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Crítica: Pierrô do Méier

 A casa é sua, caro prefeito

Copacabana: aldeia de pescadores. Copacabana: um bairro religioso. Ah, disto, toda a gente sabe. Tudo começou um pouco como um caso de contrabando – reza a lenda urbana. Quer dizer, um bairro religioso por excesso de pecado. Então, convenhamos, isto explica muito a natureza do bairro, não é? De certa forma, um bairro pescador e pecador desde sempre. Para quem não lembra, vale recordar.

Dizem que o Rio, lá antes do delírio do ouro das gerais, sonhava, pobrinho, com metais preciosos. A divina providência – ou a suprema malandragem – fez com que “flotas” vadias das colônias hispânicas pairassem por aqui, em busca de açúcar, aguardente, artefatos europeus, enfim o que mais se pudesse contrabandear. Em troca de prata! Sim, foi no século XVII.

Eram os peruleiros – traziam a prata das minas do Peru e a cobiça aguçada para burlar o rigoroso monopólio espanhol, mais violento do que o lusitano. Um navio destes teria naufragado ao largo da mais bela praia carioca, Sacopenapã. Suponho, justamente, que o piloto sucumbiu cego de sol e mar, diante de tanta beleza, uma visão estonteante do paraíso. A embarcação afundou. Não sei se ela levava prata nos porões, mas a carga mais preciosa foi dar na areia e, encontrada por pescadores, abençoou a capelinha da praia: Nossa Senhora de Copacabana. Aquela, lá do Peru.

Sim, existem outras versões da história, bem mais terrestres. Para quem lê, vale pesquisar e escolher a versão de mais impacto para a sua visão de mundo. Pessoalmente, considero perfeita a versão aqui exposta, uma visão um tanto livre do relato dos fatos feito pelo emérito professor Manoel Maurício de Albuquerque. Gosto desta combinação inusitada, jogo frontal de opostos, origem do poder de sedução do Rio.

Sigamos. Não vou explorar a fundo as ressonâncias rascantes deste confronto histórico denso entre a virtude e o pecado, a santa e o contrabando – convido quem é carioca ou apenas conhece o bairro a soltar a imaginação. E, assim, criar a sua definição pessoal para o recanto paroxítono.

Copacabana, seja qual for a explicação escolhida, não precisa de verdades, a palavra tem som de pecado. Todavia, não vou ficar nisto, não vou fugir da raia, vamos adiante. Vou apenas falar da chance de mergulhar na virtude e no pecado hoje, uma mistura irresistível, arrebatadora mesmo, que qualquer um pode ter o imenso prazer de experimentar. Se andar nas ruas de Copacabana pode significar perigo, dá para respirar pecado por lá de forma muito saudável, em tom de religião!

Aliás, solidária com a classe política dedicada à cidade, uma classe que – reconheçamos – sofre mais do que pingente e surfista da Central do Brasil em dia de chuva, aproveito o texto. Quero de saída usá-lo como carta convite ao Senhor Prefeito Eduardo Paes, para que ele passeie por Copacabana e refrigere a alma das agruras urbanas do Rio.

O fato é batata, muito simples. Existe em Copacabana um altar relicário, singelo como uma capela colonial, espremido no lufa-lufa urbano. Lá, como se fosse o lar antigo de devotos pescadores de almas ou de imagens raras, pratica-se a religião cidadã mais pura que se pode imaginar: o teatro.

A casa responde pelo nome magnético de Espaço Abu. Sim, trata-se de um nome-manifesto, tessitura de um vínculo direto com o diretor Antônio Abujamra (1932-2015), fundador do coletivo Fodidos Privilegiados, um grupo de artistas entregue ao privilégio de fazer teatro a qualquer custo.  Pois lá, com total devoção e imenso amor, não se faz outra coisa…

A casa sobreviveu à pandemia de covid-19 e acabou de reabrir com um trabalho teatral inebriante, capaz de desencaminhar devotas, noviças e toda a tribo assemelhada indiferente ao teatro. Vão se transformar em vestais da cena, depois de contemplar o milagre que lá acontece.

Duvida? Pois vá ver. E se prepare para, em seguida, aproveitar um fluxo de felicidade existencial só seu, que vai brotar dentro de si, com a percepção privilegiada do que pode ser a liberdade do sujeito. Sim, trata-se de um espetáculo libertador, daqueles que sacodem as agruras da alma e dizem para o seu cérebro: vai, filho de Deus, bandido ou mocinho, vá!

O tema subterrâneo é exatamente este, a libertação do drama do pecado de existir. O espetáculo foi batizado sugestivamente como Pierrô do Méier, uma alquimia de textos de três crônicas, assinadas pelo Nelson Rodrigues mais hiper carioca de A Vida Como Ela É. As crônicas selecionadas para a montagem, irreverentes, ácidas, profundamente humoradas e belamente críticas são A troca, O monstro e Flor de Laranjeira.

