A saída, onde fica a saída?!?
O ar da cidade torna o homem livre. O ditado medieval, ensinado pelo historiador Henri Pirenne, quando aprendíamos com ele os encantos do renascimento urbano no fim da Idade Média, parece estranho hoje. Mesmo se considerarmos que cidade, afinal, quer dizer teatro. A fidelidade à arte viabiliza a ousadia. Vejamos.
Talvez o mais correto, no nosso tempo, seja dizer: o ar da cidade torna o homem doente. Percebi claramente o drama agora na pandemia. Moro num lugar montanhoso, perto da floresta. Vejo a Lagoa lá embaixo, não longe o suficiente para ficar liberta do barulho e da poluição. A Lagoa é um dos lugares mais barulhentos do Rio.
As visitas que recebo em casa por vezes dizem: parece Petrópolis. Logo replico, não, não é não… Pois não é que, para o meu espanto, durante o isolamento isto aqui virou Petrópolis. O ar ficou refinado, o barulho sumiu – quase sumiu. Um paraíso bucólico. Todo este encanto durou até a semana passada.
Constatei de chofre o fim do isolamento social. De repente, uma estranha nuvem doce e pegajosa envolveu tudo: era ela que tinha sumido e deixado o ar tão bom. Aroma urbano em alta concentração: gasolina, gazes, fuligem, poluição.
Lembrei da minha infância no subúrbio, da aventura de ir ao Centro, o enjoo insuportável provocado pelo cheiro da cidade logo ali ao chegar na Praça da Bandeira. Estranha liberdade a que temos, senhores dos nossos narizes, para apodrecermos vivos com o ar que respiramos.
Pois é isto. Ou mais um pouco. A cidade significou uma grande revolução na vida humana, um outro corpo, outras falas, outros ouvidos. Para saudar e estimular estes novos seres, o teatro saltitava nas praças e mercados. Dizia: você está vivo, livre, não pertence a nenhuma terra! Mesmo que ainda tenha que ter algum dono, isto logo passará. Aproveite e passe uns cobres…
Esta relação urbana nova, que foi crescendo aceleradamente, libertou os homens, que podiam deixar de ser servos da gleba, e libertou o teatro, que a pouco e pouco deu tchau para os poderosos patronos. O encontro estre as duas partes, o palco e os seres, produziu liberdade de espírito.
A troca foi tão rentável que os atores conquistaram o direito de construir edifícios próprios para a sua arte. E o povo, ao redor, ficava radiante ao reconhecer: este é o nosso trágico, este é o nosso cômico, esta é a nossa estrela.
Senhores das lágrimas e das dores, senhores dos risos e dos charmes, a gente de teatro adquiriu um enorme poder e o poder apareceu para a classe como um compromisso profundo com as necessidades mais densas do imaginário coletivo. Um pouco como se a liberdade de sonhar dos cidadãos estivesse sob o seu governo, enquanto os políticos e outros funcionários zelavam pela liberdade de ser coletiva. Nesta visão, cidade e teatro de certa forma se confundem num pacto profundo pela liberdade.
Agora estamos aqui. Leio num jornal de quinze dias atrás uma crítica severa contra o presidente por não ter, no seu discurso sobre a volta à rotina, mencionado as necessidades e os programas para a cultura. Na França, evidentemente. As críticas foram contra Macron. Não olhei a continuidade do debate ainda. Mas o fato me surpreendeu. Brasileira, honestamente, não sei se entendo bem alguém dizer que o presidente Macron não se preocupa com a cultura do seu país.
Enquanto isso, por aqui, neste território imenso, não me lembro de ter sentido em toda a vida a sensação de orfandade social profunda que me vem agora. Como se cada brasileiro estivesse numa jangada frágil à deriva no mar-país. Assim como os franceses queixosos se prontificavam a se mexer e a empreender em benefício do seu bem maior, penso que só nos resta fazer alguma coisa aqui. Agir. Rápido.
