A UTILIDADE DO TEATRO
OU
A RELIGIAO DA ARTE
Você é daqueles seres materialistas puros, de alta estirpe? Então, desconfio que este texto não é para você: pode parar de ler aqui… A rigor, nem sei mais dizer como o materialismo puro define hoje a arte – antigamente, no velho catecismo materialista, a arte andava ali perto da ideologia e, portanto, com frequência era abatida sob a acusação de ser ópio do povo.
Pois é. O ópio é volátil, a arte fica. Os panfletos somem, mas a Divina Comédia, por exemplo, paira etérea acima dos tempos. E arrebata cada mortal que se inclina diante da beleza de suas páginas. O mesmo mistério envolve o teatro: A Farsa do Mestre Pathelin, medieval, continua a conversar com as plateias da vida industrial.
Então, vamos combinar, a arte, ela tem qualquer coisa lá…, tem alguma coisa além de toda vã filosofia. Há no seu modo de estruturação algum capricho capaz de capturar os corações. Podemos até dizer que a arte é uma espécie de religião humana, um bálsamo pagão produzido dentro da engrenagem da vida para elevar os seus fiéis a um lugar de depuração. Na arte, matéria e ideia se combinam…
Já se olhou para este curioso dispositivo, a um só tempo objetivo, concreto, material e ideal, eficiente para jogar as pessoas na imaterialidade, sob uma aura de suspeição, até como uma forma de dominação espúria. Era comum, então, usar a expressão “arte burguesa” para denunciar formatos da arte negativos, suspeitos, condenáveis. Em paralelo, existiria, no escaninho ao lado, uma “arte libertadora” ou “revolucionária”, pré-formatada, apta, esta sim, para conduzir as suas vítimas ao verdadeiro paraíso.
Contra este tipo de raciocínio esquemático algumas vozes se ergueram. Uma das vozes mais fortes, no teatro, a favor da liberdade da arte, foi a de Lorca (1898-1936). A partir de sua experiência teatral mais densa, o teatro itinerante La Barraca, organizado em 1931, o poeta e dramaturgo constatou o efeito profundo do teatro sobre as pessoas. E comentou que ninguém, nem mesmo o camponês mais simplório do interior, conseguia passar incólume por uma experiência teatral. A poesia da cena alterava a alquimia interior de todos, sempre.
Claro, não há receita – o processo é pessoal e intransferível. Cada um, exposto a esta curiosa criptonita cênica irradiada pelo palco, trabalhará, à sua maneira, os seus poderes interiores. Não, não significa a transformação de gente comum em super-herói. Significa, provavelmente, o encontro do caminho para o melhor de si. Ou, no mínimo, para alguma depuração de si.
Não sei se o raciocínio deixou, até aqui, a função do teatro clara e precisa. Não sei se existe a possibilidade de se obter esta proeza de definição, bem didática, palpável como um golpe mágico de alçapão. Numa fala direta, poderíamos dizer que o teatro é a lavanderia da alma; como tal, ele se apresenta em diversas potencias. O arsenal das máquinas teatrais é enorme.
Alguns formatos batem de leve, acarinham com suavidade as fibras, deixam as superfícies aveludadas e inclinadas ao aconchego. Outros formatos, na outra ponta da escala, robustos, sacodem com ímpeto e fúria toda a estrutura, torcem, moem e, nos tecidos delicados, podem provocar até mesmo belos estragos, fissuras nos corpos, rasgos na alma.
Dizem que tais efeitos radicais, hoje, são inalcançáveis, tão grande se tornou a intimidade entre a máquina da cena e as almas da plateia. Alguns encenadores e atores buscam em vão encontrar este caminho, mas, segundo contam os manuais de história do teatro, tais transtornos radicais só aconteceram mesmo lá atrás, no berço da arte.
Pois não se afirma que a repercussão da tragédia grega, tão chocante naquelas audiências atenienses, virgens ou quase, chegava a provocar abortos em mulheres grávidas? Não temos mais quaisquer notícias de impactos tão intensos causados pelo teatro no nosso tempo. Fomos vacinados com o transcurso dos séculos. No máximo, temos arrepios, lágrimas furtivas, gargalheiros frenéticos… Às vezes, somos premiados com extremos de repulsa diante de certos quadros, mais crus de realidade do que de efeitos espirituais. Sim, pois o tremor físico grego nascia de solavancos espirituais! Ninguém pensava em golpear o fígado da plateia!
No entanto, precisamos com urgência, por aqui, de reconhecer a força e a necessidade do teatro para a saúde social. Precisamos planar sobre o nosso tempo! Sim, o teatro existe para o transporte metafísico, quer dizer, o transporte para fora de si. Milímetros, centímetros, quem sabe alguns metros ou, ao menos, metro e meio – o teatro nos separa da vida cotidiana ordinária e, no final, nos devolve renovados.
Isto quer dizer que o teatro é um ato de amor ao humano. E, como cantou o artista, toda maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar. Portanto, todo teatro importa. Todo teatro é válido. É uma grande bobagem demonizar o teatro comercial, o palco trivial, na suposição de que ele embrutece o público ou presta um desserviço à arte. Ele dialoga com o público que necessita falar com ele, simples assim…
Diante dos diferentes caminhos de criação teatral do nosso tempo, as classificações precisam deixar de ser pejorativas, preconceituosas. A grandiosidade da arte deve ser reconhecida. E saudada. Reconhecer densidades e tessituras diferentes não significa construir uma escala de valores, mas apenas dimensionar poéticas, públicos e lugares da arte. A cada um, o teatro adequado à fome da sua alma.
Alguns exemplos seriam interessantes para ilustrar estes pontos de vista. Percorrer a temporada com o foco nesta discussão teria um alcance muito produtivo. Mas seria uma tarefa para um texto muito longo e aqui é necessário ter uma visão mais objetiva. Vamos reduzir o olhar a dois casos.
Está chegando ao Rio, diretamente do Rio Grande do Norte, um espetáculo bem curioso – Candeia, do Grupo Estação de Teatro, de Natal, sob a direção de Titina Medeiros. A estreia será no dia 31 de março, no SESC Tijuca. A proposta reúne várias peculiaridades. De saída, se não chover, as apresentações acontecerão ao ar livre, como se fossem cenas de feira. Se as chuvas de março derem as caras, a ação será transferida para o Teatro 2. Assim, em princípio, os espectadores irão viver uma experiência inovadora, interativa: serão recebidos por quatro velhinhas no seu quintal.
Evocando de longe a deliciosa montagem de Interior, do Grupo Bagaceira, do Ceará, surge em cena um painel de um universo antigo e afetivo, das benzedeiras, conversadeiras, devotas de chás e mezinhas, um tipo de vida que se apaga do horizonte nacional, diante da urbanização desenfreada e da espetacularização da existência. Lá estarão tramas delicadas de um outro tempo, com as memórias, as receitas, o bolo, o café coado…
Enfim, vivências de um Brasil capaz de evocar avós, para alguns, ou revelar uma paz social perdida, para todos, uma sociedade de encontro e convivência. A ideia do título – candeia – é a de que o teatro surja como uma luz delicada, mas forte o bastante para desenhar forças profundas essenciais para a saúde social. Quer dizer, reencontrar o outro, abraçá-lo, recebê-lo como interlocutor importante na vida.
Se esta montagem surpreende ao conciliar saberes antigos, de colo e quintal, com um formato cênico ousado, materializado no teatro-feira, no espaço aberto e no encontro elenco-plateia, uma outra montagem sacode a sensibilidade por trazer muito da pura forca da cena brasileira do nosso tempo. Ela registra a força límpida do palco enquanto trabalho depurado de arte convencional.
Chegará ao Rio de Janeiro no dia 7 de abril, no Teatro dos 4, a montagem aclamada de Intimidade Indecente, de Leilah Assumpção, com Eliane Giardini e Marcos Caruso sob a direção de Guilherme Leme Garcia, após uma turnê de dois meses e meio em Portugal. Trata-se de teatro profissional brasileiro de altíssimo padrão, defendido por atores cuja aproximação, curiosamente, foi burilada a partir da contracena na televisão.
A partir do casal de sucesso Muricy e Leleco, da novela Avenida Brasil, os atores decidiram conferir a química de seus perfis no palco e, ao que tudo indica, a ideia foi magistral. A repercussão tem sido excelente, também em razão da força do texto, um original de extrema atração para os debates do presente: afinal, o foco aqui também é o amor…
Se Candeia fala do sentimento profundo de quem, moldado pelo tempo, é capaz de amar desbragadamente a vida ao redor e nos convidar para este romance, Intimidade Indecente traz a reflexão para as lides de um casal enjoado de si, mas incapaz de se separar. Em cena, o amor atravessa o tempo e sobrevive a tudo. O tempo transcorre diante da plateia.
Ao contrário das histórias de amor habituais, a trama começa com a separação. O fim da longa relação surge com a dupla na faixa dos sessenta, devido à instalação da mesmice, como é habitual no nosso tempo. Apesar de optarem pela separação, no entanto, o casal se reencontra e se reaproxima, em razão das afinidades profundas tecidas pelo amor.
Em quatro tempos diferentes, no mesmo espaço cênico, sem trocas de figurinos ou apoios exteriores, a plateia acompanha a arte de dois atores monumentais, capazes de materializar a passagem da vida por seus corpos e sentimentos, envelhecer em cena ao vivo, a partir de suas potencias de representação. Em resumo, teatro em estado de graça.
Numa época em que o tumulto da vida se tornou uma torrente muito impetuosa, inclinada a inquietar, com suas instabilidades tonitroantes, até a mais recolhida alma de mosteiro, importa muito ter o teatro ao nosso lado, acessível. Quer dizer – é fundamental contar com o palco, generoso, inteligente e intenso, ao alcance das almas.
Sim, é o teatro a grande religião humana. Transcende todos os deuses, ultrapassa qualquer credo. Faça a experiência, conscientemente; verifique os fatos, mesmo que a sua religião obedeça a um outro formato de igreja ou a sua religião seja nenhuma. Permita-se esta prova.
Com certeza você verá que este fascínio antigo atinge recantos impensados do seu ser. Ainda que as transformações pareçam imperceptíveis, confie: a paz nascerá no seu interior. Só por isto esta velha arte sobrevive, resiste a tiranos, caudilhos, guerras, canhões e trevas. De uma forma sublime, ela salva almas. Esta é, enfim, a grande função do teatro.
FOTO: Dudu Chamon, divulgação.
Candeia
FICHA TÉCNICA
Direção: Titina Medeiros
Dramaturgia: Cléo Araújo
Direção de arte: João Marcelino
Preparação Corporal: Giovanna Araújo
Composições musicais e preparação vocal: Ananda K
Elenco: Ananda K, Manu Azevedo, Múcia Teixeira e Nara Kelly
Coordenação de produção: Talita Yohana
Produtora local: Ártemis
Assessoria de imprensa: Catharina Rocha
Identidade visual e vídeos: Rita Machado
Registros fotográficos para divulgação: Brunno Martins
Técnico e assistência de produção: Janielson Silva
SERVIÇO
Temporada: de 31 de março a 1º de maio.
Apresentação: de Quinta a sábado, às 19h, e domingo, às 18h.
Não haverá espetáculo entre 18 e 27 de abril
Local: Sesc Tijuca – Pátio das Acácias – Rua Barão de Mesquita, 539.
Em caso de chuva, o espetáculo será no Teatro 2
Ingressos: Grátis (associados PCG), R$ 7,50 (credencial plena), R$ 15 (meia) e R$ 30 (inteira).
Funcionamento da bilheteria: de terça a domingo, das 9h às 19h.
Classificação indicativa: Livre.
Duração: 60 min.
Lotação: 44 lugares.
Intimidade Indecente
FICHA TÉCNICA
Texto: Leilah Assumpção
Direção: Guilherme Leme Garcia
Elenco: Eliane Giardini e Marcos Caruso
Cenografia: Aurora dos Campos
Luz: Tomás Ribas
Direção Musical: Aline Meyer
Fotografia e Vídeos: Dudu Chamon
Mídias Sociais: Imersa
Produção: Plano 6 e Bem Legal Produções
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO
ESTREIA: de 07 de abril (5ªf), às 21h
Teatro dos 4 / Shopping da Gávea, 2º piso
.Rua Marquês de São Vicente, 52 – Gávea / RJ
(21) 2239-1095
HORÁRIOS: 5ªf a sábado às 21h; domingo às 19h
INGRESSOS: 5ªf R$90 e R$45 (meia), 6ªf, sab e dom R$100 e R$50 (meia)
ONDE COMPRAR: https://www.sympla.com.br ou na bilheteria do teatro GÊNERO: comédia romântica
DURAÇÃO: 90 min
CAPACIDADE: 402 espectadores
CLASS. INDICATIVA: 14 anos
TEMPORADA: até 29 de maio