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Bom mesmo é jiló

Esta semana, passeando no youtube, tropecei numa sequência de um velho  filme de Dercy Gonçalves (1907-2008). O curto trecho mostrava um número musical do divertido Zé Trindade (1915-1990). Cercado por moças vaporosas, coristas discretas, ele cantava loas à mulher boa como se fosse um campeão na conquista de beldades.

Num canto da boate, Dercy aparecia imóvel, sentada, observando a cena. Não pude pegar o filme inteiro para rever. Diante de mim, para provocar o meu pensamento, num momento em que a cena nacional ferve,  desfilaram dois nomes fundamentais do riso carioca.

Podem protestar à vontade. Usei carioca de propósito – sei bem que Zé Trindade nasceu na Bahia e Dercy no Estado do Rio.  Mas defendo o ponto de vista de que os dois, radicados e celebrados nos palcos cariocas, se tornaram parte de um espírito da cidade que ninguém poderá desautorizar enquanto tal. A razão é simples – este espírito foi ampliado de tal forma que ele se tornou parte de um jeito de ser brasileiro. Houve um tempo em que o Brasil era carioca e cabia todo no Rio de Janeiro. Sim, era uma forma do poder.

Mas o ponto que interessa ao texto não é uma disputa política, um enfrentamento banal de aldeia, coisa ociosa. O que importa de verdade é delimitar uma forma de riso em que predomina um feitio Brasil – ainda que num primeiro momento o corte tenha certidão carioca. Indo um pouco mais longe, acredito ser possível falar de um notável talento Brasil. O ponto de partida, contudo, está no riso.

Certamente não se compreenderá o fundo e a forma deste riso, a razão profunda para a nascença deste ator cômico, se não se considerar o século XIX, a capital federal e até o pacto espúrio das elites, voltado, este pacto, para a exclusão cidadã. Pois, afinal, este riso foi, desde sempre, um riso de si.

Trata-se do riso do pobre coitado do brasileiro, sem eira nem beira, desvalido diante do poder, o poder que desfilava em carro aberto no Rio. E o cidadão ali, na turma do sereno, sem nada poder. Ou, antes, apenas com um poder curto, irrisório, quase que só mesmo o poder de rir. Gosto de pensar que a História nos deu a sorte dos talentos – o talento nos salva.

Analisar as performances de Zé Trindade ou de Dercy Gonçalves não é tarefa fácil. Do primeiro, só vi cenas gravadas, nunca pude vê-lo ao vivo, até por serem escassas as suas apresentações ao vivo e em presença. Dela, consegui ver trabalhos impressionantes, na fase final da carreira.

Era só ela em cena. Não tinha autor, diretor, elenco, nada. Quando muito, contava com um ator de apoio, perfeitamente dispensável. Sempre fiquei impressionada com o processo de domínio da plateia, imensa, ao longo da apresentação. Eram teatros grandes, o Teatro Carlos Gomes, o João Caetano, o Canecão. E, com pouco tempo, a plateia estava na palma de sua mão, domada. Ela fazia o que queria e o povo ia atrás, hipnotizado.

Falo em análise de performance, aqui, com um sentido bastante restrito, o termo significa neste caso apenas o registro específico do ator. Quase o seu estilo, ou melhor, o andamento do seu estilo.  Nas cenas que eu vi, Dercy Gonçalves atuava em sintonia racional com o público, tramando transgressões: as suas transgressões aconteciam no enfrentamento dos desenhos correntes do senso comum. Por isto, o uso cuidadoso, embora farto, dos palavrões, em sintonia com os preconceitos, os chavões morais. Assim ela comandava a respiração do público.

A fala era a arma mais afiada da atriz. O corpo, os gestos, os movimentos surgiam econômicos, raros, escassos. Funcionavam como pontuação enfática, acabamento de frases ou de ideias. Para a compreensão mais nítida deste tema, uma comparação pode ser bem interessante – a partitura gestual de Oscarito (1906-1970), um ator formado no circo, com a partitura de Dercy, atriz espontânea.

