Quem é você, dramaturgia?
A história do teatro é uma parceira ardente. A principal razão? Muito simples. Ela sempre surpreende os seus amantes, espalha fogo ao redor. Talvez se possa afirmar, sem medo de cometer injustiça, que ela padece de uma vocação atávica para trair. Da Grécia aos nossos dias, inúmeras foram as reviravoltas vividas pelo palco. Estabilidade de motivos, sentimentos, motores da ação? Nada, coisa nenhuma. Talvez nem se possa falar em história do teatro – mas, sim, antes, em história dos teatros.
A trepidação chega a um tal ponto que muita gente bem ajuizada, hoje, hesita diante do desafio de definir o que é teatro… Para alguns, teatro passou a ser sinônimo de qualquer coisa – como se o gesto cotidiano de varrer uma casa ou cozinhar um feijão pudesse ser equiparado ao ato de criação de uma cena de amores abstratos inventados delirantes, por exemplo.
No interior deste baú, o gato pardo mais sofrido parece ser, justamente, aquele que seria o princípio de tudo: o verbo. Descontando do rescaldo todo o oriente, o extremo e o médio, olhar a herança teatral tradicional sempre significou inventariar a dramaturgia. Sim, claro, para a fortuna ocidental, a velha história do teatro sempre foi a história da dramaturgia; falar do palco e da cena sempre foi falar dos dramaturgos e dos seus textos. Aos diabos os atores e todo o seu séquito de parafernálias materiais, essenciais para fazer o espetáculo acontecer.
Tanto é assim que a história dos atores é uma disciplina recente. Ninguém se preocupa em saber quem se escondia atrás de máscaras e em cima de coturnos para que as palavras de Ésquilo ou Sófocles ou Eurípedes ecoassem na amplidão dos ares do teatro. Os seus nomes sumiram no tempo.
Tanto é assim que, além de termos dúvidas cruciais a respeito da identidade de Shakespeare, não sabemos os nomes dos seus atores mais consagrados. No máximo, temos fiapos de suposições a respeito destas almas antigas extraviadas. A história dos atores só começou a se impor a partir do século XVIII. E a dos espetáculos se tornou fato digno de nota apenas no século XX.
Claro, a história do teatro também assusta as almas mais frágeis por ser um fértil terreno de maldições, excomunhões, transgressões e assemelhados. Não foram poucas as seitas e vertentes religiosas que consideraram a cena – afinal, uma reprodução, uma representação da vida – como se fosse uma réplica da obra divina, perfeita, portanto, para ser exorcizada. O texto, ao contrário, podia escapar como se fosse poesia…
O mais curioso é um fato cândido. Durante séculos, o teatro brigou, furioso, para ser uma arte pública. Quer dizer, pública não no sentido atual, dado por Amir Haddad, por exemplo. Pública no sentido de ser uma arte livre para expor suas formas em casas/edifícios próprios abertos para todos os que pudessem pagar…
Contudo, diante de sua vitória fulgurante, depois de conquistar as almas, o teatro passou a pretender ser outro. Alguns praticantes embarcaram na briga para que ele retornasse ao lugar do proibido, sob novas roupagens; outros investiram tudo para que ele se misturasse aos atos cotidianos da vida, e mais alguns deram para apostar todas as cartas no esforço para vê-lo hermético, mais cifrado do que código de guerra…
No jogo, quem se perdeu? A velha dramaturgia, com sua intrincada cartilha de procedimentos: ela passou para o limbo. Os próprios dramaturgos começaram a frequentar as salas de ensaio, suas obras deixaram de ser criações de gabinete, se tornaram frutos de dinâmicas práticas. A maior consequência? O fragmentário, o confuso, o obscuro ganharam muita projeção. E veio a vingança – a voz dos atores roubou a cena…
Ao mesmo tempo, em alguns segmentos, infelizmente, termos outrora ágeis para definir a arte saíram do foco, com uma diluição do conceito de peça teatral. Qualquer texto – tanto uma lista de compras como uma lista de endereços – poderia ser encenado. Para quê falar em protagonista, antagonista, conflito, ação dramática, situação dramática, curva de clima dramático, trama, entrecho, reviravolta, peripécia…?
Sim, uma violenta crise. Existe um processo geral de crise na história do teatro. O painel mapeia a configuração de uma crise forte do palco, uma crise estrutural, de paradigmas. Por toda a parte, a arte passou a buscar uma sintonia fina com o presente imediato, afinal uma condição fundamental para o teatro existir, mas a sintonia caminhou para a diluição da linguagem. A aproximação com uma arte irmã bastante sedutora – a performance – passou a sacudir cotidianamente os alicerces do velho palco.
Um grande perigo, um caminho na beira do abismo, pois o teatro não é performance, teatro não se estrutura na fricção imediata com a vida e sim com uma outra forma de sintonia essencial. Teatro é representação, performance é apresentação. E nada nesta definição desmerece as duas formas vivas de arte.
No caso brasileiro, a crise dos valores teatrais parece ter um colorido totalmente catastrófico, devastador, por uma razão histórica dolorida. Nunca conseguimos implantar um processo legitimo de consagração dos nossos dramaturgos. A dramaturgia aqui nunca se tornou uma arte respeitada o bastante para instaurar a sua plena tradição.
Nem mesmo os maiores dramaturgos do país conseguiram viver do palco – foram todos notáveis biscateiros, para sobreviver. Basta olhar as biografias de Jorge Andrade, Plínio Marcos e Nelson Rodrigues. Era absurdamente constrangedor ver Plínio Marcos tentando vender livros das suas peças nas portas dos bares noite a dentro, para comer.
Neste cenário turvo, parece ser animador contar com iniciativas de transposição da literatura, em parte a irmã rica, para a cena – textos de forte impacto poético, dotados de dimensão canônica, podem reforçar a necessidade de reconhecermos as letras do palco como formas poéticas e não singelas expressões coloquiais. O trânsito pode ter um impacto muito produtivo, se contribuir para afirmar a grandeza da cena.
No interior do debate, um autor sempre se projeta e aguça a inquietude de todos: Machado de Assis (1839 – 1908). Não há exagero quando ele é definido como o maior escritor nacional. Infelizmente, para quem ama teatro, ele dedicou uma parcela mínima de sua atenção para a criação de peças de teatro – assinou criações delicadas, de resultado poético bem mais modesto do que o alcançado por seus textos de ficção.
Pois Dioniso seja louvado, o debate pode ser ampliado nesta temporada com a estreia da peça Eu Capitu, novo cartaz do Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil. Trata-se de uma criação marcada por uma profunda originalidade. O mote responsável pela concepção do projeto foi a total urgência de combate frontal à violência contra a mulher na nossa sociedade.
O ponto de partida escolhido foi a revisão do relato da história de Capitu, uma das mais conhecidas heroínas da literatura brasileira, eixo estruturante da trama do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicado em 1900. A obra é leitura obrigatória nas escolas e, sem que se levante qualquer restrição ao gênio do autor, o ponto de vista dominante nas páginas é o masculino. O olhar e a voz de Capitu são oblíquos – definidos pelos homens.
A concepção do projeto conta com a assinatura do produtor Felipe do Valle. Depois de acompanhar um caso de violência doméstica cuja denúncia a polícia recusou, a releitura do romance fez com que percebesses a carga de violência presente no clássico.
Para a criação, a dramaturga Carla Faour assumiu o imenso desafio de criar uma dramaturgia original em diálogo com o texto machadiano, a crise teatral do nosso tempo e com a brutal realidade brasileira de hoje. Ao contrário do realismo do clássico, optou por uma tessitura simbólica de impacto, apostando na teatralidade.
Assim, a trama gira ao redor de uma menina no limiar do ingresso na adolescência, marcada pela violência sofrida pela mãe no casamento. Por causa da leitura do romance para a escola, ela busca abrigo num mundo imaginário e entra em contato com uma figura de fantasia – Capitu.
A equipe de criação do trabalho, majoritariamente feminina, conta com a liderança da diretora Miwa Yanagizawa, um olhar consagrado na cena contemporânea por sua percepção aguda da sensibilidade feminina. Duas atrizes, Flávia Pyramo e Marina Provenzzano, contracenam, atuam para fazer ecoar a voz da personagem.
O cálculo final surge como uma sugestão a um só tempo inquietante e amorosa – um convite a perguntas sobre a dinâmica da vida ao nosso redor, sobre a sensibilidade humana essencial, sobre os fundamentos do existir. Quais os valores básicos para a afirmação da vida na nossa época? Qual a herança – poética, teatral, racional e humana – nos liga ao universo machadiano?
