Mistérios Cênicos Alemães
Responda de estalo: quem nasceu primeiro, a Alemanha ou o Brasil? Se você nem pestanejou e clicou na terra da cerveja, errou redondo. A terra da cachaça despontou para o mundo como nação bem antes, em 1822… Já a tal da Alemanha, precisou ver chegar quase o fim do século para subir ao pódio. A Alemanha só nasceu em 1870.
Ora, se você errou, não sofra. Infelizmente, as nossas relações com a Alemanha nunca foram exatamente íntimas. Uma lástima. Por quê? Vejamos já. Contudo, pense: que mistério doido é este, um país que nem existia e já tinha teatro?… E, enquanto isto, por aqui, começamos a existir, mas, puxa vida, sem teatro. Para certas línguas ferinas, aliás, não temos teatro até hoje…
Na verdade, existia o alemão e a cultura alemã, sólido pano de fundo para um tapete de recortes políticos instáveis, uma realidade oposta à vivência brasileira. Algumas fronteiras alemãs são quentes, eternamente em ebulição…
Por aqui, ao contrário, temos uma multiplicidade cultural impressionante, algo que vários projetos de poder já tentaram apagar, em prol de uma entidade política única. A rigor, somos vários países em um, somos até alemães, em certos rincões… No entanto, apesar da multiplicidade pululante e de muitas revoltas, o território ficou mais blindado do que tanque de guerra, nunca rachou.
Bom, importa dizer, deveríamos ter mais germanismo na nossa identidade. Mais do que isto, até. No fundo de nossa alma, somos todos filhos de uma alemã… Pois, sim! Nós, brasileiros, se não fôssemos brutalmente machistas, poderíamos clamar a glória de um fato histórico raro e, até certo ponto, bem alemão: a Independência do Brasil foi proclamada por uma mulher, filha legítima do Sacro Império Romano-Germânico.
Quem quiser, pode discordar, mas, no meu entendimento, a Independência do Brasil foi proclamada por D. Maria Leopoldina (1797-1826), filha de Francisco II, Imperador Romano-Germânico. Foi sob esta situação que ela nasceu. Portanto, se somos livres, tem muito mais espírito alemão aqui, embaixo do tapete deste salão, do que porcelana lusa sobre a mesa de jantar.
Por causa das guerras napoleônicas, o Sacro Império Romano-Germânico foi dissolvido em 1806 e o imperador, deposto, arranjou outra coroa para chamar de sua: engenhoso político, transformou o Arquiducado da Áustria no Império Austríaco, o qual passou a governar como Francisco I. Assim nasceu a Áustria e D. Leopoldina virou parte da alta nobreza austríaca.
O resumo, rápido como rastilho de pólvora, tem dois objetivos: provar o imenso poderio político da escola em que D. Leopoldina se formou e a densidade compacta da cultura alemã, subsolo resistente às brutais oscilações de mando dominantes no seu entorno. Infelizmente, graças ao machismo hediondo brasileiro, não estudamos até hoje as lições de D. Leopoldina, morta precocemente sob uma atmosfera muito sombria. Então, pouco conhecemos da cultura alemã.
O link já foi forte, mas o fio esgarçou. Atualmente, o Rio de Janeiro nem sequer conta com ações culturais do Instituto Brasil-Alemanha. Muito atuante em outros estados, a casa se destacou outrora como um notável centro de difusão de valores germânicos preciosos para o público carioca e fluminense.
O tema é de crucial importância. Por vários motivos históricos, a Alemanha pratica um conceito de cultura como bem público e, consequentemente, Projeto de Estado, que seria essencial divulgar por aqui. E debater profundamente.
A estrutura política alemã não colide nem apaga o jogo de mercado, importa destacar. Nem se pretende instrumentalizar as práticas culturais oficiais implantadas, a favor de uma determinada posição política ou partido. A cultura funciona por si e em si.
Afinal, existe ao redor da ação estatal um sólido mercado cultural – a Alemanha disputa com a França o papel de nação ‘inventora’ do mercado cultural. O Estado alemão financia e estrutura regiamente a vida cultural do país, mas isto acontece ao lado de formatos vários de empreendimentos que podem ser qualificados como livre-comércio.
Convenhamos, a potência de produção é espantosa – são frutos locais Mozart, Beethoven, Büchner, Wagner, Offenbach (que se rendeu ao charme francês…), Goethe, Schiller, Brecht… para ficar numa lista pulsante histórica bem esquemática. Tente fazer a sua lista de nomes de destaque do palco alemão, para pensar a respeito.