Na superfície da cena, surge a habitual teia rodrigueana de relações afetivas triviais.  Ela se projeta sobre a plateia, incrivelmente repleta de ciúmes, obsessões, taras, desejos fulminantes, revanches e ressacas amorosas, valores sentimentais de época. Da maré agitada, brota plácida, mas devastadora, a solidão humana, a constatação da realidade da vida como oco existencial. Pois é: o ser humano só tem a si mesmo. Precisa ser sujeito de sua dança interior, para voltear no espaço na tentativa desesperada de ter amor, o antídoto, inalcançável, para derrubar a solidão.

De desentendimento em desentendimento, sob a direção inteligente de Elena Gaissionok, o ator Paulo Trajano assina uma partitura expressiva tão impactante quanto a atmosfera pecadora de Copacabana. Ele é corpo, mas é palavra: em lugar de contar as histórias das crônicas, ele confere existência objetiva, corpórea, aos relatos, confere um sentido altamente sofisticado à palavra performance, distante de trivialidades imediatas. Simplesmente Paulo Trajano consegue fazer o texto rodrigueano existir.

 Marionete do mundo, marionete de si, o ator impressiona por sua intensa capacidade expressiva, o poder arrebatador de revelar fisicamente um complexo rol de sentimentos, apoiado em recursos mínimos de cenarização e de definição de figurino. A elegância da cena é um bálsamo. As sutilezas interpretativas, densamente trabalhadas, arrebatam a plateia, um povo que o ator governa ao seu bel prazer, almas perdidas do eu, à deriva, à beira mar.

Isto quer dizer muito, destaque-se. Há uma forma de corporificar o texto simplesmente magistral, construída a partir de um segredo de formação precioso, o trabalho poético do corpo através da dança. Nas implantações do ator em cena, da posição dos pés aos desenhos espaciais oferecidos pelos braços e pela coluna, a dança transparece como mestra essencial para retratar a fluidez da vida.

A magia se torna mais arrebatadora se, forçando os olhos a escapar rápidos do relicário cênico construído pela força do ator e a sofisticação do desenho de luz, espreitamos a delicadeza do Espaço Abu. Sem dúvida, que espaço magistral, trata-se de um ato supremo de religião, altar de excelência para salvar a carne social.

Então, convenhamos: o ilustre edil do Rio de Janeiro não pode deixar de visitar a requintada casa. Lá, além de  vivenciar um momento exemplar de qualidade do teatro carioca, o prefeito poderá se inspirar para salvar o Rio, que anda mais precisado de salvação do que pecador colonial. Sim, basta dar partida num projeto simples, de apoio à classe para a instalação de pérolas teatrais semelhantes ao Espaço Abu, no Centro do Rio. E – para um bom pecador não custa nada sonhar alto – quem sabe por toda a cidade, até nos recantos mais distantes do mar?

Digamos, contudo, que a escolha recaia sobre o Centro. Pequenas casas de atores e de grupos podem operar um milagre no abandonado centro urbano da cidade, impulsionando o bairro para uma renovação de sua vocação mais antiga, de centro teatral urbano.

Basta ter a vontade expressa de pecar contra o abandono, digamos. Basta ir até Copacabana, respirar fundo e embarcar numa nau repleta de sonhos, principalmente o sonho de ver a cidade maravilhosa brilhar de novo, mais uma vez, quem sabe se projetando como capital brasileira do pecado teatral, na busca de copacabanizar o país.

E fazer então nascer uma nova religião carioca. Afinal, o grande mote do texto de Nelson Rodrigues em cena no Espaço Abu é o amor, único caminho capaz de, mesmo ilusoriamente, vencer a abissal solidão a que estamos condenados desde sempre. Portanto, senhor prefeito, como bons cariocas, sigamos Copacabana, pequemos, nos entreguemos ao amor ao Rio. Afinal – quem for bem religioso responda rápido – existe pecado sem amor?

Ficha Técnica

autor: Nelson Rodrigues

direção: Elena Gaissionok

atuação: Paulo Trajano

cenografia e figurino: Elena Gaissionok e Paulo Trajano

iluminação: Thales Paradela

programação visual: Aline Assumpção

fotografia: Renato Neto

produção executiva: Cláudio Calixto

Serviço 

“Pierrô do Méier”

Espaço ABU: Av. Nossa Sra. de Copacabana, 249, loja E Copacabana – RJ – telefone 21 994769510

Sextas e sábados às 20h. Domingos às 19h.

Ingressos: R$60,00 (inteira) e R$30,00 (meia entrada)

Bilheteria: de 14h às 19h

Nos dias de espetáculo: de 15h até o horário do espetáculo

Vendas no Sympla: https://www.sympla.com.br/produtor/espacoabu

Temporada: de 10 de março a 23 de abril

Capacidade: 40 lugares

Duração: 70 minutos

Classificação etária: 14 anos

Mais informações no Instagram:

@Pierrodomeier @espacoabu