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No caldeirão das almas livres

Não sabia? O teatro liberta. Faz as almas se tornarem livres. Por isto, é uma prática perigosa, temida e olhada com desconfiança. Por isto, o povo do teatro às vezes parece complacente, dotado daquela mesma espinha dorsal que estrutura os bobos da corte, pronta para se curvar até o chão diante do poder da vez..

Mas, calma, não se iluda com a flexão subserviente na aparência. Ela não acontece para servir ao poder, ela funciona para resguardar o essencial da arte. A curvatura da coluna, claro, protege o coração e o cérebro, centros vitais preservados a todo custo. Graças a eles, o teatro segue livre.

Portanto, enquanto existir teatro, haverá esperança de salvação para a espécie humana. E o mais importante: ele tem que ser livre, totalmente livre, mesmo quando parece encontrar poderosos e políticos capazes de acenar com protetorados alentadores. O palco não confia no colo oficial, mesmo quando alguns artistas decidem embarcar na caravana do poder. Ao largo do trono, a arte sempre segue, abraçada tanto com os que simulam se curvar, quanto com os que caminham a pé ou até mesmo escolhem ficar ao longe, pelo caminho.

Teatro livre carioca: Teatro Villa Lobos em ruínas.

Por isto, o ideal é sempre contar com um teatro múltiplo, pulsante, contraditório, fervilhante de ideias e paixões. Ao lado dos desafinados da cena, pode vegetar o coral dos chapas brancas, a turma disposta a louvar o poder do momento. Nenhum problema – desde que os irreverentes desafinados tenham o seu espaço de expressão preservado, desde que a cena tenha consciência de que a liberdade é a alma da arte.

A imagem fala diretamente de política, numa primeira leitura, imediata, porém aponta no fundo para uma condição peculiar, a política da arte, as formas de tessitura da linguagem. Quer dizer – importa, para a saúde do palco e da sociedade, tanto a peça comercial capaz de arrebatar as almas mais ingênuas e simular o flerte com o poder, como a enigmática invenção de vanguarda, cultuada por espíritos ávidos por invenções… Este clima traça a diferença objetiva entre a arena democrática e a jaula autoritária. O teatro da sociedade democrática é múltiplo, vário, livre, intenso e denso.

Diante deste pensamento, como anda a cena carioca? Qual a trama que se revela para quem tenta vislumbrar o panorama geral da arte da cidade? Existe um grande templo teatral, o balcão de negócios desbragados, os recantos a meia luz encucados com a pesquisa? É verdade que o grande teatro institucional, construção monumental do mercado e do jogo histórico da sociedade, não está presente na cena do Rio. Aliás, a bem da verdade, o grande teatro nunca andou livre por aqui.

Trata-se de uma situação espantosa – ela deveria deixar as autoridades sem dormir. É um pouco como se não tivéssemos grandes autores e textos fundantes da alma nacional para cultuar, como se não tivéssemos valores profundos para o diálogo social ou valores de sensibilidade coletiva, como se fôssemos órfãos de nós, vândalos urbanos.

Jorge Andrade: esquecimento imperdoável.

Sim, a situação resulta da omissão do poder. Pois a classe teatral, aqui, faz a cena na mais completa solidão, como se o teatro fosse do seu interesse particular e não um patrimônio coletivo. Alguém explica como, no centenário de nascimento do sensacional dramaturgo Jorge Andrade (1922-1984), nenhuma grande montagem dos seus textos foi programada no país? Vergonha nacional, claro. Vivemos mergulhados no teatro pequeno, setorizado, como se a alma nacional existisse em fatias finas.

Sob este ritmo intimista, o palco carioca surge fervilhante, passado o carnaval. Entregue à própria sorte, ele traz as inquietações locais e, por vezes, amostras sensíveis do teatro brasileiro. A cena, porém, acontece como produção miúda, portátil, algo que cabe no bolso de uma comunidade, não nasce do ímpeto da sociedade.

Martins Pena (1815-1848)

A dedicação da categoria é tão grande que há no momento até mesmo um projeto de extrema inteligência, dedicado à formação de plateia:  Ciclodrama – Ato Único. Em cartaz desde o ano passado, a proposta oferece leituras dramáticas de textos variados, peças em um ato e contos, um arco letrado que abrange de Martins Pena a Harold Pinter. A afinação dominante, requintada, é a formação do público. Até certo ponto, o projeto revela como se faz teatro.

Semelhante a um encontro de jazz, o ciclo inova ao manter em aberto o fluxo entre palco e plateia – quem quiser, pode sair da poltrona e integrar a turma do tablado, a participação é livre. A direção acontece ao vivo, assinada por diretores integrantes do Grupo No Ato ou convidados, sempre ao cair da noite, às terças-feiras, no Centro Cultural da Justiça Federal.

