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Crítica: A Lista

Olha que coisa mais linda…

É poesia. Contudo, também é coisificação. Somos filhos de uma ótica colonial aguda e, portanto, seguimos a tendência de coisificar o que existe ao nosso redor. O pior: na nossa rotina, coisificamos carinhosamente. A coisa linda é sempre cheia de graça, um encanto a caminho do mar, objeto para olhar e desfrutar.

Quando a música apareceu, Ipanema se tornara a nova aldeia da carioquice. Copacabana perdera o título, se transformara numa megalópole-formigueiro labiríntica, sem sombra sequer do velho glamour de outrora.

A Igrejinha, no atual Posto 6, imagem de postal de 1907.

Todavia, o canto de louvor à beleza de Ipanema estava lá antes, em Copacabana, a princesinha do mar. Rincão distante, aldeia de pescadores, lonjura sedutora. Fora um recanto selvagem da cidade arrasadoramente belo, que destruímos em pouco mais do que um século.

A orla por volta de 1940/1950.

Juramos amor eterno aos encantos da praia cheia de luz, enquanto ocupávamos, numa voracidade inacreditável, com ferro, cimento e concreto, todos os ângulos possíveis que permitiam vislumbrar as areias mágicas. E as sereias imaginárias. Inventamos uma espécie humana nova:  o homo copacabanensis, em latim macarrônico, um ser disposto a tudo para viver na praia pecaminosa de outrora, destruindo-a. A especulação imobiliária desenfreada se espraiou.

O homo copacabanensis é feito de solidão, egoísmo, ilusão, crença na hipótese de que a vida pode ser uma aventura de prazer inebriante, mas encerrada em si, contra os outros. O seu deus é ele próprio. A sua religião é uma estranha cegueira existencial.

Assim é dona Laurita, personagem criada por Gustavo Pinheiro na peça  A Lista, para colocar diante de nós um surpreendente espelho existencial, daqueles que, outrora, nos circos, ampliavam cada detalhe distorcido de nossa imagem. No fundo, somos todos dona Laurita e tratamos, religiosamente, de tentar atropelar o mundo.

A peça, novo cartaz do Teatro dos Quatro, é a primeira estreia de impacto do ano, não deixe de ver. É simplesmente sensacional, programa obrigatório. A lista de acertos supera qualquer listagem de supermercado…

A primeira razão para correr até o teatro enquanto existem ingressos disponíveis (sim, vai ser um sucesso avassalador) nasce do acerto impressionante contido nos cálculos do texto. Distante de uma poética realista miúda, Gustavo Pinheiro optou por pintar um retrato contundente da alma nacional.

Numa dramaturgia fina, sutil, delicada mesmo, ele trama fluxos de afeto surpreendentes, linhas sensíveis eficientes para revelar a radiografia do homo copacabanensis. A densidade do texto obedece a uma ordem de pesquisa existencial de tal profundidade que, ao final, constatamos: está no palco, sob a aparência de um véu copacabanense, um outro espécime, mais universal – o homo brasiliensis. Sim, somos nós em cena, os filhos vorazes do Brasil. Copacabana somos nós.

Vale demonstrar a afirmação por partes. A trama da peça expõe um recorte da vida de D. Laurita, professora aposentada e solitária, cria e amante do bairro carioca mais famoso, sinônimo a um só tempo de cosmopolitismo, pecado e liberdade absoluta de ser. Sob a pandemia de Covid-19, submetida ao confinamento compulsório, essencial em particular para a preservação da saúde dos idosos, ela aceita a generosidade de uma jovem vizinha desconhecida, Amanda, para fazer as suas compras semanais.

Sim, nos imensos prédios de apartamentos de Copacabana uma pessoa pode viver a vida inteira, por muitas décadas, sem chegar a conhecer muitos dos vizinhos. O mote inspirado sugerido pela pandemia funcionou como uma luva de seda – ou um maiô de helanca – para revelar uma coleção impressionante de truques existenciais a que recorremos para tocar a vida em estado selvagem de solidão humana. Objetivos e cálculos surgem para atender aos nossos anseios imediatos; prazeres miúdos governam nossos atos e para afirmá-los mentimos e trapaceamos sem pejo.

Acompanhamos, de surpresa em surpresa, o enfrentamento hilário – e dramático – entre as duas mulheres. A velha senhora age como se não estivesse diante de um imenso favor. A jovem se surpreende com o tamanho da cegueira humana da vizinha. As duas acabam por traduzir muitos dos impasses vividos por todos hoje.

Desta forma, o texto apresenta um desenho sinuoso de afetos e de sensações capaz de sugerir o autorreconhecimento e levar a plateia ao riso e à lágrima, numa enxurrada sentimental irresistível. O ritmo afetivo acelerado é explorado com extrema acuidade pela direção de Guilherme Piva.

A ênfase, então, recai absolutamente na revelação da presença humana sentimental. O cenário assinado por J.  Serroni é minimalista, o figurino, também de sua autoria, busca a indicação das personalidades mais do que qualquer outra condição.

A partir desta concepção geral, as atrizes representam sob elementos simbólicos eloquentes. Ao lado da força contida na moldura da cena, a calçada símbolo do bairro, um mínimo de objetos utilitários faz com que elas se projetem como objetos vivos, coisas humanas que se movem sobre o fundo preto.

Lilia Cabral traz para o palco, com uma força sentimental impressionante, a imagem perfeita destes pequenos seres sentimentais, destruidores, pecadores contra a vida e contra o outro, que definem com perfeição o estado de ser brasileiro. A sua representação se faz em absoluto estado de afeto – uma linha de trabalho comovedora, propícia a nos levar a ver nossa copacabanidade, nossa brasilidade, enfim, o abismo existencial que nos trouxe até aqui.

Giulia Bertolli, em excelente desempenho ao lado de sua mãe, transforma a contracena, com a sua exuberância juvenil, em inteligência emocional cristalina, oferece os contrapontos exatos e as deixas precisas para indicar o contorno da imensa solidão que nos estrutura.

A luz de Wagner Antônio contribui para o destaque dos climas e situações, também é mais simbólica do que realista ou objetiva. Alcança um impacto particular no encerramento da ação – o final da peça é quase uma apoteose, um canto de louvor à libertação humana diante da beleza da praia de Copacabana.

Apesar de todas as ações históricas destruidoras, predadoras, a beleza excepcional do lugar se instala em cena, para o final, sob um véu delicado. O projeto da montagem, importa destacar, nasceu no início da pandemia, dentro de uma iniciativa da atriz Ana Beatriz Nogueira, de encenar textos online para ajudar aos trabalhadores da cena, desprovidos de qualquer renda para a sobrevivência, após o fechamento dos teatros.

A ideia foi adiante – e se transformou na primeira peça nacional voltada para pensar os efeitos da pandemia no universo socioafetivo brasileiro. Portanto, o desfecho diante da mais deslumbrante paisagem carioca oferece mais do que um prazer visual, afetivo ou cidadão.

Registra um momento de esperança, libertador: registra a esperança de nascimento de um novo homo brasiliensis, capaz de amar de uma outra forma, sob um novo conceito de humanidade, de urbanidade. Para que sejamos, talvez, enfim, verdadeiramente felizes: paisagem não nos falta.

O que falta é o amor verdadeiro pela paisagem. Ou pela vida. Precisamos elaborar a lista de outra forma, para descobrir que não somos coisas, não somos meros impulsos para desfrutar, somos grandeza interior, somos cidadãos, somos nós.

Ficha Técnica:

Texto: Gustavo Pinheiro.

Direção: Guilherme Piva.

Elenco: Lilia Cabral e Giulia Bertolli.

Cenários e Figurinos: J.C. Serroni.

Iluminação: Wagner Antônio.

Direção de movimento: Marcia Rubin.

Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes.

Fotógrafo: Priscila Prade

Programador Visual: Gilmar Padrão Jr.

Direção de Produção: Celso Lemos.

Serviço:

Espetáculo A LISTA

De 06 de Janeiro até 26 de março de 2023.

Horários: Sextas e sábados às 20h e domingos às 19h.

Ingressos: R$ 120,00 (inteira) R$ 60,00 (meia)

Duração: 80 minutos.

Gênero: Comédia dramática.

Classificação etária: 12 anos.

Teatro dos QuatroShopping da Gávea Loja 264 – 2º Piso

R. Marquês de São Vicente, 52 – Gávea, Rio de Janeiro – Telefone: (21) 2239-1095

E ATENÇÃO, ATENÇÃO:

A Lista em breve será lançada em livro, mais uma bela iniciativa da Editora Cobogó, a editora carioca de teatro, ainda que a sua bela estante contemple outros temas…

A Coleção Dramaturgia da casa já conta com mais de cem peças publicadas, um panorama intelectual respeitável das letras teatrais brasileiras – pois reúne autores nacionais e nomes estrangeiros significativos para o palco do país. Gustavo Pinheiro, autor de A Lista, estreou como dramaturgo em 2016, com A tropa, também editada na Cobogó e ainda em cartaz.

Aliás, vale a ressalva: o seu nome se projetou recentemente graças a uma outra obra valiosa, a tradução (excelente) da peça Três Mulheres Altas, de Edward Albee, definitivamente um cartaz nobre da temporada de 2022, no Teatro Copacabana Palace.

Portanto, ninguém se engane aqui está sob o foco um projeto cultural muito bem formulado, no qual se pretende que a experiência teatral ultrapasse o simples “evento”, deixe de ser a ida pura e simples ao teatro, para se tornar um fato cultural. Para os olhares atentos, o recado é claro e o chamado, imperdível.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO:

Título: A Lista

Coleção: Coleção Dramaturgia

Autor: Gustavo Pinheiro

Idioma: Português

Número de páginas: 88

Editora: Cobogó 

ISBN: 978-65-5691-093-2

Capa: Gilmar Padrão Jr.

Encadernação: Brochura

Formato: 13 x 19 cm

Ano de publicação: 2023

Preço: R$ 42,00

CDD: 869.2