E a vida, alguém sabe o que é?
Anunciaram e bradaram, soaram fanfarras… Mas o mundo não se acabou! Aqui no Rio de Janeiro, sob o velho sol escaldante do verão, o engarrafamento da Rua Jardim Botânico segue impávido, um colosso. É cedo para perguntar, mas, sinceramente, o que mudou em nós por conta da covid 19? Mudou algo? Continuamos, firmes e falsos? Há algum sentido nisto tudo? Ou é só som e fúria e fumaça de engarrafamento?
Há também engarrafamento de gente, convenhamos. Exemplo? Voltamos ao teatro. Neste fim de semana, mergulhei de vez no retorno da cena, morta de medo, vestida de máscara e álcool, coração acelerado, atônita com a multidão. Medo, medo, medo. Foi bom. Vi duas peças antagônicas. Surpreendemente, as duas, fato curioso, fazem perguntas a respeito da condição da mulher, giram em particular ao redor do papel social da mãe.
Recomendo as duas, na certeza de que os públicos interessados devem ser bastante diversos. Uma é um modelo de teatro comercial bem feito, com um texto bastante divertido, porém impregnado por tons ácidos: Quando eu for mãe que quero amar desse jeito, de Eduardo Bakr, cartaz no Teatro Clara Nunes.
O jogo da cena, ágil, contrapõe duas mulheres tinhosas (Vera Fisher e Larissa Maciel, a mãe e a esposa) em confronto pelo amor do irresistível galã que dá sentido às suas vidas (Mouhamed Harfouch). Uma tese cortante matiza o riso com uma pergunta incomoda – afinal, o ser humano é apenas pura selvageria e competição?
A outra peça, As Cangaceiras, guerreiras do sertão, no Teatro Riachuelo, chegou de São Paulo sob aclamação intensa. O texto, assinado por Newton Moreno, também é nacional, um fato notável que precisa ser comemorado. O tom, no entanto, passa longe da outra peça – a montagem, ainda que tenha perfil comercial, obedece a uma linha de trabalho associável ao teatro de grupo, de apelo universitário, intelectualizado e jovem.
A devoção materna, neste caso, deixa de ser jogo de poder e de riqueza e se torna, sob as cores da terra árida, compromisso profundo do sangue. Portanto, a visão da mulher nos dois textos obedece a perfis bem distantes. Num caso, o foco incide sobre a frieza das tramas interesseiras mesquinhas. No outro, o que se revela é a luta violenta por liberdade de ser e de existir, ditada pela opressão vigente no cangaço, mas, de toda forma, necessidade básica da mulher no Brasil de hoje.
Nos dois casos, há que se destacar a qualidade excepcional do teatro apresentado, em particular se considerarmos o cenário tenebroso da pandemia e a crise violenta ditada pela situação política de liquidação da cultural nacional. Não são meras cenas sobreviventes, nem são esmolantes. São cenas de alto padrão profissional, construídas com muito esmero, interessadas em dialogar intensamente com a sociedade brasileira hoje.
Detalhe interessante a observar: a percepção do urbano e do rural nas duas cenas, segundo os diferentes tons, materiais, composições. Enquanto a cidade aparece estática, emparedada em cores de salão, o sertão é puro movimento, imerso em matérias naturais e tons de terra. A mesma dinâmica aparece nos corpos, hieráticos para as cenas de simulações sociais, largado, dançante e desenvolto para a epopeia vivida no mato.
Trata-se de uma amostra eloquente. A volta do teatro presencial apresenta exatamente este recorte: a diversidade, a variedade, o reconhecimento da sociedade pulsante em que vivemos, preocupada em saber de si e em perguntar muito a respeito da própria natureza. Assim, também as formas teatrais oferecidas surgem múltiplas.
Nesta semana, por exemplo, teremos no dia 16, na Sala Adolpho Bloch do Teatro Prudential, o encanto de uma leitura dramatizada concebida por uma equipe irresistível. Sim, também neste caso o texto leva a assinatura de um autor nacional consagrado, Flavio Marinho. E mais – a leitura de Judy, o arco-íris é aqui, como o nome permite desconfiar, será musical. A atriz Luciana Braga cuidará do papel solo, sob direção musical de Liliane Secco. Destaque-se o privilégio que é ter este tipo de programa nobre, a leitura dramática. Coisa de bela metrópole, para refinados cidadãos.
A pauta, contudo, se alonga – no dia 18, uma nova estreia trará para o público carioca mais um texto de autor brasileiro. No Teatro Vannucci, entrará em cartaz A Vingança de Shakespeare, com texto e direção de André Costa.
A proposta segue o padrão do teatro comercial orientado para a diversão elegante – uma confraria de atores se encontra habitualmente para celebrar Dionísio, ocasião em que costumam encenar uma tragédia de Shakespeare, para sua própria diversão. Ambientada nos anos 1920, a peça abriga discussões históricas importantes nas quais a mulher está sob a luz dos refletores.
Na reunião apresentada em cena, os atores decidiram encenar Romeu e Julieta e ao mesmo tempo celebrar o ingresso de um novo confrade, tão misterioso quanto o grupo. A peça se define como um suspense tragicômico, com alguns tons de teatro do absurdo, um tanto sob o interesse de debater o alcance dos projetos e ideias de aparente validade, mas nem sempre bem sucedidos…
Para onde vai este teatro, com tantos rumos? Sob a multiplicidade, há algo bem importante nestes cartazes. Uma ideia parece brotar forte destas cenas pós pandêmicas: é fundamental fortalecer o autor, o dramaturgo, no teatro brasileiro. Ainda estamos sob a crise da SBAT, que se prolonga sem conquistar apoio político eficiente. Mas mesmo com a velha casa em eclipse, o teatro parece nos dizer que precisa da nossa palavra. Da nossa voz. Não existe teatro nacional sem autor nacional.
Com certeza, só a mão dos nossos conterrâneos – e mais ainda, dos nossos contemporâneos – consegue apontar sem hesitação onde, no nosso corpo, dói. Agora que anunciam o fim da pandemia, propagam a ideia de retorno ao “normal”, importa saber bem claramente que normal é este, qual é a nossa dor, onde a vida nos dói, mesmo que continue a ser impossível saber o que a vida, afinal, é. Alguma luz é preciso ter, para não ficar aos tropeços no escuro. Exatamente por isto precisamos tanto deste médico da alma, o autor nacional.
Ficha Técnica
“Judy, o arco-íris é aqui” texto e direção: Flavio Marinho Com Luciana Braga prepraração vocal de Felipe Abreu direção musical de Liliana Secco Serviço DATA: dia 16 de março (4ªf), às 19h Teatro Prudential – Sala Adolpho Bloch . Rua do Russel, 804 (Edifício Manchete), Gloria / RJ E N T R A D A F R A N C A |
A Vingança de Shakespeare
Ficha Técnica:
Texto e direção: André Costa
Elenco:
Carlos Bonow
Priscila Ubba
Sérgio Abreu
Renatta Pirillo
Camila Mayrink
Ator convidado: Roberto Pirillo
Diretor de Arte, Cenógrafo e Figurinista: Ronald Teixeira
Iluminador: Felício Mafra
Trilha Sonora: Celso Rangel
Fotos: Renato Mangolin
Assessoria de imprensa: Passarim Comunicação – Silvana Cardoso e Juliana Feltz
Produção: Deborah Aguiar e Mila Madsen
Realização: The Bridge Film Company
FB E INSTAGRAM: @avingancadeshakespeare
Serviço:
Local: Teatro Vannucci | Shopping da Gávea
Temporada: de 18 de março a 15 de maio de 2022 | sextas, sábados e domingos
Horário: sexta e sábado, às 21h | domingo, às 20h30
Endereço: Rua Marquês de São Vicente, 52, 3º andar, loja 371, Gávea, Rio de Janeiro/RJ.
Ingresso: Sextas: R$ 40,00 (Meia) / R$80,00 (Inteira) | Sábados e domingos: R$ 45,00 (Meia) / R$90,00 (Inteira)
Duração: 80 minutos
Classificação: 14 anos
Vendas pelo Sympla: https://bileto.sympla.com.br/event/71645