Um outro voo imponente traz para a praia carioca o sabor transcendental maior do teatro: os gregos, abençoados por Dionysos, nos visitam. E eles chegam com cicerones ilustres – os atores Daniel Dantas e Letícia Sabatella apresentam os Cantos I e XX da Ilíada, de Homero, no Teatro XP, desde a semana passada.

A direção, de Octavio Camargo, reforça a obrigatoriedade de acompanhar o trabalho. Sem dúvida, vale a pena ir até lá conferir. O diretor dirige desde 1999 a Cia Ilíadahomero de Teatro, no Paraná, um grupo que se notabilizou justamente por trabalhar a favor da difusão do poema épico junto às plateias nacionais. O conjunto mantém no repertório também o texto da Odisséia, ao lado de outros clássicos.

O objetivo da encenação poética obedece a um cálculo preciso – ampliar a percepção hoje, no país, das raízes culturais ocidentais, ou seja, atuar em prol da civilização. A Ilíada, base da educação no mundo grego incorporada à formação do cidadão no ocidente, possui uma longa história de recitação em festivais e em rotinas culturais. O convite irresistível é para conferir a materialidade cênica atual dos antigos versos, o tipo de encanto existente hoje num ritual de raiz histórica tão profunda.

Se a palavra grega ancestral banha as almas na Gávea, do outro lado da cidade um convite surpreendente se anuncia. Ele é eletrizante, graças a uma outra temperatura histórica: a proposta contém exatamente a ousadia da vanguarda do inicio do século XX. Pois é – chegará do Rio Grande do Norte para a sua primeira temporada carioca o memorável grupo Clowns de Shakespeare. A força do nome diz tudo, confie.

A equipe comemora 30 anos de história, consagrada como um ninho de peritos em irreverência e invenção. Portanto, foi muito natural escolher para o momento uma reflexão cênica ao redor do Ubu Rei, de Alfred Jarry, um dos maiores marcos históricos do experimentalismo de linguagem no teatro. A montagem ácida foi batizada com um nome sugestivo:  Ubu – O que é bom tem que continuar! E vai acontecer ao ar livre, no Pátio das Tamarineiras do Sesc Tijuca. A dramaturgia e a direção contam com a assinatura de Fernando Yamamoto.

Para ampliar a voltagem do trabalho, a peça foi concebida em colaboração com os grupos potiguares Facetas e Asavessa. Em resumo, a trama gira ao redor dos personagens clássicos Pai Ubu e Mâe Ubu, às voltas com uma tentativa de continuação de sua história. O casal se desloca da Polônia para a América Latina e, num determinado país, a Embustônia, consegue chegar ao poder. Aclamados como rei e rainha, continuam sua saga insaciável de desmandos.

A encenação terá a ousadia de acontecer a céu aberto – e vale torcer para que as águas de março sejam clementes – com música, cachos de banana, valorização expressiva do ator e da performance de tom cômico e sabor popular. Marcas fortes do grupo estarão na linha de frente: o lirismo, a entrega completa à cena, a musicalidade, a corporeidade. Ainda que a proposta pareça ter um vínculo direto com discussões recentes, passadas, o alvo do grupo é bem mais amplo: estimular a reflexão a respeito dos limites fundamentais que devem ser impostos ao exercício do poder, em prol da grandeza cidadã.

Vários outros cartazes povoam a cena carioca nesta abertura do ano, pós-carnaval. A amostra resumida aqui fala deste esforço coletivo, quase devocional, de jogar luz sobre as necessidades urgentes da sensibilidade brasileira. Uma conclusão cristalina se impõe a partir do exame dos tantos cartazes anunciados.

Com certeza, o que acontece nas cenas é uma jornada libertadora, construída com muita garra e devoção ao palco. Com certeza ela deveria ter um alcance bem maior, com o desenho das propostas ampliado a partir de políticas públicas decididamente interessadas na saúde da sociedade e na força da cidadania.

Talvez seja a hora de lutar por mais teatro – e a luta precisa abranger tanto a ampliação do número de edifícios, como as políticas de Estado verdadeiramente sonantes. Mas o que dizer quando, diante dos teatros públicos, constatamos a condição de ruína das casas? O que tem sido feito a favor da excelência da Rede Municipal de Teatros do Rio de Janeiro? O que está sendo feito pelo Teatro Villa Lobos? Em que condições estão os teatros federais da cidade maravilhosa?

Perguntas incômodas. Elas não cessam. O poder municipal e o poder estadual, no Rio, planejam a grandeza cultural local? O governo federal – responsável pela construção de teatros que eram grandes joias da velhacap – não se considera coautor da ruína da cena carioca?

Tudo indica que a libertação das almas oferecida pelo teatro não agrada aos poderosos, não seria uma escolha de Pai Ubu e Mãe Ubu, protótipos perfeitos de muita gente dotada de poder neste quente pais do hemisfério sul. Teatro, para quê, quando eles sonham, todos, sem dúvida, com procissões de almas escravas? A cada governante, o supremo direito de escolher com quem, no teatro, a sua alma-algoz se parece.

Ciclodrama – Ato Único

SERVIÇO e FICHA TECNICA

Ciclo de leituras dramatizadas de textos dramatúrgicos e literários de todas as épocas, gêneros e estilos.

Nos encontros, artistas e público podem participar da leitura.

Há transcrição simultânea para portadores de deficiência auditiva em algumas apresentações.

Em março, mês da mulher, as leituras serão conduzidas por diretoras.

Temporada: terças-feiras, de 7 março a 30 de maio

Horàrio: das 18h às 20h

Teatro do CCJF (Metrô – Estação Cinelândia)

Entrada gratuita.

Realização do Grupo No Ato –  – Jussilene Santana, Rafaella Carvalho, Ronaldo de Oliveira e Silvia Monte.

 ILÍADA

Ficha técnica:

Texto: Homero

Tradução: Manuel Odorico Mendes

Direção: Octavio Camargo

Elenco: Daniel Dantas e Leticia Sabatella

Figurinos: Cristina Cordeiro

Iluminação: Beto Bruel

Música original: Octavio Camargo

Design gráfico e fotografias: Gilson Camargo

Direção de produção: Caio Bucker

Assistência de produção: Aline Monteiro

Direção de palco: Bené Benevides

Operação de luz: Kelson Santos

Assessoria de imprensa: Passarim Comunicação | Silvana Espírito Santo e Juliana Feltz

Assessoria jurídica: BMN Advogados

Contadores: Cissa Freitas e Francisco Junior

Uma produção: Caio Bucker e Fernanda Thurann

Idealização: Cia. Ilíadahomero

Realização: Bucker Produções Artísticas e Brisa Filmes

Mídias digitais:

@leticia_sabatella

@daniel.t.dantas

@teatroxpinvestimentos

https://iliadahomero.wordpress.com/

Serviço:

No TEATRO XP | Jockey Club da Gávea

Temporada: 03 de março a 02 de abril de 2023

Dias: sextas e sábados às 20h | domingos 19h

Endereço: Avenida Bartolomeu Mitre, 1110B, Leblon/RJ

Ingressos: R$ 80,00 (inteira) e R$ 40,00 (meia-entrada)

Classificação indicativa: 12 anos

Duração: 70 minutos

Telefone: (21) 3807-1110

Capacidade: 366 lugares

Vendas: SYMPLA (https://bileto.sympla.com.br/event/80297)

Ubu – O que é bom tem que continuar!

FICHA TÉCNICA:

Direção e dramaturgia: Fernando Yamamoto

Elenco: Fernando Yamamoto e compõem o elenco Caju Dantas, Deborah Custódio, Diogo Spinelli, Paula Queiroz e Rodrigo Bico

Assistência de dramaturgia: Camilla Custódio

Figurino e adereços: Marcos Leonardo

Cenário: Fernando Yamamoto e Rafael Telles

Dramaturgia musical: Marco França e Ernani Maletta

Composições: Músicas de Marco França (menos “Marcha da votação”, de Ernani Maletta) e letras de Fernando Yamamoto

Colaboradores musical: Franklyn Nogvaes, Maria Clara Gonzaga, Júlio Lima e Caio Padilha

Produção: Talita Yohana (Tayó Produções)

Assessoria de imprensa: Prisma Colab

Fotos: Tiago Lima e Damião Paz

SERVIÇO:

Estreia: 9 de março de 2023

Temporada: De 9 de março a 2 de abril de 2023

Horários: de quinta a sábado, às 19h; e domingo, às 18h.

Local: Pátio das Tamarineiras – Sesc Tijuca

Endereço: Rua Barão de Mesquita, 539, Tijuca.

Capacidade: a definir.

Bilheteria – Horário de Funcionamento: De terça a domingo, das 9h às 19h.

Duração: 70 minutos.

Telefone: (21) 4020-2101

Valores: Grátis (PCG), R$7,50 (Credencial Plena), R$15 (meia-entrada) e R$30 (inteira).

Livre.

SIGA:

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www.instagram.com/grupoasavessa