Por um corpo livre
O teatro é um corpo saltitante: ele não para. Tentaram em vão ao longo da história fazer com que ele se tornasse pura ideia, conceito, bela abstração. Mas foi inútil: o teatro não consegue acontecer sem o corpo e ele, danado, cobra o seu imposto aqui e ali, se manifesta. Tudo indica que o corpo sente um prazer desmedido ao demonstrar que a palavra é um sopro oco, perdido: sem o corpo, ela não acontece. No nosso tempo, a coisa piorou, a palavra precisa dos olhos para ser ouvida…
É divertido olhar a História do Teatro por este caminho, ver quantas vezes vários poderes tentaram deserdar o palco ou certas artes do palco por causa de sua corporeidade – a lista desta vetusta inquisição articulada pelo verbo é bem longa. As vítimas eleitas são incontáveis. A lista passa, inclusive, pelo maxixe, pelo samba, pelo rebolado e outras práticas vizinhas, nem tão excomungadas. Não adiantou tentar a interdição. Causa perdida.
Aliás, muita gente boa – e séria – ainda hoje tem dificuldade para entender que ator não é nem ventríloquo nem telepata, mas uma coisa esquisita, transgressiva, que nasceu para questionar a palavra. Portanto, dar fisicalidade intensa ao ato de falar. Está incluído no seu repertório, então, rebolar, digamos, no sentido mais amplo do verbo… Pode ser dito de uma forma simples assim: o ator rebola a palavra.
Toda a extensa trama de reclamação contra o corpo e os seus descaminhos resulta inútil, ociosa. Até na academia, o templo máximo do saber, aquele lugar da sociedade que, justamente por ser academia, nasceu e sobreviveu sob o jugo do verbo e seria o último a acatar as transformações ditadas na vida corrente, o corpo do ator chegou – e não foi para autópsia nas escolas de medicina.
Ele chegou como realidade essencial da arte. Debate decisivo para a arquitetura da linguagem do palco. Trabalhar o corpo não é mais necessidade impositiva de dança, circo, teatro musical ou teatro popular – trabalhar o corpo é fato do teatro, ou de teatro. O paradigma central de hoje é objetivo: de nada adianta estudar os grandes textos do teatro ocidental, as teorias e as estéticas mais intrincadas do palco, se o corpo permanecer inerte, branco, vazio.
De certa forma, o ator se libertou do vetusto edifício da racionalidade. Ou de uma certa racionalidade trancada em si, distante da vida. O ator não é mais um mourão de cerca vibrante de emoção, suporte atlético para as palavras: ele é uma massa pulsante de vida que irradia os múltiplos fluxos da ação através de si. Do alto da cabeça ao dedão do pé, o ator está em cena, em sintonia com todo o resto. Não há um corpo-reboque ou plataforma do sentir.
Por isto, encontros, seminários, congressos se tornam práticas de primeira necessidade na formação e na afinação do ator. A rigor, estamos descobrindo tudo isto, pois a coisa é bossa nova. Nestes eventos, é possível estruturar um amplo leque de trocas, ultrapassar fronteiras nacionais e institucionais, tecer sintonias finas entre teoria e prática. Vale ficar atento, para garantir à cena a força expressiva que ela merece.
Posso citar aqui e agora quatro exemplos de extrema importância. Um acabou de acontecer, na semana passada. Levou para a Escola de Teatro da UNIRIO um diretor de excelência da cena carioca atual, Paulo de Moraes, acompanhado pela atriz Patrícia Selonk – uma grande expert em corpo. O casal é a liderança da Armazém Cia de Teatro.
Trata-se de uma equipe de primeira grandeza da cena brasileira. O conjunto simboliza a potência criativa máxima do teatro hoje no Rio. Eles acabaram de chegar da China – fato que não é exceção na trajetória recente do coletivo e entrega a densidade do trabalho desenvolvido.
Com extrema justiça, a Armazém foi durante muito tempo nota dez em patrocínio – uma das joias preciosas da politica cultural da Petrobras. Este ciclo significou a construção de um poder de expressão brasileira único, raro mesmo, pois, além de alcançar um lugar de destaque na cena carioca, a Armazém se tornou referencia nacional e, a partir de sua força de representação estética nacional, partiu para o exterior, conquistando também no mundo o reconhecimento da excelência de seu trabalho.
Esta excelência se traduz em termos estéticos precisos: construção de uma linguagem cênica peculiar, em que a intensidade da expressão verbal se alinha com a entrega corporal mais intensa, em sintonia com uma concepção do espaço a um só tempo geométrica e pictórica, quer dizer, um espaço que se estrutura minuciosamente como volume, linhas, planos, cores.