Naturalmente as perguntas se ampliam e envolvem as engrenagens do fazer teatral – a dramaturgia ainda pode ser a senhora da criação na cena? Quais os procedimentos capazes de levar a peça de teatro a uma condição de diálogo tão relevante quanto à que foi conquistada pela literatura? Como instaurar uma tradição dramatúrgica brasileira nesta estante quebrada que recebemos, o espaço histórico vazio que o palco nacional herdou?
Contar com uma revisão de Dom Casmurro tramada por uma equipe feminina, amante de teatro, em sintonia tanto com a tradição teatral quanto com as urgências sociais imediatas parece ser uma promessa muito especial. Portanto, entregue-se – corra ao CCBB para desvendar o mistério, numa revisão do caso ardente concebido por Machado de Assis, uma outra narrativa a respeito da personalidade de Bentinho: em cena, com a palavra, afinal, Capitu.
Ficha Técnica
Direção Artística: Miwa Yanagizawa
Dramaturgia: Carla Faour
Diretora Assistente: Maria Lucas
Idealização e Direção Geral: Felipe Valle
Direção de Produção: Bárbara Galvão, Carolina Bellardi e Fernanda Pascoal (Pagu Produções Culturais)
Coordenação de Projeto: Trupe Produções Artísticas
Elenco: Flávia Pyramo e Marina Provenzzano
Direção Sonora, Trilha Original e Preparação Vocal:
Azullllllll
Direção de arte: Teresa Abreu
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Produção Executiva: Fernando Queiroz e Juliana
Soares
Assistente de Produção: Miguel Ângelo
Design Gráfico e Fotografia: Daniel Barboza
Gestão de Comunicação: Incerta Comunicação
Assessoria de Comunicação: Pedro Neves (Clímax Comunicação e Conteúdo)
Gestão de Projeto e Prestação de Contas: Felipe Valle e Mariana Sobreira
(Fomenta Soluções Culturais)
Produtora Associada: Pagu Produções Culturais
Correalização: Fomenta Soluções Culturais
Realização: Trupe Produções Artísticas e Singularte Produções
Sinopse
Desde pequena, Ana se isola em um mundo imaginário para fugir dos problemas que enfrenta em casa. Sua mãe, Leninha, vive um relacionamento abusivo com o marido. A tensão doméstica acaba por refletir no rendimento escolar da menina que precisa tirar boas notas em Literatura para não repetir o ano. A prova final abordar a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Mas a leitura afeta diretamente a menina, ela passa a enxergar pontos em comum entre o livro e sua vida.
Em seu refúgio fantástico, Ana recebe a visita de uma mulher misteriosa, cujo rosto parece ao de sua mãe. Aos poucos descobre-se que a mulher é Capitu, a personagem ícone da obra Machadiana. Nos encontros, Ana dá voz àquela mulher que só conhecemos através do olhar masculino. A improvável ligação entre elas serve à menina como um rito de passagem para o universo feminino adulto, em que ela começa a entender o que significa ser mulher num mundo narrado por homens.
Serviço
Temporada: de 12 de abril a 07 de maio de 2023
Dias e horários: Quarta a sábado, 19:30 e domingo, 18h
Classificação: 14 anos
Duração: 80 min.
Local: Centro Cultural
Banco do Brasil (CCBB) – Teatro II
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – RJ
Informações: (21) 3808-2020 | ccbbrio@bb.com.br
Ingressos: R$30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)
Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard
pagam meia entrada.
Ingressos na bilheteria física: de quarta a segunda, das 9h às 21h (exceto aos
domingos, cujo encerramento é às 20h) e no site bb.com.br/cultura
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Atividade extra:
Roda de conversa – Interseccionalidade e afeto: atravessamentos sociais no contexto das relações
Participantes:
– Carol da Matta –
professora de Língua Portuguesa e Literatura e pesquisadora da educação das
relações étnico-raciais.
– Lian Tai – Doutora em Comunicação Social pela UFF, atriz e escritora.
– Maria Lucas – Atriz e escritora carioca, doutoranda em artes pela UERJ.
Data: 06/05 (sábado)
Horário: 16h
Local: Auditório – 4º andar
Gratuito
Ingressos disponíveis na bilheteria do CCBB 1h antes do início do evento.