão para quem está em casa, vivenciando o desalento de um novo mundo ameaçador e desconhecido. Qual uma bússola para navegantes aflitos, o Teatro EmMov Digital garantirá um rumo para temperaturas mais amenas, temperaturas capazes de revelar às almas escaldadas de agora novas esperanças. As esperanças mais densas que só o teatro, arte do humano, pode assegurar.
FOTO: CACÁ CARVALHO. Foto Junea Andreazza, divulgação.
Ítaca, 365, apto 23’
Serviço:
‘Temporada de 7 a 13 de dezembro. Sempre às 20h, pelo site do Teatro em Movimento. Gratuito.
Ficha técnica:
Direção: Cacá Carvalho
Idealização e coordenação geral do Projeto Teatro Em Mov Digital: Tatyana Rubim
Dramaturgia*: Vinícius Calderoni e Guilherme Gontijo Flores
Direção de Arte : Márcio Medina
Assistência de direção: Victor Mendes
Elenco: Cacá Carvalho, Vera Sala e Theo Retti
Direção de fotografia e edição: Junae Andreazza
Desenho de Som e Trilha Sonora: Paulo Santos
Criação de luz: Fábio Retti
Produção Executiva: Bárbara Amaral
Equipe Rubim Produções:
Sonia Branco – administrativo / financeiro
Juliana Peixoto – produção / assistência financeira
Letícia Leiva – comunicação digital
Mariana Angelis – designer e assistência pedagógica
Apoio: Itaú e Objetos de Cena Antiguidades
Patrocinio: Instituto Unimed – BH e Cemig
Realização: Rubim Produções, Secretária Especial da Cultura e Ministério do Turismo
*Com excertos de Homero, por Guilherme Gontijo Flores , Alfred Tennyson, por Rubens Canarim, Bernardo Lins Brandão, Joseph Brodsky por Nelson Ascher e Boris Schnaiderman, Karen Blixen, Konstantinos Kavafis, por Haroldo de Campos e Mônica de Aquino.
(Des)memória
Serviço:
Disponível a partir de 10 de janeiro no site do Teatro em Movimento.
Ficha Técnica:
Direção:
Yara de Novaes
Assistência de criação: Lucas Costa
Dramaturgia: Vinícius de Souza
Assistência de Dramaturgia: João Gabriel
Elenco: Alexandre Cioletti, Cyda Moreno, Fafá Rennó, Josy Anne, Lucas Costa e
Yara de Novaes.
Desenho de Som e Trilha Sonora: Barulhista
Desenvolvimento e Design de interação: Abstracto Studio
Produção gráfica: Abstracto Studio,Nívea Gomes e Rodney Arôuca
Game Design e Composição digital: Italo Travenzoli
Figurinista: Lira Ribas
Fotos (Menu) e captação de imagens (abertura): Murillo Basso
Captação/edição de imagens (cena final): Pablo Bernardo
Captação áudios/off: Morris Picciotto
Criação e edição de vídeos (abertura e créditos): Estúdio Ofício / Tiago Macedo
Supervisão artística: Profa. Dr. Mariana Lima Muniz
Consultoria: Profa. Dr. Leda Maria Martins – UFMG / Prof. Dr.Pablo Gobira –
UEMG / Profa.Dr. Heloísa Maria Teixeira – UFOP.
Idealização e Coordenação de produção: Tatyana Rubim
Realização: Rubim Produções
Ato
Serviço:
Disponível no site do Teatro em Movimento de 8 de dezembro a 8 de janeiro de 2021.
No dia 8, às 19h, haverá uma live sobre o trabalho com Barbara Paz (direção), Eduardo Moreira e Alessandra Maestrini (elenco) e Tatyana Rubim (idealização e coordenação de produção). A live contará com intérprete de libras. No YouTube do Teatro em Movimento.
Ficha técnica:
Direção:
Bárbara Paz
Idealização e Coordenação Geral do Projeto Teatro Em Mov. Digital: Tatyana
Rubim
Roteiro: Cao Guimarães
Elenco: Alessandra Maestrini e Eduardo Moreira
Montagem: Renato Vallone
Direção de Fotografia: Azul Serra
Direção de Arte: Lara Tausz
Figurinista: Marina Franco
Mixagem de Som: Rodrigo Ferrante
Som Direto: Gustavo Fioravante
Assistência de Produção Executiva: Bárbara Amaral e Aline Xavier
Direção de Produção (pré-produção): Mariana Freitas
Divulgação: Factoria Comunicação /Pedro Neves