Perdido de si, perdido do outro?
Perguntas e mais perguntas – poucas pessoas conseguem viver sem mergulhar na sensação estranha de ser uma interrogação ambulante. Dizem alguns pensadores que tal condição é incontornável: seria a própria definição da espécie. Máquina de perguntar.
Então, já existe uma resposta – o problema não é o emaranhado de perguntas que nos soterra, mas sim o que se faz com ele… Em lugar do desespero impotente diante do fato de existir como um questionário interminável, que tal deixar a enxurrada de perguntas seguir adiante, acontecer? Pois tem que ser assim!
Tudo bem, a resposta é ladina, tangencial, evasiva, contorna a questão. Ou não: ela simplesmente fecha o caminho, pois fixa a constatação de que, caso surja alguma resposta, nenhuma resposta irá deter o fluxo de perguntas… Como diz o povo, não adianta tentar fugir: você está lascado.
Diante deste berço de espinhos, a humanidade inventou panaceias e cataplasmas. Não há cura, mas atenuações da dor ou – quem diria – subterfúgios para transformar a dor em prazer. Acertou na mosca quem pensou no teatro e na filosofia. Quer dizer, democracia e aristocracia.
A filosofia não é para todos: não, por favor, não esbravejem em revolta. Bobagem pretender o contrário. Ainda que, na atualidade, seja incrivelmente comum qualquer estudante de filosofia se proclamar filósofo, a ocupação envolve uma inclinação para o pensamento distante do gosto das pessoas na vida comum. A filosofia mora longe e não anda se exibindo nas calçadas. Exemplos?
Basta lembrar algumas velhas observações bem humoradas usadas para definir os que gostam demais de pensar. A mais antiga e saborosa descreve o filósofo como uma criatura ocupada em olhar as estrelas e que, portanto, cai no buraco que há no meio do caminho, por ser incapaz de enxergá-lo. Uma outra, mais injusta, muito cruel, descreve o pensador como o habitante de uma torre de marfim, alguém retirado do mundo. A bem da verdade, a filosofia pensa o mundo, nasceu para isto…
Fica bem claro, portanto, que ninguém deve sofrer com tais fatos: se a filosofia flutua nas alturas, para todos, existe o teatro, a mais antiga forma de vivenciar o pensamento na plenitude da carne. Pois o teatro não trata de abstrair a materialidade para tentar entender a essência, o cerne, do que há. O teatro vai com a coisa toda, acontece como totalidade, falsa existência integral. Com o teatro, podemos falsear o existente.
Isto significa o culto a um valor de extrema grandeza. O culto à liberdade, total liberdade. Os múltiplos caminhos disponíveis para dar forma aos dias, ou deformá-los, o mergulho profundo nos sonhos e desejos, ou o brinde ao pesadelo e à renúncia, a busca da arquitetura mais elaborada para o amor, ou para o desamor – tudo, enfim, o que é humano, a cena oferece.
A partir desta visão, o ideal, em cada cidade, em cada recanto da sociedade, parece ser bem claro: é absolutamente fundamental contar com lugares poéticos dedicados ao culto pleno do teatro. Sem dúvida um teatro livre, vigoroso, sem qualquer a priori nem preconceitos, um teatro no qual a multiplicidade da sociedade apareça em toda a sua força, com todas as avalanches de perguntas definidoras da vida humana.
Se a sociedade não abre espaço para este culto coletivo dos maiores valores humanos, o espaço social pode correr um risco de sufocamento perigoso, com a instauração de templos pretensamente portadores de respostas imediatas, lugares de religião. Quando demolimos os teatros, os templos das certezas brotam por todos os lados. Para a sensibilidade coletiva, nasce neste ponto um limite regressivo, um ponto de estrangulamento, pois rompe-se o compromisso com a condição fundamental da espécie, o ato de perguntar, de se manter em movimento diante do fluxo do tempo.
Para instaurar esta concepção, o culto ao pensamento livre, toda e qualquer peça de teatro precisa ser reconhecida como exercício da racionalidade e da sensibilidade. Cada peça precisa apenas encontrar o seu público, as pessoas que estão, naquele momento, tocadas pelas mesmas questões. Assim, o teatro assume variadas formas, sintoniza com as formas naturais para o seu tempo. Se existe tal produção poética, existe tal público, o palco não se faz sozinho. Quando acontece o desencontro, algum problema social aconteceu, capaz de explicá-lo.
No panorama desta semana, vários espetáculos permitem indicar a grandeza dos valores em circulação na sociedade atual. O astronauta, com Eriberto Leão, desponta como excelente exemplo. A peça foi apresentada online e agora retornou ao cartaz sob versão presencial.
Com idealização e direção de José Luiz Jr.e dramaturgia de Eduardo Nunes, em horário alternativo do Teatro Firjan Sesi, a cena se estrutura ao redor de um homem isolado, como um astronauta numa missão intergaláctica. A viagem, sem tempo nem lugar determinados, se torna veículo para uma jornada interior, um inventário a respeito da existência humana, o sentido da memória, dos afetos e sobre a transitoriedade da vida e do tempo. Quer dizer, uma imersão na potência plena do ato de perguntar a respeito da vida e a respeito de si.
A imagem de uma tela na qual desfilam todos os seres parece ser uma boa sugestão. Afinal, ela foi usada por Platão, entende-se bem: ele tinha grandes pendores para a dramaturgia, mas queimou os seus textos para seguir Sócrates. O fato permite esclarecer um pouco mais este gesto do teatro. No fundo, arte inefável e passageira, o teatro lida diretamente com a consciência humana do supérfluo absoluto e, então, se consolida como escola de tolerância e, consequentemente, respeito à vida. Aponta para a carne, usa a carne para mudar as ideias, e não o contrário. Tal condição aflora nítida num outro cartaz – Nabila, espetáculo do grupo Carranca Coletivo, cartaz do Teatro Ipanema, com entrada gratuita.
Aqui a cena gira ao redor de uma pergunta forte, crucial para a nossa época, voltada para todos, sem distinção de gênero ou de qualquer outra tentativa de classificação dos seres. Afinal, quem são as mulheres que habitam você? De que alquimia feminina nasceu a sua pessoa? Qual a forma-mulher responsável por sua maneira de ser, por sua existência, por sua sensibilidade e visão de mundo?
Na trama do espetáculo, três gerações de mulheres povoam a cena, com o objetivo de lidar com a ancestralidade feminina. A partir de uma ótica sentimental, o grupo busca acionar um espaço de memória e afeto, evocar a presença forte da mulher, para sublinhar a necessidade de mudanças sociais. Na sociedade brasileira, contraditoriamente marcada pela força hegemônica das mulheres como chefes de família, vigoram valores retrógados inadmissíveis, como o machismo, a violência contra a mulher e a desigualdade de gênero.
O Carranca Coletivo, formado por artistas egressos da Escola de Teatro Martins Pena, está no seu primeiro espetáculo autoral. A equipe adota uma salutar visão do teatro como exercício permanente de arte e coleciona um respeitável roteiro de apresentações em itinerâncias e festivais.
Aliás, os festivais constituem, afinal, um espaço notável de consagração da condição social do teatro. Importa observar que, na cidade grega antiga, muito antes da existência do “mercado de arte”, o teatro acontecia em festivais – meio de vivência coletiva da arte.
Até hoje, apesar do mercado, ao lado do mercado, os festivais cumprem a função de congraçamento intenso ao redor da poesia da cena. Ir a um festival significa mergulhar numa vivência de arte muito diferenciada. O evento, envolvente e intenso, viabiliza uma sintonia profunda com as questões sensíveis do tempo: quem tem a sorte de ir para um festival, vive teatro vinte e quatro horas por dia.
Após a pandemia, um dos melhores festivais brasileiros de teatro está de volta ao formato presencial: o MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas. Criado em 2010 com o objetivo explícito de contemplar a multiplicidade de formas, conceitos e práticas da cena latino-americana e ibérica, o festival chega agora à sua sexta edição e estará sacudindo a vida na cidade de Santos de 9 a 18 de setembro…
As inúmeras atividades contemplam tanto o espectador interessado em mergulhar no palco da atualidade, como o estudante, o estudioso e os artistas. Quer dizer – são apresentações, encontros, exposições, debates, oficinas, cursos….
A lista de apresentações reunirá 36 peças, de 16 países. Estarão em cena, em ordem alfabética, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Espanha, Equador, México, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela, com algumas parcerias binacionais, um formato muito interessante de encontro entre as nações.
A rigor, vale destacar, trata-se de uma época de celebração de independências – o Brasil comemora o bicentenário da ruptura do pacto colonial com Portugal. E Portugal, o país homenageado da edição, apresentará nove trabalhos com temas de fina sintonia com as inquietudes atuais – questões relativas ao colonialismo e ao regime salazarista. Para saber mais, vale a pena passear pela página da programação, um meio eficiente para conhecer a força arrebatadora do evento.
O diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, destaca o papel do festival para adensar a troca cultural entre povos, reduzir fronteiras, estimular diálogos; as trocas, a seu ver, importam para estimular as reflexões a respeito das heranças comuns e das identidades particulares. Naturalmente, estes encontros acionam o nosso melhor fluxo de perguntas, e elas extrapolam as fronteiras, dão um sentido vigoroso aos palcos.
A conclusão parece automática: humanos, estamos condenados a fazer perguntas sem parar, numa espécie de carrossel louco, um mecanismo independente de nós, que não conseguimos dominar. Não estamos, contudo, abandonados à nossa sorte, à deriva no espaço sideral, como se fossemos astronautas perdidos.
Dispomos de um porto, uma âncora, um colo, um abrigo – a cada um o direito de encontrar a sua própria definição, a escolha eleita para nomear o gesto. Quer dizer, existe uma pátria-mãe capaz de aninhar o nosso pensamento, não para que ele desapareça, mas apenas para que ele continue a ser o que é, sem enveredarmos por abismos sombrios devoradores de almas. Este acalanto – e aqui surge mais um nome para ele – é o teatro. Através dele, nos reconhecemos e reconhecemos a existência do outro.
Desde sempre, depois de séculos, sob as formas adequadas para cada tempo, o palco aparece diante de nós e nos cobre de graças. Uma graça distante dos deuses, uma graça pagã, feita da visão da carne transitória que somos; mas, por ser graça, doação de espírito, ela nos assegura o direito de flertar com algo que é, longe de nós, eterno.
FOTO: MIRADA. Cena de Viagem a Portugal, última paragem ou o que nós andámos para aqui chegar – Foto de Carlos Fernandes.
SERVIÇO
O ASTRONAUTA
de 29 de agosto a 18 de outubro
Horário: 2ªf e 3ªf às 19h
Teatro Firjan SESI Centro
Av. Graça Aranha, nº 1 – Centro / RJ
Ingressos: bilheteria do teatro e site da Sympla
Inteira R$ 40,00
Meia (estudante, idoso, professor da Rede Municipal, PNE, menor de 21 anos) R$ 20,00
FICHA TÉCNICA
DRAMATURGIA: Eduardo Nunes
IDEALIZAÇÃO E DIREÇÃO GERAL: José Luiz Jr.
ADAPTAÇÃO PARA A VERSÃO PRESENCIAL: José Luiz Jr. e Eriberto Leão
ATUAÇÃO: Eriberto Leão
ELENCO CONVIDADO: ZéCarlos Machado, Luana Martau, Jaime Leibovitch
DIREÇÃO MUSICAL: Ricco Viana
VIDEOGRAFISMO, REALIDADE VIRTUAL E PROGRAMAÇÃO VISUAL: Rico e Renato Vilarouca
VÍDEO E EDIÇÃO COMPLEMENTAR: José Luiz Jr.
DIREÇÃO DE ARTE (CENÁRIO): Carla Berri
FIGURINO: Joana Bueno
ILUMINAÇÃO: Adriana Ortiz
FOTOGRAFIA: Emmanuelle Bernard e Andrea Nestrea
MARKETING DIGITAL: Luciana D’Amato
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Helena Ribeiro
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Carla Yared
REALIZAÇÃO: CAJA Arquitetura Cultural
ASSESSORIA DE IMPRENSA: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO
NABILA
09 a 25 de setembro
Sextas e sábados às 20h, domingos às 19h
Teatro Ipanema (Rua Prudente de Morais, 824 – Ipanema)
60 minutos
Classificação indicativa: 12 anos
Entrada gratuita
SINOPSE
Com o avançar da idade e sinais de demência, Nabila vai morar com sua filha e netos, que passam a cuidar dela. Sua chegada faz a família mergulhar em uma jornada de conflitos e afetos, costurados pela linha da ancestralidade feminina.
FICHA TÉCNICA
Direção: Fernanda Báfica e Juracy de Oliveira
Dramaturgia: Fernanda Báfica e Gabriel Aquino
Consultoria Artística: Hugo Moss e Thaís Loureiro | Michael Chekhov Brasil
Elenco: Araci Breckenfeld, Diana Deyse, Elizândra Souza e Thiago Carvalho
Direção de Arte: Analu Prestes
Iluminação: Fernanda Mantovani
Concepção e Criação Musical: Cayê Milfont
Colaboração de Movimento: Morena Paiva
Criação e execução da colcha de memórias e bordados: Analu Prestes
Operadora de luz e Assistente de Iluminação: Natally do Ó
Voz em off: Maria Guedes dos Santos
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa
Design gráfico: Tati Vidal e Thiago Carvalho
Direção de Produção: Leandro Fazolla
Realização: Carranca Coletivo
SERVIÇO
MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas.
09 a 18 de setembro de 2022
Informações em www.
Nas redes sociais pela ‘hashtag’ #FestivalMirada
Venda de ingressos na bilheteria das unidades do Sesc São Paulo e on-line pelo portal do Sesc SP, pelo app Credencial Sesc SP e pela Central de Relacionamento Digital
Ingressos para Espetáculos Adultos
R$ 10 (credencial plena)
R$ 15 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino)
R$ 30 (inteira) para os espetáculos adultos
Ingressos para Espetáculos infantis
R$ 7,50 (credencial plena)
R$ 12,50 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino)
R$ 25 (inteira) para os espetáculos infantis (crianças até 12 anos não pagam).
Sesc Santos
R. Conselheiro Ribas, 136 – Aparecida, Santos – SP, 11040-900
Terça a sexta, 9h às 21h30. Sábados, domingos e feriados, 10h às 18h30
Informações em
Plataformas on-line Sesc Santos:
YouTube @sescemsantos
(youtube.com/sescemsantos)
Instagram @sescsantos (instagram.com/sescsantos)
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Plataformas on-line Sesc São Paulo:
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(youtube.com/sescsp)
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Caderno de Reflexões – O Sesc promove o lançamento do Cadernos de Reflexões sobre as Artes Cênicas na rede Ibero-americana, publicação em formato de revista com ensaios e artigos sobre a teatralidade contemporânea, sua extensão pela América Latina, Portugal e Espanha, e suas expressões singulares em cada país e suas difusões e circulações. Os textos reflexivos foram escritos por: Alberto Ligaluppi (Argentina), Conchi León (México), Miguel Rubio Zapata (Peru), Octavio Arbeláez Tobón (Colômbia), Pamela Lopes Rodrigues (Chile), Patrícia Portela (Portugal) e do Brasil: Alexandre Dal Farra, Fernando Yamamoto, Marcio Abreu e Paula Autran. Acesse pelo QRCode ou pelo aplicativo Sesc SP.
Programação completa das atividades formativas: