
Um teatro nacional?!? Como assim? Ah, é um sonho velho. O sonho de um teatro nacional embalou vários projetos de Paschoal Carlos Magno. Sim, era uma busca política nascida sob as asas de Getúlio Vargas e da Revolução de 1930. Pois é, ambiente tenso. Mas, vamos combinar, já que existia esta realidade chamada Brasil, por que ficar sem investir nela? Paschoal Carlos Magno estava errado?
Bom, eu não acho. Contudo, há sempre um ponto de interrogação. O sonho do nacional tem várias implicações. Será que o critério nacional tende a liquidar o que é nativo, local? Será que o nacional deveria ser um coral de maneiras, jeitos, modos de ser e de falar cantando juntos, sem que um apagasse o outro? Ou simplesmente deveria ser a vitrine do que existe, cada um por si, mas juntos e misturados? Qual seria a ligação desta história com o 35º Prêmio Shell de Teatro?
A partir da pandemia de covid, com o Prêmio APTR, foi iniciada uma ambição nos prêmios de teatro: conquistar alcance nacional. Bom, não se pode dizer que a missão é impossível, para não desanimar os diletantes que brigam pela causa. Mas, convenhamos, o desafio é tão continental quanto o país.

Finalmente, desde a edição do ano passado, o Prêmio Shell de Teatro vem propondo uma modalidade de visão nacional – atenção, não se trata de divisão nacional – com um desenho bastante curioso. De certa forma, com tanta atividade teatral espalhada pelo território, a proposta deseja destacar trabalhos que conseguiram obter projeção suficiente para transcender os limites do estado ou da região de origem.
Assim, na cerimônia de entrega do 35º Prêmio Shell de Teatro, amanhã, terça-feira, no Teatro Riachuelo, conheceremos obras que se destacaram neste rincão Brasil. Sim, a premiação continua a seguir a divisão tradicional Rio de Janeiro-São Paulo, principais centros produtores de teatro do país e que, apesar de próximos, professam formas criativas teatrais bastante diferençadas. Ao lado desta divisão, foi criada a categoria Destaque Nacional – a modalidade de prêmio que, delicadamente, indica o desejo de sonhar com um teatro nacional.

Sonhos, sonhos são. Mas a inciativa é bela. A qualidade do gesto com certeza permitirá uma percepção maior do imenso alfabeto humano existente no Brasil, bem como poderá revelar um fluxo criativo que banha sem distinção todo o território nacional.
Nesta edição, a festa no Rio receberá também os premiados de São Paulo, seguindo o revezamento habitual praticado pela premiação. A lista de indicados contém nomes de perder o fôlego. A torcida vai ferver. Contudo, a lista tem um dado inquietante. Ela é muito econômica no número de artistas de teatro musical, gênero que não costuma mobilizar a atenção dos jurados do Shell, apesar do estado de excelência conquistado pelo musical brasileiro.

A situação parece bastante curiosa – afinal, apesar da oposição dos letrados, intelectuais e acadêmicos, o teatro musical se impôs com uma força inacreditável na cena do país. Eles (os homens das letras) acreditavam que o musical, ao lado da comédia, sua parceira habitual, eram os responsáveis pelo fracasso de bilheteria dos gêneros sérios…
De certa forma, o teatro musical foi o rei dos palcos, ao menos no Rio de Janeiro, até 1961, data símbolo por causa da demolição do Teatro Recreio. O eclipse do musical ainda não foi bem estudado até hoje. A partir deste ponto até o Theatro Musical Brazileiro de Luiz Antonio Martinez Correa, houve um período de recesso. Mas, em compensação, no século XXI, chegou a hora da reviravolta… mesmo com batalhões de homens sérios perfilados contra, herdeiros dos bolorentos do século XIX.
E ainda assim a lista de finalistas do 35º. Prêmio Shell surpreende por sua tímida eleição de musicais. Algumas lacunas – como a deslumbrante remontagem de A noviça rebelde – são inexplicáveis. No Rio de Janeiro, cinco indicados representam o gênero musical na lista. Há até mesmo um fato raro: entre os atores, a indicação de Édio Nunes por Professor Samba – uma Homenagem a Ismael Silva, um trabalho realmente digno de prêmio.

Na cenografia, André Cortez foi indicado por Vital, Musical dos Paralamas. E a surpresa surge fulgurante na categoria figurino, com nada menos do que três indicações para o povo do trololó e pernas nuas, como se dizia nos tempos de Artur Azevedo. Lá estão Carla Costa, por Amor de Baile, o incansável Fabio Namatame, que vestiu o excelente espetáculo Alguma Coisa Podre, e Karen Brusttolin, por A Vedete do Brasil – um Musical Brasileiro. Na música, o nome solitário de Beà Ayòóla, pela direção musical de Amor de Baile, representa a notável classe que tem feito os palcos nacionais (e as plateias) cantar, dançar, sapatear.
Em São Paulo, a nota de surpresa é a indicação da sensacional Mel Lisboa, por Rita Lee, uma Autobiografia Musical na categoria atriz. Não fiz o levantamento, mas raramente os jurados de São Paulo indicam atrizes de musicais ao Prêmio. E num musical biográfico, modalidade ainda cercada por preconceitos? É um feito histórico considerável até por se tratar da vida de uma deusa absoluta da paulicéia.
A lista de figurinistas de musical de novo se impõe e lá encontramos Fábio Namatame por Tarsila, a Brasileira, ao lado de Márcio Medina, por Cabaré Coragem. Completa a lista de indicados por São Paulo, mais modesta do que a carioca, Gabriele Souza, na iluminação, por Cabaret, e o excelente homem-música Marco França, pela direção musical de ¡Cerrado!.

Na categoria Energia que vem da gente, uma espécie de categoria especial peculiar do Prêmio Shell, o júri do Rio de Janeiro não encontrou nomes para destacar no musical. Em compensação, em São Paulo, a cidade que inventou o teatro sério de alto coturno no Brasil e que talvez por isto tenha lá suas resistências à liberdade poética dos musicais, os jurados encontraram felizmente uma forma compenetrada de homenagear os musicais. Dentre os indicados na categoria, está o Negócio Social Tereza. A iniciativa apoia a reintegração social de egressas do sistema prisional, em parceria com artistas teatrais. O projeto se destacou na confecção de figurinos em espetáculos e um deles foi o inspirado musical Martinho, coração de rei – o musical, que não recebeu nenhuma indicação.
Finalmente, no Destaque Nacional, os jurados indicaram um total de 4 espetáculos e 3 são musicais – percentual que talvez possa apontar alguma coisa na identidade do país. Pode parecer arbitrário, a partir de uma eventual lista de premiação, desejar tecer conclusões a respeito da alma nacional. Mas, convenhamos, não são dados isolados. Eles se encaixam num fluxo histórico.

E lá estão brilhando, de Belo Horizonte, o musical biográfico Marku Musical, da produtora EntreFilmes; de São José dos Campos, a Ópera Febril, da Cia. do Trailler – Teatro em Movimento, uma ópera engajada no sentido brechtiano das palavras… E de Fortaleza o surpreendente A Força da Água, do Grupo Pavilhão da Magnólia, um formato original de teatro documentário musical, denuncia da indústria da seca, com uma força musical mais impressionante do que a força da água.
Vale finalizar celebrando o sonho de um Brasil teatral múltiplo, diverso, contraditório. Um Brasil capaz de amar um musical dedicado à biografia de um músico de qualidade (Marku Ribas), um musical-documentário devotado à denúncia de condições de trabalho fabril aviltantes e um musical-forró-dança de terreiro atento ao roubo do direito à água.

Logo ao lado, ombro a ombro, se projeta um grande texto clássico da dramaturgia universal, A Visita da Velha Senhora, encenação da Cia. de Teatro da UFBA, Universidade Federal da Bahia, com a esplendida atriz Itala Nandi liderando o elenco, espetáculo também indicado na mesma categoria.
Este palco generoso nos fala intensamente desta mistura desenfreada que somos, potência humana rara. Afinal, será uma noite de festa muito especial, pois estarão sendo celebrados tanto o fazer teatral de agora, com artistas notáveis, como alguns mitos sagrados da cena brasileira. Ao lado dos jovens e de atuantes profissionais do momento, teremos Itala Nandi e Othon Bastos. Quer dizer, na verdade, sonhar é pouco…

Indicados ao 35º Prêmio Shell de Teatro
Indicados pelo Júri do Rio de Janeiro
Dramaturgia
- Dadado de Freitas e Mauricio Lima por Arqueologias do Futuro
- Pedro Bricio por Um Jardim para Tchekhov
- Pedro Emanuel e Vinicius Arneiro por Língua
- Silvia Gomez por Lady Tempestade
Direção
- Adriana Schneider, Cátia Costa e Mar Mordente por Um pássaro não é uma pedra
- Fabiano Dadado de Freitas e Mauricio Lima por Arqueologias do Futuro
- Pedro Sá Moraes por Hereditária
- Yara de Novaes por Lady Tempestade e por Prima Facie
Ator
- Édio Nunes por Professor Samba – uma Homenagem a Ismael Silva
- Márcio Vito por Claustrofobia
- Othon Bastos por Não me Entrego, Não!
- Renato Livera por Deserto
Atriz
- Ana Marlene por Egoísta
- Andrea Beltrão por Lady Tempestade
- Débora Falabella por Prima Facie
- Débora Lamm por Último Ensaio
Cenário
- André Cortez por Vital, o Musical dos Paralamas
- Beli Araujo e Cesar Augusto por Claustrofobia
- Marieta Spada por Um Filme Argentino
- Ricardo Siri por Hereditária
Figurino
- Carla Costa por Amor de Baile
- Claudia Schapira por Améfrica: Em Três Atos
- Fábio Namatame por Alguma Coisa Podre
- Karen Brusttolin por A Vedete do Brasil – um Musical Brasileiro
Iluminação
- Adriana Ortiz por Um Filme Argentino
- Dadado de Freitas por Arqueologias do Futuro
- Fabiano Diniz por Memórias de Terra e Água
- João Gioia e Renato Livera por Sidarta
Música
- Beà Ayòóla pela direção musical de Amor de Baile
- Dani Nega pela trilha original de Eu Sou um Hamlet
- Eugênio Lima pela direção musical de Améfrica: Em Três Atos
- Morris pela trilha original de Prima Facie
Energia que vem da gente
- Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha – maior referência de formação de artistas do teatro circense na América Latina há mais de 40 anos.
- João Vicente Estrada, Lana Sultani e Ricardo Loureiro, pela criação de uma experiência poética transformadora em “tudo é minúsculo tudo é presença”, a partir das percepções do artista João Vicente, diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA) desde 2020.
- Programa Enfermaria do Riso – UNIRIO – por desenvolver desde 1998 uma ação de extensão integrada entre os cursos de Teatro e Medicina para formação e pesquisa em torno de intervenções artísticas de palhaçaria em hospitais.
- Retiro dos Artistas – por promover há mais de cem anos hospitalidade, cuidado e bem-estar a artistas e técnicos de teatro.
Indicados pelo Júri de São Paulo
Dramaturgia
- Dante Passarelli por Por um pingo
- Jhonny Salaberg por Parto Pavilhão
- Liana Ferraz por Não fossem as sílabas do sábado
- Victor Nóvoa por E se Fôssemos Baleias
Direção
- Clara Carvalho por Hedda Gabler
- Jéssica Teixeira por Monga
- José Fernando Peixoto de Azevedo por Depois do Ensaio, Nora, Persona
- Naruna Costa por Parto Pavilhão
Ator
- Alexia Twister por Rei Lear
- Bruno Lourenço por Brás Cubas
- Rogério Brito por Sangue
- Sidney Santiago Kuanza por A Solidão do Feio
Atriz
- Adriana Lessa por A partilha
- Lucélia Santos por Vestido de Noiva
- Mel Lisboa – Rita Lee, uma Autobiografia Musical
- Noemi Marinho por O Vazio na Mala
Cenário
- Carla Berri e Paulo de Moraes por Brás Cubas
- J.C. Serroni por Primeiro Hamlet
- Rager Luan por Tá pra vencer
- Wagner Antônio por A bailarina fantasma
Figurino
- Eduardo Giacomini por Cão Vadio
- Fábio Namatame por Tarsila, a Brasileira
- Márcio Medina por Cabaré Coragem
- Simone Mina e Carolina Bertier por Vestido de Noiva
Iluminação
- Aline Santini por Perfeita
- Beto Bruel por Petra
- Gabriele Souza por Cabaret
- Wagner Antônio por Um Jaguar por Noite
Música
- Adilson Fernandes, Bruno Garcia, Carol Nascimento, Dani Nega, Flávio Rodrigues e Jonathan Silva pela direção musical e trilha original de Maria Auxiliadora
- Dani Nega e Marina Esteves pela concepção de direção musical de Magnólia
- Marco França pela direção musical de ¡Cerrado!
- Zeca Baleiro pela trilha original de O Ninho, um Recado da Raiz
Energia que vem da gente
- Grupo Clariô de Teatro – pelos 20 anos de estímulo à produção cultural e atividades culturais na periferia de Taboão da Serra e região e por sua relevância para a história do teatro negro no Brasil.
- IBT – Instituto Brasileiro de Teatro, pela abrangência de suas ações como agente de captação de recursos e de incentivo à produção e divulgação das artes cênicas.
- Negócio Social Tereza – pelo trabalho realizado por egressas do sistema prisional em parceria com artistas teatrais para a confecção de figurinos em espetáculos como Martinho, Coração de Rei – o Musical e Marrom, o Musical.
- Teatro Oficina Uzyna Uzona, pelo êxito da mobilização cultural e social para a criação do Parque do Bixiga, marco para a história teatral e artística de São Paulo.
DESTAQUE NACIONAL
- A Força da Água – do Grupo Pavilhão da Magnólia, de Fortaleza – CE
- A Visita da Velha Senhora – da Cia. de Teatro da UFBA, Universidade Federal da Bahia, de Salvador – BA
- Marku Musical – da produtora EntreFilmes, de Belo Horizonte – MG
- Ópera Febril – da Cia. do Trailler – Teatro em Movimento, de São José dos Campos – SP
HOMENAGEM DO ANO (JÚRIS RJ, SP e DESTAQUE NACIONAL)
- Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Conheça o corpo de jurados do 35º Prêmio Shell de Teatro:
Rio de Janeiro
- Ana Luisa Lima (professora, produtora e gestora cultural)
- Biza Vianna (figurinista, diretora de arte e produtora cultural)
- Daniele Ávila (artista de teatro, crítica e curadora)
- Leandro Santanna (produtor cultural, gestor público e ator)
- Paulo Mattos (curador e produtor cultural)
São Paulo
- Evaristo Martins de Azevedo (crítico de arte)
- Ferdinando Martins (professor e crítico de arte)
- Lucelia Sergio (atriz, diretora e dramaturga)
- Luiz Amorim (ator, diretor e gestor em produção cultural)
- Maria Luisa Barsanelli (jornalista), em São Paulo
Destaque Nacional
- Dane de Jade (atriz, pesquisadora e gestora cultural)
- Giovana Soar (atriz, diretora, tradutora e curadora)
- Guilherme Diniz (pesquisador, crítico cultural e professor)
- Marcio Meirelles (encenador, dramaturgo e gestor cultural)