A História secreta do Rio
Um rio passou nas nossas vidas, arrasou tudo, arrastou as margens, mas sumiu da memória. Ninguém fala nele: trata-se de uma história secreta. Uma história carioca calada nas almas – quem diria!
Lembrei deste rio-diluviano lendo os jornais – não o jornal da manhã, mas o jornal de ontem, quer dizer, do século XIX. O meu foco estava bem definido, buscava informações pontuais, fazia uma pesquisa objetiva. Os olhos, no entanto, nem sempre obedecem às ordens de fixidez. Travessos, podem escorregar para as margens. E aí…
Vagando nos territórios proibidos ao redor, o olhar acaba prisioneiro de exclamações. A principal, naquele nosso século, sem dúvida é a inacreditável prática da escravidão. Nos anúncios dos jornais, ela surge banal, cotidiana, como se pessoas, máquinas, poções, batatas e panos fossem a mesma coisa. Fossem coisas.
Desde a primeira vez que pesquisei escravidão – estava no início da faculdade – o meu espanto não cabe em mim. Considero a escravidão um fato hediondo, mas, ao mesmo tempo, é história, é real. Eu me esforço para entender o raciocínio – talvez, se eu vivesse naquela época, achasse normal – mas eu não consigo, a ideia, o conceito, tudo me escapa.
Desta vez, dentre todos os anúncios que, sorrateiros, roubaram o espaço do teatro e invadiram o meu olhar, dois classificados me surpreenderam. Dois pequenos anúncios em dias diferentes feitos por pessoas diferentes buscavam alguém para trabalhar em casa, alguém que soubesse o serviço, mas o candidato podia ser branco ou negro, com a condição de que fosse livre.
Uma luz inquieta acendeu dentro de mim: então ali estariam pessoas de bem, dignas, avessas à escravidão. Bateu uma vontade danada de parar tudo, parar a minha pesquisa, e buscar saber quem seriam aqueles espíritos livres. Quem morava em tais endereços e se dirigia assim, espírito livre, ao mundo?
Adoro espíritos livres. Pessoas que olham ao redor e dizem – mas precisa mesmo ser desta forma? O rio-diluviano do qual eu estava falando lá em cima pode ser localizado neste ponto: uma enxurrada de pessoas que aderem de tal maneira ao seu tempo e lugar, se entregam tão profundamente à própria época, que não percebem que o sentido da vida deveria ser outro.
Este é o nó da mentalidade carioca. Uma cidade que se pretendia avançada, fazia pose de corte, buscava avidamente seguir as modas de Paris (e, antes, de Londres), manteve um vínculo profundo e longo demais com a sórdida prática da escravidão. Curiosamente, nesta hora em que os monumentos a personalidades discutíveis são derrubados, o Rio de Janeiro não preservou nenhum imóvel que permita o estudo direto da realidade escravista.
Cheguei a conhecer quatro fazendas cariocas ou fluminenses em que a riqueza foi gerada por braço escravo. Uma, em Madureira, estava tão desfigurada sob as instalações de uma clínica médica que lá nunca mais voltei desde os anos 1970. Só deve existir em fotos, lá nos arquivos do IPHAN.
As outras duas, uma na Taquara, a outra em Inhaúma, persistem de pé. Quer dizer, até o ano passado, a lindíssima casa grande da fazenda do Capão do Bispo, em Inhaúma, seguia aos trancos e barrancos. A casa foi construída pelo Bispo D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas de Castelo Branco no século XVIII.
Quando a visitei, ela fora restaurada e, apesar da falta de recursos, caminhava para ser um centro cultural suburbano importante. Não deu certo. No ano passado, a nobre construção arruinada pedia socorro urgente e não sei quais as medidas foram tomadas a seu favor.
Na Taquara, a Fazenda Barão da Taquara se manteve como propriedade familiar, até onde soube em bom estado de conservação. Nunca consegui visitá-la. Soube, também no ano passado (muita gente está jurando que 2020 não existiu, é uma ficção), que se tornou um centro cultural ativo, com diversas atividades educacionais e culturais.
O ponto curioso: nestes imóveis que visitei, as senzalas não sobreviveram. Desapareceram. A bem da verdade, em contraste profundo com a imponência das casas de fazenda, as senzalas eram construções precárias, miseráveis mesmo, mesquinhas, pau a pique ordinário. Posso fazer esta afirmação sem hesitar por ter conhecido um monumental conjunto de casa grande, senzala e alambique, uma construção que infelizmente foi destruída pela omissão e pelo descaso político.
Falo da Fazenda São Bernardino, na vila de Cava, Nova Iguaçu. Toda a história desta fazenda devia ser estudada sempre, no Rio, cantada em verso e prosa. A falência do Rio de Janeiro, tanto da cidade como do estado, passa por aí. Entendê-la equivale a decifrar muito da história misteriosa, secreta, do Rio de Janeiro.
A fazenda, hoje, está no chão, em ruínas. São ruínas imponentes. Quando, em 1985, um debate acirrado acontecia, após a desapropriação da fazenda, que já era tombada, para que fosse transformada num grande centro cultural, um incêndio suspeito destruiu o imóvel. Assim, do nada, tudo acabou. Um turbilhão de história se transformou em fumaça. Vale pontuar alguns itens.
O detalhe mais importante – a fazenda foi inaugurada em 1875 – portanto, depois da Lei Eusébio de Queirós (1850) abolindo o tráfico negreiro, e depois da Lei Rio Branco (1871), do Ventre Livre, apenas treze anos antes da Lei Áurea. Representou um investimento colossal, para estimular a expansão agrícola da região, com base… na mão de obra escrava. Portanto, o destino econômico óbvio do empreendimento era a falência, que não tardou a chegar.
A senzala da fazenda era uma construção de grandes dimensões, no seu tamanho. Era um grande barracão de alvenaria ordinária, composto por dois grandes salões. Eles terminavam, cada um, em um corredor estreito, sobre o braço de rio, sem portas.
Estes espaços, com bancos de madeira com dois buracos em cima, no total de dois bancos em cada corredor, eram sanitários coletivos. Assim, ao mesmo tempo, oito pessoas podiam evacuar ou urinar, juntas. Os restos sanitários caíam diretamente nas águas do rio. Fechando o terreiro da senzala, ficava uma outra construção, abrigo de um grande alambique.
A pergunta que nasce diante destas ruínas – e dos projetos que elas contém – incomoda. Os fazendeiros, como o sr. Bernardino José de Souza e Mello, construtor da fazenda São Bernardino, membros destacados da sociedade imperial, empresários, políticos, possuíam que tipo de visão de futuro? Isto, é claro, para não ser impertinente e não tentar querer saber o que pensavam da vida humana.
Ao que se sabe, o Sr. Bernardino, como uma boa parte dos fazendeiros fluminenses construtores do Império, vivia no Rio, na corte. Mas ele construiu, na fazenda, uma das grandes casas rurais do país, dizem que seria uma das maiores em número de quartos – além de ser uma casa imensa, era de extremo luxo.
Os vitrais em mosaicos coloridos das portas e janelas, lindos, eram ingleses, os beirais de porcelana eram preciosos, mármores e granitos eram só requinte, toda a madeira era lavrada com técnicas de carpintaria notáveis. As janelas e portas, quando abertas, se encaixavam no revestimento de lambri das paredes. O teto da sala de música recebeu delicados relevos em estuque, o altar da capela era sublime.
Com todo este luxo, espalhado por várias dezenas de quartos e diversos salões, a fazenda não era moradia de seu construtor. Era uma casa de não viver, posto que ele não morava lá. A sua relação com a propriedade era bastante adventícia e não é de admirar a ruína, quando se gastou uma fortuna imensa na casa e nenhuma pesquisa foi feita para saneamento de uma área rural sujeita a pestes e pragas. Sem falar na falta de projeto para a contratação de trabalho livre.
Os herdeiros e sucessores destes antigos líderes não demonstraram qualquer sentimento de admiração ou de apreço pela obra erguida. A Fazenda da Taquara parece ser a exceção capaz de consolidar a regra. Nada foi preservado, na maioria absoluta dos casos. As casas de fazenda sumiram do Rio, demolidas, vendidas, loteadas.
A dinâmica social resultante deste jogo de poder, no qual a fortuna só existe como visão de acumulação suntuosa privada, também deve ser considerada, pois é devastadora. Quando se examina o poder social destes barões, comendadores e quetais, constata-se a existência de um poder predador, autorreferente, antisocial mesmo. Um poder que se revela apenas gesto de opressão.
Assim, parece claro que, ao longo da acelerada decadência econômica carioca e fluminense, as áreas agrícolas do Rio e dos seus arredores rapidamente se transformaram em insípidas áreas devastadas pela especulação imobiliária, varridas por uma ocupação urbana predatória. De onde vem esta voracidade sem freio, em que não há sequer amor à paisagem?
A impressão é a de que a violência brutal da escravidão, para existir e sobreviver, cobra um preço social muito alto. Ela precisa da cegueira social para existir. O escravizador naturaliza a sua ação abominável, mas não sai ileso da atrocidade cometida, ele se desumaniza. E, em tais condições, constrói a ruína coletiva, gera uma sociedade cuja força motriz é a violência.
A escravidão foi uma decorrência do processo histórico, mas a sua longa duração pós-colonial foi um absurdo histórico que deveria ter sido contido. São verdades que precisam ser encaradas de frente, urgentes. Ou não caminharemos livres pelo curso histórico, pois o século XIX não sai de nós apenas porque decidimos apagá-lo, esquecê-lo ou demolir as suas senzalas. As senzalas continuam existindo nas almas.
Para esta sociedade profundamente atada a um passado que insiste em não ver, parece que existem apenas duas salvações: a revolução escolar e a revolução cultural. Há no youtube um vídeo de uma escola municipal de Nova Iguaçu em que as professoras, abnegadas, levam as crianças para conhecer as ruínas de São Bernardino. É isto e ainda mais.
O ideal seria que algum milionário de hoje pagasse, de boa, como dizem os jovens, a restauração completa da fazenda. Obra cara, luxuosa, requintada, para ser um grande centro cultural da Baixada e um centro de estudos de arte para as crianças da região.
Na impossibilidade de contar com tal benemérito, vale o investimento cidadão direto, dos professores, dos artistas, dos amantes da arte. Nas ruínas de Iguaçu Velho, como nas ruínas de São Bernardino, vê-se com nitidez a boçalidade da sociedade brasileira: a população escava as paredes e recantos, aumenta a ruína, na crença de que existem tesouros abandonados ou enterrados. Ou rabisca, assina, no esforço de ajudar a destruir o que não sabe o que é.
O rio diluviano que varre tudo por aqui é o rio da ignorância. Sim, a ignorância que se apegou a nós por contágio, graças à convivência promíscua com a escravidão. É uma torrente bravia que liquida memórias, relíquias históricas, acervos culturais e, se não se fizer nada, coisas maiores, como o teatro.
SERVIÇO:
Foto: Fazenda São Bernardino, Nova Iguaçu.
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E MAIS:
1 – LIVE:
Alma Despejada
Ficha técnica
Com: Irene Ravache. Texto: Andréa Bassitt. Direção teatral: Elias Andreato. Música: George Freire. Fotos: João Caldas Filho. Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação. Produção: Oasis Empreendimentos Artísticos.
Dia 17 de Julho. Sexta, às 21h30
Grátis. Assista online:
https://www.youtube.com/sescsp
https://www.instagram.com/sescaovivo/
2 – ESPETÁCULO:
AS PALAVRAS DA NOSSA CASA, DO NÚCLEO TEATRO DE IMERSÃO
Temporada: de 18 de julho a 30 de agosto de 2020
Aos sábados, às 21h, e aos domingos, às 20h
Ingressos: R$ 20
Vendas online:
www.sympla.com.br/nucleoteatrodeimersao
Classificação: 14 anos
Duração: 90 minutos
Gênero: Drama Imersivo
Site: https://www.nucleoteatrodeimersao.com/
Redes sociais: @nucleoteatrodeimersao
3 – E VAMOS DEBATER O RIO:
Nesta terça-feira (14/7), às 19h30, o deputado federal Marcelo Calero participa do encerramento do webinar Reinventar o Rio de Janeiro.
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