A observação aponta para uma construção de cena em que texto, ator, cenografia, figurino e luz se integram enquanto elementos de uma linguagem específica: o teatro, exatamente, um todo orgânico profundamente articulado. E, vale repetir, esta linguagem acontece como criação atoral, resultado de uma dedicação exemplar ao trabalho cujo vértice central de criação é o ator. Um simples exame do repertório da companhia atesta o caráter exemplar da obra construída pela equipe e diz tudo a respeito do acerto da política cultural da Petrobras.
Mas esta conversa com o diretor e a atriz, tão decisiva para aproximar a realidade do teatro dos bancos escolares, não aconteceu como fato isolado. Outros três eventos vão sacudir por aqui a antiga placidez do corpo do ator no leito acadêmico, um outro fará outro tanto na terra do verbo dourado chamada Paris…
O primeiro evento que importa acompanhar é um pouco mais do que corporal: é dedicado a Grotowski (1933-1999), o grande encenador polonês. Vale perguntar se a palavra encenador faz justiça ao perfil do homem de teatro exemplar que trouxe, afinal, uma nova materialidade, física e metafisica, para o trabalho teatral do nosso tempo. Um bom caminho para tentar responder nasce nas múltiplas atividades propostas pelo Seminário Internacional Grotowski 2019: uma cultura ativa, organizado pela professora pesquisadora Tatiana Motta Lima, na Escola de Teatro da UniRio.
Passear pelo vasto rol da programação já transporta o leitor para uma outra esfera da realidade – dá para levitar ao redor de um redemoinho de ideias. Há desde a apresentação de espetáculos, destacando-se Moloch: Testemunha Allan Ginsberg, de François Kahn, um artista que trabalhou diretamente com Grotowski, até encontros, homenagens, palestras, oficinas, debates, mostras de filmes, lançamento de livros…
A maratona teatral acontecerá do dia 20 ao dia 25 de novembro próximos e percorrerá vários espaços. A partir do centro de proposição, a Escola de Teatro da UNIRIO, na Urca, as atividades ocuparão o Teatro Poeira, em Botafogo, e a Escola de Capoeira Angola Renascer, na Glória. Uma ampliação do evento será conquistada com a viagem para outros centros – a programação itinerante atingirá Belo Horizonte, Ouro Preto, Santa Maria e Brasília.
Sem dúvida Grotowski apresenta uma vasta superfície de temas, questões, conceitos. O ponto nevrálgico da proposta está no tratamento das fases menos conhecidas da arte do encenador, aquelas em que justamente ele decidiu parar de dirigir espetáculos e realizar experiências, interferir nas vidas. São as fases do Parateatro, Teatro das fontes, Arte como veículo e da noção de Cultura Ativa, usada por ele no Teatro Laboratório, nos anos 1970, na qual se instaurava o princípio da ampla participação da plateia – quer dizer, buscava-se a extinção da noção de plateia.
A experiência, tão múltipla, depois de vinte anos da morte de Grotowski, não se funda num cálculo de comemoração, mas na expectativa de fazer perguntas, dimensionar o quanto o teatro mudou – ou não – a partir da arte proposta por ele, seguida atentamente por inúmeros grupos experimentais ao redor do mundo. De certa maneira, deseja-se saber, com o colóquio, qual o corpo de Grotowski ficou por aqui, na experiência humana, se corpo for uma palavra para falar da totalidade da existência.
Alguém mais implicante pode contra-argumentar e dizer que, afinal, Grotowski não é corpo, mas um teatro inteiro, aquele teatro de arte mais conectado com as inquietudes intelectuais humanas, portanto, coisa de cabeça. Papo longo – de toda forma, outros eventos próximos são inquestionavelmente atividades focadas nesta coisa chamada fisicalidade, uma parte do ator que, para iniciantes e para quem é muito racionalista, sobra na cena. Quem, na vida, nunca viu no teatro um ator cujo corpo, alheio aos esforços do seu amo, insistia em permanecer morto em cena, contrariava qualquer inclinação à arte?
Quando isto acontece, fica evidente que o candidato à artista falhou na busca de informação, pois é este o tema: o corpo no teatro de hoje é quase uma entidade por si, algo que escapa do dono, tem autonomia… não pode de jeito nenhum estar morto. Com tanto garbo, ele merece estudos bastante requintados. E eventos eficientes para a amostragem destes estudos: há um exemplo no calendário imediato muito eficiente para atestar este ponto de vista.