Pensar – este é um outro ponto; depois do grego, talvez o alemão seja o outro berço da filosofia, o berço moderno. Não é o tema aqui do texto, porém não dá para driblar o reconhecimento de um fato simples: o palco e o pensamento possuem uma aliança incontornável desde Atenas. Talvez, se estimulada, a dobradinha fosse, para a pátria das chuteiras em flor, tremendamente produtiva. Ela traria, quem sabe, alguma melhoria, alguma luz, para o futuro dos campos esturricados da sensibilidade nacional.
Pois que venha a nobre dramaturgia alemã saudar a dispersiva alma carioca! E venha com a sua densidade de pensamento a respeito da vida e do mundo. Estreia agora no dia 13 de abril (5ªf), no Teatro Firjan Sesi Centro, O Tempo e a Sala (Die Zeit und das Zimmer), uma peça de um autor referência do nosso tempo, Botho Strauss. Um nome essencial do teatro.
Apesar de alemão, ele integra a história do teatro brasileiro graças à sensacional montagem de Grande e Pequeno, direção de Celso Nunes em 1985, um acontecimento teatral histórico em todo o sentido da expressão, projeto formulado e apresentado por Renata Sorrah. Com a peça, Renata Sorrah se tornou definitivamente, apesar de jovem, uma grande deusa da cena nacional.
O texto de agora também deixará marcas históricas. Em primeiro lugar, a produção foi articulada para estrear no Festival de Curitiba, uma instituição que se afirmou na cena nacional, em paralelo com o eixo tradicional de produção, Rio/SP. Assim, o cartaz acena com uma inserção diferenciada no cenário da grande produção teatral brasileira.
A coisa não fica por aí. Logo se impõe a necessidade de situar o debate central da obra: o apagamento feminino, debate urgente numa terra em que a liquidação das mulheres é devastadora, com efeitos sociais drásticos desde a independência nacional.
Há ainda o foco sobre o drama da solidão humana. O ponto de partida é o deserto urbano do nosso tempo. O desafio das cidades, outrora um lugar de liberdade, hoje um lugar labiríntico de medo, desorientação e aprisionamento.
O assunto, no entanto, para a realidade tropical, vai mais longe – traz uma sugestão incandescente, a indicação de uma cena patética para convidar a pensar este Brasil varrido de norte a sul por uma miséria existencial devastadora. Um país sem políticas de Estado para acabar com o abandono infantil, remediar a tragédia de mães solo desprovidas de tudo, precisa de mergulhos profundos neste teatro de qualidade ética e estética.
Além e adiante da liquidação feminina, buscar saídas para o apagamento humano em vigor por toda a parte deveria ser prioridade nacional. Quer dizer, o país necessita com urgência formular algo que nunca existiu aqui, uma Política Cultural de Estado. É muito diferente de ações culturais políticas estatais.
Note-se ainda o perfil da equipe reunida – trata-se de uma gente que acredita de verdade na arte do teatro, sob a liderança de Leandro Daniel e Simone Spoladore. Por isto buscaram um texto que se pode definir como um clássico do presente – a peça de Botho Strauss estreou no Teatro Schaubühne, sob a direção de Peter Stein, em 1989 e repercutiu a profunda atmosfera de incerteza e auto-demolição reinante então, uma época ainda marcada pelos efeitos da Segunda Guerra, pela crise do pós-guerra e os embates envolvidos na derrubada do muro de Berlim (1989).
No texto, a poética de hesitação e dilaceramento aparece de forma aguda sob escolhas ditadas pelo realismo mágico. A trama gira ao redor de uma mulher, Marie Steuber, que se perde de si cada vez mais, ao tentar moldar a sua pessoa aos outros, em diferentes relacionamentos. A fuga de si faz com que ela acabe por desaparecer no espaço e no tempo, literalmente, incorporada a uma coluna de sustentação da sala em que a ação acontece.
Enfim, um grande texto, uma bela produção, um convite para desfrutar do melhor que o palco pode oferecer. Quem ama a arte da cena, não pode faltar. A apresentação do espetáculo no Rio registra a presença do grande teatro no palco da cidade.
Talvez a oportunidade possa ser propícia para, quem sabe, dispararmos a formulação de um projeto cultural Rio de Janeiro de grande densidade – em termos diretos, poderia ser o ponto de partida para a vinda de uma missão teatral alemã em visita à cidade. Seria uma forma delicada de preservar a memória de D. Leopoldina.
Não, não se trata de provocar a ira ou tentar ferver o ânimo da juventude engajada, obcecada pelo sonho de instauração de identidade(s) brasileira(s) emancipada(s), decolonial(is). A conquista da identidade não acontece por decreto, nem por ato deliberado da vontade, infelizmente. Depende do processo histórico. Boas ideias e o pensamento livre podem ajudar. Entender o (pretenso) dominador ou inimigo parece ser uma etapa lógica básica para quem pretende conquistar uma superação.