Falar em atriz espontânea, vale destacar, não significa qualquer restrição à artista. Vai longe o tempo em que se podia julgar o trabalho de Dercy sob o preconceito acadêmico da “falta de formação”, como pretexto para definir a sua arte como menor. A rigor, o estratagema apenas disfarçava o velho rancor à comédia, pois entre os atores ditos trágicos e/ou dramáticos a mesma falta de “formação” nunca serviu como redução de suas artes.

Zé Trindade, contudo, aponta um outro caminho. Especializou-se no rádio, veículo a que se dedicou intensamente, desenvolveu uma forte linha de trabalho musical, de temperatura cômica, e extensa filmografia. Sob este perfil, ele se projetou para a história do ator cômico em razão de sua autoralidade, a autoria de tipos e de histórias, e por seu desenho atoral, a composição de um personagem permanente plástico, muito específico. A rigor, Zé Trindade foi humorista e comediante, com assinatura firme, própria, em muitos trabalhos. Levava o tipo criado para diferentes situações.

A linha seguida pelo ator se destaca por ser um profundo convite ao riso de si próprio. A sua escolha maior era a função de galã, mas galã cômico e, em virtude de seu temperamento e do seu tipo físico, galã cômico caricato. Baixinho, gordinho, feinho, Zé Trindade assinava papéis em que exalava a pretensão de conquistador irresistível. O corpo hierático, sujeito apenas aos movimentos essenciais de deslocamento, regia o espaço e a ação a partir de expressões faciais exageradas, caricatas, e movimentos dançantes dos braços.

Alguns bordões e ruídos inusitados pontuavam a fala, para completar o quadro, sempre com uma maleabilidade surpreendente do rosto – caretas, digamos. Pausas e efeitos de suspensão do sentido – graças em particular ao hábito de arregalar os olhos – adensavam o efeito cômico, sempre fulminante. Mas a  base do trabalho possuía uma origem clara, a extrema contradição, radical mesmo, entre o que ele pretendia ser e a figura patética do ator. De certa forma, ele fazia o galã impossível, logo, risível.

Os dois casos – e muitos outros exemplos poderiam figurar aqui para atestar o que se pretende afirmar – denunciam a extrema riqueza criativa do ator brasileiro. Mais, até, na verdade. Há uma potência criativa admirável no país, aqui nascem muitos talentos dotados para a arte e eles se projetam de uma forma surpreendente. Assinam construções poéticas vivas, emanadas de si, dos criadores.

O fato, outrora, viabilizava um debate que hoje se tornou tabu, de certa forma. Não era exatamente um debate acerca da necessidade ou não das escolas de formação de ator, mas sim a respeito da justiça (ou da injustiça) da exigência da formação escolar para o ingresso na profissão. A rigor, no fundo, esta determinação legal exclui os mais pobres, os habitantes do interior, os que, muito talentosos, não contam com a facilidade da escola ao alcance do corpo, nem possuem poder de circulação social.

Hoje o poder e a extensão das escolas cresceu numa proporção tão notável que o debate ficou um pouco mais complicado. Sim, as escolas são necessárias – elas formam o ator no sentido francês, do comediante, do intérprete muito bem formado, qualificado tecnicamente, capaz de ser Hamlet hoje e coro de tragédia grega amanhã. E o palco quase conquistou o tamanho do Brasil.

Mas uma bela ressalva prejudica este grande papel da escola de ator no Brasil. Ela forma tudo, oferece tudo. Só não formou o mercado. Aliás, desde o século XIX a escola brasileira padece deste estranho desvio existencial, funciona como uma estrutura paralela à sociedade, se possível e sempre que possível formando pessoas sem conexão com a realidade.

Isto significa dizer que, se o ator, formado nas escolas, muito bem preparado em complexas teorias e técnicas teatrais, quiser fazer Hamlet num dia e coro no outro, ele poderá fazer, desde que se desdobre para bancar a produção. Quer dizer, dificilmente ele o fará. Não existe este lugar no mercado – pois o mercado não existe, é uma abstração, espécie de umercado.

Portanto, existe neste umercado bastante espaço para o ator dotado de talento, obcecado pelo aperfeiçoamento do seu jeito de ser, criador do seu papel, mas sem diploma de escola formal de ator. Há espaço para que ele possa se afirmar e acontecer. Este lugar não existe apenas para o humorista, tipo Tom Cavalcante ou Marcelo Adnet. Há um largo campo para o ator criador independente no próprio teatro, já que são as pessoas que desenham o mercado, isto se ele conseguir vencer as barreiras sindicais e legais.

O debate importa neste momento em que o teatro, mais do que nunca, sobrevive como fato virtual graças ao esforço dos talentos devotados à cena. Em vários casos, não existe sequer algum ganho material, apenas ato de devoção à arte e aos amantes da arte. Um sentimento impossível de explicar em palavras leva estas pessoas a se movimentar em defesa de um fazer em que acreditam, do qual são apaixonadas e que desejam ver pulsando.

Um ditado velho muito repetido, bastante querido, insiste em sustentar a máxima de que samba não se aprende na escola. Como professora de teatro, tive o privilégio de ter como alunos alguns gênios iluminados pelos deuses do teatro. Já sabiam tudo. Nasceram sabendo. Não precisavam de escola, a não ser como forma de ingressar no meio teatral. Sim, a escola burila, desasna, dá vivência, maturidade. Mas o tempo das escolas – sabemos todos, honestamente – é insuficiente para formar um ator. Ele vai precisar de muita quilometragem fora da escola para chegar ao patamar de proclamar: eu sou um ator.

Dá para constatar, no entanto, a existência de personalidades dotadas de um talento tal que, ao nascer, não choraram, contracenaram. Nem precisariam de escola – Dercy foi um destes casos. Mais de um crítico escreveu condenando-a por não ter tido  escola. Não viram a realidade: a escola era ela. Dercy Gonçalves, Zé Trindade – tantos nomes fortes, aptos a perguntar para a escola brasileira de onde, de verdade, ela, escola, veio.

A reflexão, contudo, não nasceu apenas de um pedaço de filme visto ao acaso. Na verdade, aconteceu um curto circuito de informações, ao ver o trecho do filme e ler o release sobre o evento FarOFFa no Sofá, uma mostra que reunirá, de 11 a 16 de agosto, cerca de 130 obras teatrais e nove palestras.

Percorrer a listagem das obras escolhidas, várias recentes, outras nem tanto e algumas históricas, todas sempre obrigatórias, dá um frio na espinha. O reflexo eletrizante nasce da constatação da riqueza notável de nossa arte teatral.

  O ato de perceber a multiplicidade de falas e de vozes indica a existência de um outro país, distante do velho desenho histórico. E pode ajudar a enfrentar os desafios que se avizinham. Afinal, a criatividade importa diante dos turbilhões históricos – quem conta com personalidades tão ímpares ao redor, com certeza tem garra para encarar de frente a marcha do mundo, especialmente quando ela se torna algo distante da leveza e da inocência risonha das velhas marchinhas de um Zé Trindade.

Ficha técnica do FarOFFa no Sofá

Cuidada e feita por: Todes

Pensada por: Corpo Rastreado e Périplo Produções

Junte de: Canal Aberto, Casarini Produções, Ecum – Encontro Mundial das Artes Cênicas, MITsp – Mostra Internacional de Teatro, Junta Festival Internacional de Dança, Trema Festival e Manga de Vento.

Equipe digital:

Alba Roque, Aline Mohamad, Ariane Cuminale, Danusa Carvalho, David Costa, Gabi Gonçalves, Gisely Alves, Graciane Diniz, Leonardo Devitto, Ludmilla Picosque, Monique Vaillé, Murilo Chevalier, Natasha Bueno, Pedro de Freitas, Ricardo Suzart, Rodrigo Fidelis, Tamara Andrade, Thaís Cris e Thaís Venitt


Serviço

FarOFFa no Sofá

De 11 e 16 de agosto de 2020

Onde:

Quanto: pague quanto quiser.

A verba será destinada às instituições Arte Salva (PR), Haja Amor – A Revolução (RJ), Pela Vida de Nossas Mães (RJ), Instituição Beneficente Conceição Macedo (BA), Casa Aurora (BA), Fundo Marlene Cole (SP), É Da Nossa Cor (SC) e N’Zinga – Coletivo de Mulheres Negras (MG).


Assessoria de Imprensa:


Canal Aberto