Aliás, um, não – dois. Ainda na UNIRIO, o Laboratório e Grupo de Pesquisa Artes do Movimento, ligado à Escola de Teatro e ao Programa de Pós-Graduação da escola, vai promover nos dias 21, 22 e 23 de novembro de 2019, na Escola de Teatro, dois eventos pontuais, muito especializados, dedicados ao trabalho de corpo na cena.
Organizados como manifestações associadas, entrarão em cartaz o Terceiro Seminário Internacional Corpo Cênico: Diálogos e Experiências e o Segundo Encontro Preparação Corporal. Direção de Movimento e Coreografia no Teatro. Nos três dias de atividades, mesas de debates, pesquisas, oficinas, apresentações práticas, lançamentos de livros e do site, performances, instalações, exposição e até um sarau oferecerão uma excelente oportunidade para conhecer o estado atual da arte.
Para reforçar o peso acadêmico do campo de estudos, haverá até uma defesa de tese de Doutorado, da aluna Luar Maria, sob regime de co-tutela internacional (Paris-8). A pesquisa desenvolvida foi dedicada à reflexão a respeito de uma trajetória carioca, as mutações das práticas coreográficas, da coreografia à dramaturgia do gesto.
Ao redor do panorama alentado de atividades, nomes fortes dos estudos nacionais e internacionais estarão reunidos: Ayse Tashkiran, da Universidade de Londres, Isabelle Launay, da Universidade Paris-8, Dadivo José Combane, da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique, e, na idealizaçao e organização dos dois encontros, Adriana Bonfatti, Enamar Ramos, Juliana Manhães, Nara Keiserman e Joana Ribeiro (UNIRIO).
A participação de especialistas estrangeiros diz tudo, o tema não é invencionice tropical e não apaixona apenas pesquisadores nacionais. A cena internacional, ocidental, trabalha com esta visão renovada do palco, distante daquela ideia cara aos grandes atores do passado, prontos para sustentar o raciocínio de que o gesto era uma espécie de embaixador da palavra. Pode até ter sido, pois andava espremido, metido em casacas e espartilhos do século XIX, mas, rebelde como o século XX, perdeu a vaga diplomática e se emancipou, foi à luta.
Posso provar o que digo com muita facilidade – também agora vai acontecer em Paris um colóquio internacional de jovens pesquisadores tratando do gesto na cena dos século XX e XXI. O subtítulo é revelador: entre tradição e inovação teatrais. O encontro vai acontecer de 28 a 29 de novembro, na Salle des Actes da Sorbonne.
A programação, estruturada no melhor espírito francês, contará com uma palestra de abertura dedicada à abordagem do estudo do gesto na cena, a cargo da professora Gabriele Sofia, da Universidade de Grenoble Alpes. A seguir, serão apresentadas comunicações, formato dominante nos dois dias, com um leque de temas amplo o bastante para focalizar, ao lado da história, nomes da contemporaneidade. Meyerhold, Vieux Colombier, London Theatre Studio, Grotowski, o gesto acrobático circense, Romeo Castellucci, Beckett, assinam presença, ao lado de uma apresentação prática preciosa.
O Théâtre Molière Sorbonne, dedicado ao estudo histórico de Molière e de seu teatro, representará Andromaca I, 4, de Racine, para indicar como deveria ser o gesto e a representação na época de Molière. A seguir, uma mesa redonda com o pesquisador especialista em Molière, diretor da companhia, Georges Forestier, e com o professor Mickaël Bouffard, codiretor científico e artístico do mesmo grupo de teatro, discutirá a cena histórica proposta pelos estudiosos.
O Brasil, que infelizmente não tem um Teatro Martins Pena ou um Teatro Artur Azevedo, para se dedicar ao estudo de seus maiores dramaturgos históricos, não estará, contudo, fora do colóquio – um tema quente para o debate será apresentado pelo professor historiador Henrique Gusmão. O assunto de sua comunicação, central para qualquer debate denso sobre o corpo no teatro do nosso tempo, será o gesto e a palavra no teatro stanislavskiano. Portanto, um feito de importância para a comunidade intelectual de teatro do país.
Assim, o lado curioso do assunto desponta – apesar do corpo, com seus impulsos materiais, físicos, concretos, afinal exigir hoje um lugar de destaque na cena e no pensamento a respeito da cena, ainda é sob o domínio da palavra e do Logos que ele precisa ser levado em conta. Para demolir o domínio das palavras, o corpo precisa construir um arrazoado verbal de impacto, capaz de impor a sua força. Doce ironia.
A não ser que, revolucionários, consideremos impositivo considerar que um verbo, impregnado de falas a respeito do corpo, se desintegre em sua forma essencial, deixe de ser verbo, se torne balbucios, apenas vestígios daquilo que, por ser puro corpo, nem ideia, nem palavra pretendia (ou poderia) ser. Delírio vão. Aqui, do lado debaixo do Equador, terras do pecado rasgado e dos corpos livres, importa vesti-los com palavras, correndo. Ou não saberemos nunca o quê, afinal, o corpo pode ser…
Serviço:
SEMINÁRIO INTERNACIONAL GROTOWSKI 2019
DESTAQUES DA PROGRAMAÇÃO
MINI-CURSO“GROTOWSKI PÓS-TEATRAL”, aberto e gratuito, ministrado por Lídia Olinto e Tatiana Motta Lima. Apresentação das diferentes fases do trabalho do Grotowski, com debate de textos, análise de filmes. Inscrições: e-mail grotowski2019@gmail.com, colocando no título “mini-curso”. Audiovisual da Escola de Teatro da UNIRIO, nos dias 18 e 19 de novembro, das 10h às 13h e das 15h às 18h.
ENSAIO E CORO ABERTO, com Mario Biagini (dias 23 e 24/11, das 22h30 às 0h30, na Escola de Capoeira Angola Renascer – Rua Candido Mendes, 476 – Glória).
ESPETÁCULO “MOLOCH – TESTEMUNHA: ALLEN GINSBERG” (dia 21/11, das 14h às 16h, e dia 25/11, das 20h30 às 22h30, no Teatro Poeira)
Adaptação teatral de François Kahn a partir dos autos do Processo dos Sete de Chicago e do ensaio Uma Solidão Pública de Fernanda Pivano (tradução de Ana Teresa Jardim)
Direção e atuação: François Kahn (em português)
ESPETÁCULO “EPISÓDIO I: UEMBA-CONGENBO (MORRER)” (dia 20/11, das 19h30 às 21h30, não Palcão da Escola de Teatro da UNIRIO).
Solo de Luciano Mendes de Jesus
ENSAIO ABERTO DO ESPETÁCULO “O AMOR POSSÍVEL + CONVERSA” (dia 22/11, das 20h às 22h, no Palcão da Escola de Teatro da UNIRIO)
Adaptação teatral de Priscilla Duarte e François Kahn, do romance A Caverna, de José Saramago. Direção e atuação: Priscilla Duarte. Colaboração artística: François Kahn.
PALESTRA SEGUIDA DO LANÇAMENTO DO LIVRO “O JARDIM – REFLEXOS E REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO PARATEATRAL DE JERZY GROTOWSKI DE 1973 A 1985” (dia 23/11, das 17h30 às 20h30, na Escola de Teatro da UNIRIO)
MOSTRA DE FILMES (de 22 A 24/11, das 10h às 12h, no Audiovisual da Escola de Teatro da UNIRIO)
ENCONTRO ABERTO de Mario Biagini e Tatiana Motta Lima com os grupos do Rede Baixada em Cena, com apresentação do documentário “Rede Baixada em Cena – história de um teatro periférico”, dia 26, das 14h às 18h, no Colégio Leopoldo (Av. Getúlio de Moura, 1074), em Nova Iguaçu.
ATIVIDADES QUE NECESSITARÃO DE INSCRIÇÃO PRÉVIA
Além do mini-curso que acontecerá antes do Seminário, há três atividades que precisarão de inscrição prévia, ainda que sejam gratuitas. Para se inscrever, é necessário preencher e enviar formulário (endereço abaixo e também informado nas redes sociais do evento: Grotowski2019 – Facebook/Instagram), com dados pessoais, mini currículo e carta de intenção.
https://drive.google.com/open?id=11ZkLzikBT71F7ygfyFoYEiQ2oB_p91mW0KT8WrjY81E
II Encontro Preparação Corporal, Direção de Movimento e Coreografia no Teatro III Seminário Internacional Corpo Cêncio: Diálogos e Experiências
PROGRAMAÇÃO:
Laboratório Artes do Movimento
https://laboratorioartesmo.wixsite.com/corpocenico
https://laboratorioartesmo.wixsite.com/artesmovimento
Le Geste sur les scènes des xxe et xxie siècles :
entre tradition et innovation théâtrales
Colloque international jeunes chercheurs
PRITEPS – Sorbonne Université
28 & 29 novembre 2019
Salle des Actes – 17, rue de la Sorbonne
Foto: Coristas, Teatro Recreio, !924, fotógrafo ignorado.