No caso, o debate surge mais do que necessário – não se trata de dominação cultural ou projeto colonial, mas de diálogo, intercâmbio de ideias de emancipação. Conhecer a ideia de liberdade ajuda a ser livre.
Tudo bem, D. Leopoldina era austríaca, com uma formação cultural notável, exemplar recorte do mundo de ideias alemão da sua época. Ainda que tenha tido uma vida curta e uma pesada rotina de serva nobre do lar, ela fez muito pelo país, assumiu a nova pátria como missão e procurou pensá-la com generosidade.
Em troca, apesar do imenso carinho popular que estampa a sua presença a ferro e fogo até hoje na vida suburbana carioca, fizemos muito pouco por ela. Porque sempre fizemos muito pouco a favor das mulheres.
E assim para sempre ficarão envoltas em névoas as condições de sua morte prematura, sob os constrangimentos de um relacionamento abusivo, impostos por um marido despótico. Levantar o pesado véu da liquidação feminina é uma tarefa histórica que começa lá na independência, com ela.
Talvez, antes e depois do nascimento da Alemanha, a opressão contra as mulheres tenha se espalhado sem fronteiras por lá. Mas eles caminharam. Se considerarmos a fortuna de ideias libertárias produzida pelo palco alemão neste tempo desde então, eles foram longe.
Portanto, a equação lógica final é muito simples. Precisamos construir aqui a independência total das mulheres. Com certeza a tarefa será no mínimo mais gratificante, se contarmos com as referências consolidadas formuladas na cultura alemã. Pois o processo da independência feminina, por lá, curioso mistério, se materializou em cena: virou ideia no teatro.
Ficha Técnica
TEXTO: Botho Strauss
TRADUÇÃO: Fernanda Boarin Boechat
IDEALIZACÃO E DIREÇÃO: Leandro Daniel
ELENCO / PERSONAGEM:
Simone Spoladore – Marie Steuber
Rodrigo Ferrarini – Julius
Daniel Warren – Olaf
Maureen Miranda – A Impaciente
Jandir Ferrari – O Homem sem Relógio
Bia Arantes – A Mulher Adormecida
Rafa Sieg / Lucas Gouvêa – O Homem de Casaco de Inverno
Adriana Seiffert – O Totalmente Desconhecido
Leandro Daniel / Lucas Gouvêa – Frank Arnold
Letícia Spiller – Voz da Coluna (em off)
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO E PSICANÁLISE DA CENA: Fabi Colombo
ILUMINAÇÃO: Adriana Ortiz
CENÁRIO: Fernando Marés
FIGURINOS: Ana Avelar
TRILHA SONORA ORIGINAL: Edith de Camargo
CARACTERIZAÇÃO: Marcelino de Miranda
Fotografia: Guilherme Chada, Chico Nogueira e Humberto Araujo
Design Gráfico: Rodolfo Karvalho
Mídias Sociais: Lucas Gouvêa
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Banalíssima Arte
Assistência de Produção: Pietra Namur
CAPTAÇÃO DE RECURSOS: BFV Cultura e Esporte
REALIZAÇÃO: Colombo Produções
ASSESSORIA DE IMPRENSA: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
Sinopse
Num apartamento antigo, no centro de uma grande cidade, vivem Julius (Rodrigo Ferrarini) e Olaf (Daniel Warren). Dois homens que, como guardiões do tempo, observam a cidade e, a partir de suas memórias, atraem para dentro do ambiente a personagem Marie Steuber (Simone Spoladore), cujas memórias e dramas pessoais tomam conta do lugar, invadindo a realidade e/ou os devaneios dos anfitriões. Houve uma festa naquele lugar? As personagens existem de fato? O que é sonho e o que é realidade? O que é concreto e o que é imaginação? Quais os limites entre o tempo e o espaço?
Serviço:
ESTREIA: dia 13 de abril (5ªf), às 19h
Teatro Firjan Sesi Centro
Av. Graça Aranha, nº 1 – Centro | RJ Tels: (21) 2563-4168 e 2563-4163
HORÁRIOS: 5ª a 6ª às 19h; sábado e domingo às 18hINGRESSOS: R$40 e R$20 (meia)
Funcionamento da bilheteria: de 2ª a 6ª, das 12h às 19h; sab, dom e feriados, qdo há programação, 2h antes do início do espetáculo
VENDAS ONLINE: https://bileto.sympla.com.br/event/81153/d/185421 / DURAÇÃO: 90 min
ACESSIBILIDADE: sim
CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 16 anos
GÊNERO: drama
CAPACIDADE: 338 espectadores
TEMPORADA: até 14 de maio