O primeiro capítulo de qualquer catecismo de ação de emergência parece que está sendo seguido à risca: união, solidariedade, empatia, debate, pensamento coletivo, ação para o coletivo. A classe está cada vez mais mobilizada e atenta às necessidades sociais da arte. O que fazer a seguir? Como garantir cada conquista?
Fui ler o noticiário francês e internacional com certa atenção por causa de uma ideia simples: quando a SBAT foi criada, em 1917, a princípio ela contou com o apoio de alguns dos grandes atores do momento, monstros sagrados, como se usava dizer. Logo eles se revelaram inimigos – não queriam reduzir os ganhos extraordinários que obtinham com a obra dos autores e decidiram derrubar a SBAT. Apesar disso, a associação se salvou.
O que salvou a vida da SBAT, impediu que ela fosse implodida, foi o rol de acordos internacionais firmados com sociedades congêneres. A união dos autores com a cena internacional ofereceu rendimentos e garantiu laços estratégicos. Claro que nada disto livrou a SBAT de ser roída por seus integrantes; como sabemos, ela não completou um século, se arrasta faz tempo em uma crise espantosa.
Deixando de lado o drama específico de ser brasileiro, uma odisseia à parte, vale chamar a atenção para as possibilidades, hoje, de uma união internacional a favor da recuperação do teatro. Como tal pode acontecer? É possível? Como se ligar ao mundo?
O Brasil já esteve bastante conectado aos palcos do mundo – quer dizer, aos palcos europeus, sobretudo. No século XIX o processo de expansão do mercado teatral significou a conexão entre os palcos dos diferentes países do Ocidente, com a criação de um circuito teatral (sim, a música, a ópera e o balé também passaram por esta dinâmica).
Surgiram algumas rotas, as mais nobres uniam as capitais coroadas. A rota alternativa – os jornalistas ácidos da época diziam que ela só era frequentada por aqueles que já estavam no fim de suas carreiras – comtemplava as Américas, em particular a América Latina.
O Rio era um ponto importante de passagem, depois seguia-se para Montevideo e Buenos Aires. Eram rotas de navio: era possível embarcar vastos cenários, ensaiar a bordo e fazer apresentações. O avião desestruturou todo este sistema. Na sua recuperação aérea, o Brasil não entrou. Ou melhor, o Rio não entrou, pois já existe faz tempo uma conexão com São Paulo, natural para turnês que se dirigem a Santiago e a Buenos Aires.
Assim, além da sintonia digital/virtual, que em parte já acontece faz algum tempo e que se tornou forte agora, com limites rígidos por causa da barreira dos idiomas, dois outros caminhos podem ser explorados para a conexão internacional.
O primeiro é tradicional, as rotas das turnês. A modalidade ainda está à mercê das condições da pandemia. A sua estruturação é um pouco complexa, sob o ponto de vista carioca, pois, para ser organizada com sucesso, precisa lidar com o problema da retração empresarial do Rio e com o baixo poder aquisitivo do público carioca. A organização das rotas exige, ainda, empresários de extrema competência, dotados de muita disposição para trabalhar.
O caminho deve ser de mão dupla – deveria acarretar a exportação sistemática do melhor teatro brasileiro. E isto deveria acontecer sem se tornar um pesadelo tenebroso ou uma obsessão doentia para os grupos, artistas ou produções que se lançassem ao horizonte. Quais as políticas de difusão do teatro brasileiro em vigor no país?
Outro caminho seria um pouco mais fácil – poderia ser uma espécie de chave mestra para abrir a porta para os contatos internacionais. Seria a organização de festivais de teatro internacionais, uma vocação clara do Rio de Janeiro.
Neste ramo, seria natural tecer uma parceria entre a APTR, o ITT (Instituto Internacional de Teatro) e a Prefeitura do Rio, por exemplo, lembrando-se que o Sambódromo, com sua bela capacidade ociosa boa parte do ano e elevado custo de manutenção, seria um abrigo interessante para a atividade. O primeiro passo nesta direção é fácil de dar – mandar representantes para os festivais internacionais que estão acontecendo.
Muitos são os contatos importantes na cena internacional. Em Portugal, o 37.º Festival de Almada, de 3 a 26 de julho, está confirmado, fato raro na cena mundial atual. A programação será quase exclusivamente portuguesa, com apenas três produções internacionais. O calendário do festival foi ampliado, o número de sessões de cada espetáculo aumentou, para atender à necessidade de reduzir à metade a lotação das salas. Não haverá espetáculos ao ar livre, modalidade ainda difícil de administrar sob a crise sanitária. Nas salas, em Almada e Lisboa, haverá lugares marcados e o uso obrigatório de máscaras.
Outros contatos significativos seriam ainda o FITEI, o Festival de Edimburgo, a Fundación Teatro a Mil, o Festival de Cádiz, o New York Shakespeare Festival… a lista pode se estender bastante. A maioria está com as edições deste ano suspensas. A rigor, estão todos debatendo o impasse mundial provocado pelo coronavirus-19. Muita gente parece não ter se dado conta no Brasil, mas estamos numa tremenda crise internacional. Portanto, as soluções interessam a todos.
É preciso sintonizar com o debate, trazer as questões e contribuir com a busca de respostas. Vários nomes no Rio de Janeiro atuam na área de festivais, possuem larga experiência internacional e seriam figuras estratégicas para a construção de novos laços pós-pandemia a favor da recuperação teatral. Os maiores destaques do segmento são bem conhecidos – Tânia Pires, incansável organizadora do FESTLIP, Cesar Augusto, Bia Junqueira e Márcia Dias, diretores gerais do TEMPO_FESTIVAL.
Enfim, num país em que não há um inverno congelante, dotado de uma vasta tradição de festas nas ruas e arraiais, nada impede que a cultura teatral seja mantida viva e sem riscos sanitários se o palco se espalhar pelos recantos urbanos favoráveis à prática, se conseguirmos organizar com racionalidade esta forma de expressão da arte. Não dá para ser um carnaval anárquico, claro.
Em Nova Iorque, no verão, o teatro se espalha ao ar livre e um dos espaços mais concorridos é o Delacorte Theatre, no Central Park. Lá acontece o Shakespeare in The Park, com apresentações muito disputadas, este ano canceladas. A força do evento é de tal ordem que, se o mundo não estiver acabando em água, as peças acontecem mesmo sob a chuva – guarda-chuvas proibidos.
Portanto, vale insistir, as apresentações ao ar livre podem ser um ponto interessante a examinar. Este poderia ser um caminho para pensar a recuperação conjunta de cidades, artes, gentes. Se a Idade Média viu as cidades renascerem e desafiarem os rigores feudais, um dos encantos das ruas foram exatamente as representações teatrais.Elas compuseram muito da alma das cidades.
O vigor, contudo, não era vitalício, várias cidades morreram depois de ter uma época gloriosa. Os seus naturais receberam avisos eloquentes do processo de declínio, mas nada fizeram ou nada souberam fazer para que as suas terras, outrora terras de liberdade, sobrevivessem. Sim, cidades morrem. Além da pandemia, além da crise do teatro, da cultura e da crise geral, há a crise do Rio – vale lembrar.
Fica a pergunta – como tantas cidades morreram? Na verdade, foram abandonadas por seus nativos, incapazes de doar às suas cidades algo do espírito livre recebido. Se o ar da cidade fez o homem livre, o homem fez o ar da cidade ficar doente. E a História não perdoa, materializa o que lhe oferecemos. A ação do homem pode fazer da cidade, uma cidade morta.
SERVIÇO:
Foto: ilustração da montagem de AS ARTIMANHAS DE SCAPIN, de Molière, Tradução de Carlos Drummond de Andrade, Encenação de João Mota – Grupo COMUNA – TEATRO DE PESQUISA (Lisboa, Portugal) – estreia no Festival de Almada.
Muitos sites e páginas do face indicam os grandes festivais mundiais de teatro e de cultura. Este ano, a lista dos festivais suspensos é imensa e as atividades on line se ampliaram.
Sugestões:
https://pt.allexciting.com/culture-art-festivals-europe/
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica