Cenas da alma, cenas da palma
Na hora da crise, a essência aparece. Quer dizer, só sabemos quem somos e quem está ao redor na hora do incêndio. Portanto, agora, quando a lona está em chamas, podemos ver bem a essência do circo, sob a materialidade transformada em cinzas. Ou, mais exatamente, do teatro. Ele existe? Passa bem? Tem o que dizer? A quem serve, para quê serve?
Não é difícil fazer o diagnóstico da cena teatral atual. Um bom mecanismo está, justamente nestes dias, à disposição dos curiosos, graças à agilidade de acesso à informação via internet. Pode ser que, para alguns, este procedimento de análise soe parcial. Dizer o quê? Ah, relaxe e experimente.
O caminho é muito simples. Talvez não seja de acesso universal, pois, como se poderá constatar na hora da revelação, para alguns procedimentos é fundamental saber francês ou inglês. Não, não vou fazer um grande mistério. O segredo? Percorrer as páginas dos festivais. Sim, os festivais são excelentes vitrines para a constatação da saúde teatral de um país.
A crise sanitária, de saída, acabou com os festivais. Depois reduziu todos os tradicionais encontros de arte e de teatro a manifestações online. Ou a um estranho formato novo. Quer dizer, quando surgem como encontros presenciais, aparecem regidos pelo tal do novo normal – que, vale frisar, de normal não deve ter nada, a não ser que pretenda ser o novo fatal. Nesta altura, lentamente, a vida retoma o fluxo, o convívio retorna aqui e ali. Anima os festivais.
Pois vale a experiência – por causa do verão ou do inverno, vários festivais estão no ar ou na terra, quer dizer, em lançamento ou já em realização, digitais ou reais. Se a programação de cada um for examinada com atenção, saltará aos olhos a alma da sociedade e a densidade do teatro existente ao redor.
Vale considerar para o passeio alguns encontros teatrais bem conhecidos. Por aqui, há o célebre Festival Sesc de Inverno, com início esta semana, e o Festival Midrash, disponível a partir do próximo domingo.
Na Europa, já começou o sensacional Festival de Almada, este ano com a comemoração dos 50 anos da Companhia de Teatro de Almada. Trata-se de um encontro teatral de alta voltagem, uma espécie de sismógrafo, preocupado em registrar as linhas de tensão da cena portuguesa e da cena europeia, a francesa em particular.
Vale conferir o site português. Apesar da pandemia, do isolamento, do longo fechamento dos teatros, a programação segue um desenho admirável. Lá estão grandes produções assinadas por nomes de impacto do momento – como o encenador Ivo van Hove, o autor sensação francês Édouard Louis, o diretor português Rogério de Carvalho, o coreógrafo multiartista Josef Nadj.
Ao mesmo tempo, o festival se preocupa em oferecer ousadia, tom dominante na performance da catalã Agnés Mateus. E aposta em intimismo bem desenhado, com requintados monólogos de Monica Bellucci e Chico Diaz, por exemplo, ao lado de um estudo de alma marcado pela sintonia com a crise mundial – nota trabalhada por Sara de Castro e Carla Galvão, num ousado estudo de T. Williams.
Aqui, não contamos ainda com intensa programação presencial. O nosso Festival Sesc de Inverno, retomado este ano após a pausa do ano passado, seguirá sob formato híbrido, em boa parte virtual. As manifestações presenciais seguirão os protocolos sanitários fundamentais para a preservação da vida.
Se o evento retira a sua força de comunicação da pluralidade de manifestações de arte apresentadas, destaque-se a qualidade dos cartazes teatrais oferecidos. Infelizmente, apesar da qualidade, quase todos os espetáculos são monólogos, intimistas – situação reveladora do impasse teatral brasileiro do momento. Assim, estão na grade Paulo Betti, Maitê Proença, Suely Franco, mas nenhuma grande montagem, nenhuma produção nova e de grande escala.
Este limite também aparece no Festival Midrash – aqui, também a agenda aparece dominada pelo duo pequeno formato-monólogo. São formas dominantes na programação habitual da casa, afinal, por causa dos espaços limitados para a apresentação, que persistiram na edição do festival.
Graças à transmissão online, o limite poderia ter sido rompido, mas a possibilidade não tentou os programadores. A verdade é que o cenário ao redor se tornou minimalista, dominado pelo tom modesto das produções. E não surgiram vetores sociais engajados na sua superação.
Um dado curioso: quase todos os espetáculos incluídos na programação do Midrash são propostas femininas ou apresentam nomes femininos fortes na ficha técnica. A abertura acontecerá com o emblemático trabalho de Denise Fraga, Galileu e Eu – A Arte da Dúvida. Ao mesmo tempo, aparecem algumas obras voltadas para o tema LGBTQIA+. No saldo final, os homens são absoluta minoria.
Também, para o ponto de vista brasileiro, há um impacto feminista especial na programação do Festival de Avignon, mostra em cartaz desde o início do mês. Um dos grandes nomes desta edição é a diretora brasileira Christiane Jatahy, com a encenação de Entre Chien et Loup, adaptação de Dogville, de Lars Von Trier, devotada ao estudo do fascismo nas relações interpessoais.
Dificilmente a diretora poderia levantar esta produção por aqui. Na grade de Avignon, o espetáculo integra uma trama de montagens e projetos de intensa vitalidade, com generosos desenhos de produção. Como de costume, Avignon fervilha teatro.
Para agosto, o grande acontecimento internacional é o Festival Internacional de Edimburgo. A cidade, aliás, tornou-se uma cidade de festivais, com um número surpreendente de encontros de arte, especializados, ao longo do ano. Para o teatro, o festival internacional é o mais significativo.
Pois este ano, os escoceses construíram pavilhões ao ar livre sob medida, temporários, localizados em pontos icônicos da cidade. Facilmente acessíveis, os espaços foram concebidos para reunir com segurança artistas e audiências. E comprovam a importância extrema atribuída à arte por toda a sociedade escocesa, do Estado ao cidadão comum. Música, ópera, teatro e dança, entre outras formas de arte, estarão disponíveis sob total segurança sanitária.
Contudo, a programação de teatro da mostra principal será tímida. Os espetáculos pautados são sete, incluindo um exercício cênico preparatório para a montagem presencial em 2022. Para o teatro convencional, os espaços alternativos criados parecem inadequados ou um tanto incômodos, vazados, digamos. As apostas, então, caminharam para obras com formatos mais abertos, receptivos a diversas formas de quebra da convenção palco-plateia.
Assim, a maioria das histórias contempla fluxos narrativos ou performáticos. Há até um teatro cabaré, Lonely House, dedicado a Kurt Weill. É claro que existe a inquietude da mostra paralela, o fringe, antiga mostra alternativa transformada num festival independente, este ano com apresentações online e ao vivo, com mais de 170 obras na programação.
De um ponto de vista panorâmico, vale destacar: no caso dos festivais europeus, dificilmente se pode falar em redução do ímpeto da arte por causa da pandemia. Seria preciso encontrar outra palavra, pois a produção de teatro construiu atalhos para contornar os obstáculos. A busca não foi iniciativa solitária e tateante dos artistas. O teatro está lá.
A observação evidencia a existência de uma força coletiva de produção teatral, derivada de uma vida institucional da arte. A cultura, universo no qual o teatro e todas as artes se integram, é o oxigênio da sociedade. Para valer. Digamos que, para viver empilhados e comprimidos em estranhas construções de concreto e ferro, envenenados de plástico e química, uma outra natureza precisa ser estendida, uma arte da alma. Só esta respiração consegue viabilizar as vidas, na nossa condenação à selvageria urbana.
Isto quer dizer algo muito forte: de saída, a dificuldade (ou a impossibilidade…) para que eventos, acontecimentos pontuais se comparados com o fluxo dos séculos, possam acabar com a produção de arte. Nos exemplos europeus citados (aliás, podem ser encontrados em outros lugares), a arte é uma estrutura estável. Se a arte e a cultura são instituições, elas integram o jogo social, são inerentes à vida coletiva. Uma pandemia ou uma guerra são fatos que passam, sem imanência. Eles seguem, a arte fica. Está nos festivais.
Se, no entanto, o projeto for o de estimular a vida triturada em formas de concreto, ferro e plástico, impregnada em química, a arte precisa se esvair, passar ao largo. Quando se aposta na liquidação do ser humano, a arte deve ser supérflua. Descartável, ela acontece na palma e escapa por entre os dedos. Qualquer intempérie consegue dispersá-la, dissolvê-la.
A luta, portanto, parece bem clara para quem combate a favor da arte no Brasil – tratar de acionar procedimentos de adensamento da presença social da arte. A arte precisa ser transformada em instituição social: uma forma perene da vida coletiva, diálogo sensível entre cidadãos.
Pois se a arte acontece como fato circunstancial, resultado apenas do esforço de personalidades ímpares, ela se torna uma teia frágil de produção, sensível a quaisquer variações pontuais. Qualquer sopro de dragão distraído derruba a cena. Um incêndio no circo devora tanto a lona quanto a arte. Ela vira uma descartável arte da palma, objeto frio, estranho, para sempre distante do corpo da população.
SERVIÇO
FESTIVAL SESC DE INVERNO 2021
De 16 a 25 de julho
Programação virtual pelo Youtube (/portalsescrio) e outras plataformas digitais
Intervenções urbanas em Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo e Três Rios
Programação completa em www.sescrio.org.br
Wando Soares
Assessoria de Imprensa Sesc RJ
SERVIÇO
7º FESTIVAL MIDRASH DE TEATRO
Idealização rabino Nilton Bonder. Curadoria Márcio Abreu
PERÍODO: 18 a 29 de julho de 2021.
LOCAL: Sympla online
WhatsApp: + 55 (21) 2239-1800
E-MAIL: secretaria@midrash.org.br
Ingressos: gratuito com colaboração voluntária Renda destinada inteiramente às produções
Compra de ingressos online, pelo site: https://www.sympla.com.br/produtor/midrashcentrocultural
FESTIVAL DE ALMADA/PORTUGAL
https://festival.ctalmada.pt/wp-content/uploads/2021/06/Programa_38FA.pdf
FESTIVAL DE AVIGNON
FESTIVAL DE EDIMBURGO
https://www.edinburghfestivalcity.com/festivals/edinburgh-international-festival