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         O teatro e o seu fantasma

Quem discordar por favor se manifeste, esperneie. Não banque o fantasma camarada. Aviso logo: vou mexer com um tabu teatral. De saída, vamos lembrar de uma tradição – dizem que todo teatro tem um fantasma para chamar de seu. Acho uma bobagem, crendice infundada, mas vai que não, não é? Quem tem pele, arrepia.

Na Escola de Teatro da UNIRIO, na Praia do Flamengo, ali no antigo prédio da UNE demolido por furores da ditadura, os funcionários juravam que o fantasma da atriz Glauce Rocha (1930-1971) errava por lá. Preferia assombrar, diziam, a Sala Glauce Rocha, onde havia uma pequena vitrine com fotos, relíquias e objetos da atriz.

Se a versão é verdadeira, suponho que o fantasma era muito preguiçoso – durante todo o tempo em que estudei lá, muitas vezes ensaiando de madrugada, a etérea dama nunca apareceu. Também no grandioso palcão, queimado pelo incêndio de 1964, jamais percebi qualquer manifestação de espírito, fora as nossas apresentações, bem reais, de alunos, aliás, nem sempre muito espirituosas.

Portanto, entendo que o fantasma do teatro é bem outro, de natureza sólida e palpável. O fantasma do teatro é o capital. A afirmação nasce de várias constatações, tem múltiplos sentidos, pode ser analisada a partir de diferentes ângulos.

O primeiro surge como uma constatação objetiva um tanto difícil de enfrentar, dolorosa mesmo. O capital é o fantasma do teatro brasileiro por ser, infelizmente, o grande ausente da velha casa. É um daqueles fantasmas de alta patente, espécie de Glauce Rocha, não aparece nunca, prefere ser referência remota.

Digamos que a arte conta com uma fartura de elementos para funcionar folgada como atividade econômica: tem mão de obra abundante, projetos, ideias, matéria prima, mercado, estabelecimentos para oferecer o seu comércio, planos de ação e até planos de negócios. Mas capital, não tem.

Por isto, podemos definir o capital teatral como uma assombração, que vem do além ou sabe-se lá de onde, passa espavorida, assusta aqui e ali, surpreende um e outro e pá, vai-se. Não fica nem cheiro de enxofre.

Esta condição aparece até mesmo nos estudos históricos. Nos períodos ditos prósperos, nos quais o teatro dominava o gosto do povo e monopolizava o tempo dos cidadãos, ameaçado por poucos concorrentes, ainda nestes tempos as reclamações da categoria denunciavam a escassez de meios sonantes. O teatro andava repleto, mas sempre em crise de capital.

Apesar do razoável número de teatros, do reboliço causado pela cena e do público suposto como numeroso, a lamúria era uma canção sempre ouvida. Extrações de loterias, verbas extraordinárias, apresentações em benefício, de tudo um pouco se fazia para ampliar a arrecadação. Mas as somas acabavam sempre não se equilibrando.

Para ir direto ao ponto, este estudo, aparentemente fácil, não foi feito até hoje e nunca será fácil de fazer, pois são raros, para não dizer inexistentes, os registros das movimentações financeiras das companhias teatrais. Livros caixa e borderôs têm no teatro a espessura do capital: desaparecem, fugazes como os fantasmas. São rastros evanescentes adequados às assombrações.

Contudo, fazer a autópsia deste fantasma seria um procedimento estratégico, precioso mesmo, hoje, para aumentarmos a compreensão do teatro brasileiro. Poderia ser ampliada, assim, a reflexão a respeito da relação entre teatro e sociedade.

Conhecer bem algumas operações simples seria um ato bem oportuno: saber como as empresas se estruturaram ao longo do tempo, como administraram os seus recursos, como se relacionaram com o jogo do capital na sociedade, como nortearam os seus procedimentos administrativos.

De certa forma, durante a maior parte do tempo o teatro funcionou como gambiarra, pois  a arte não era praticada por uma profissão reconhecida. No século XX, quando as leis de regulamentação profissional começaram a ser formuladas, o formato empresarial, de início, seguia as normas empresariais impostas ao comércio. Antes deste período, é preciso apurar as formas legais permitidas para um atividade ilegal.

O fato mais impressionante é que, ao longo do processo histórico, o teatro se tornou uma atividade econômica dotada de capital, pois desde o final do século XIX e durante o início do século XX o próprio palco financiava as suas produções. Alguns indícios retirados do folclore teatral denunciam um fluxo de renda bem volumoso, apesar da reclamação constante dos profissionais.

Por exemplo? Sabe-se que o palco gerou grandes fortunas pessoais – tanto se diz que Leopoldo Froes (1890-1932), apesar de nascido em berço rico, juntou um belo patrimônio, como se sustenta a versão de que Procópio Ferreira (1898-1979) acumulou e dilapidou várias fortunas. Contudo, a riqueza não contemplava a todos – os atores característicos, coadjuvantes, mergulhavam na miséria como as classes populares de onde provinham. Existiu, portanto, um capital teatral forte, mesmo que fosse mal distribuído, e vale perguntar de onde ele veio.

Pois bem,como se forma o capital teatral? Um movimento histórico aparece nítido na história do teatro europeu, ainda que ele não possa ser claramente reconhecido na cena brasileira. O renascimento teatral a partir dos séculos XV-XVI viu surgir uma classe teatral que tencionava o quadro social rigidamente estratificado.

Os atores surgiram como um novo segmento dentro do terceiro estado, ainda que possuíssem diversas origens de classe. Apesar da atuação nas feiras e nos mercados, até o século XVIII a atividade dependerá do protetorado, do patronato, do mecenato. Isto significa que dependia não só de passar o chapéu nas áreas públicas, como também da permissão e do patrocínio de nobres e governantes.

O capital teatral provinha, então, de uma dupla origem – o chapéu e a coroa, digamos, o público e o poder. Há um mito a respeito da liberdade das trupes errantes, mas trata-se apenas de um mito, pois as terras em que se podia encontrar público e fazer apresentações sempre tinham donos. Os donos nem sempre gostavam de teatro. Logo cedo o teatro aprendeu a ter coluna maleável, aprendeu a se curvar, para sobreviver.

Os edifícios teatrais para espetáculos, públicos, isto é, com bilheteria, ou privados, quer dizer. ligado a um dono, começaram a surgir no século XVI, mas enfrentaram várias instabilidades. Somente no século XVIII o seu funcionamento se tornou prática corrente e a bilheteria começou a ser a possibilidade de sobrevivência bem objetiva.

De todo modo, como reis e nobres europeus sempre foram grandes consumidores de arte e exerceram com frequência o mecenato, a ideia do Estado como provedor de cultura não será nunca, por lá, uma aberração, ao contrário até. E mais: para o Iluminismo e o Liberalismo, educar as massas emergentes do século XIX era essencial, tarefa que o teatro, escola de moral e bons costumes, podia exercer com brio. Portanto, a dupla via bilheteria-subvenção se tornou um fluxo corrente.

 No Brasil, o apoio ao teatro – e à cultura em geral – nunca se tornou um projeto do Estado consistente e preciso.  A barreira colonial, preocupada em manter a massa como força de trabalho bruta, rústica, ignorante, nunca foi superada. Mesmo a educação tende a ser pensada em parâmetros cruéis, na linha da dobradinha  escola de rico/escola de pobre.

Portanto, o único caminho efetivo para a composição do capital no teatro brasileiro sempre foi o do bolso do público. O mais curioso é que o compromisso classe-povo, sempre que vigorou, sempre irritou os poderes. A revolta dos doutos, adeptos de uma arte requintada (para si) ou civilizadora (para os pobres), acabava entrando em sintonia com a reação dos poderosos, inclinados a uma cena civilizadora ou simplesmente avessos à arte.

Segundo esta dinâmica, naturalmente o capital “público” e o do mecenato  constituíram parcela reduzida na composição do capital teatral. A constatação pode ser avaliada como uma hipótese, mas com certeza ela está muito próxima da verdade. Ela deveria ser uma bússola para a classe teatral, um instrumento para orientar a sua ação. A situação implica em algumas decorrências lógicas.

A primeira, a mais imediata e natural, é a de que é inútil insistir junto ao Estado brasileiro para que ele se torne mecenas ou benemérito das artes. Se por acaso vier a surgir um dia no Brasil a mentalidade cristalina de que teatro, portanto, arte, cultura, é gênero de primeira necessidade da alma cidadã, é serviço de saneamento existencial prioritário, isto não acontecerá em curto prazo.

Esta tradição não se fixou aqui, apesar de ela existir em alguns avançados segmentos sociais locais, como o sistema S. Importa, na verdade, localizar estes paraísos de arte e ampliar ao máximo o diálogo com eles. Da mesma forma, é urgente abrir a conversa com o sistema de ensino, com as escolas de todos os graus, e explorar os meios para levar o teatro às escolas, para viabilizar a formação de plateia.

Uma outra linha de trabalho urgente, mais dolorosa e trabalhosa, implica na renúncia, por parte da classe, à sua vaidade doentia. A classe teatral precisa virar o espelho, do seu rosto para a face do público. A classe teatral precisa parar de achar que teatro é uma revolução explosiva e parar de desejar ser a líder da marcha que vai fazer surgir, até mesmo no sopapo, uma humanidade nova. A classe teatral precisa parar de brigar com o público.

A necessidade, agora, é precisamente olhar o público, ver quem ele é, restabelecer o diálogo, apostar nas pequenas revoluções, nos beliscões delicados. A plateia de teatro não gosta de levar fígado na cara – e se a classe teatral gosta de fazer teatro e quer fazer teatro, é bom entender isto. Não é obsceno fazer a arte que o público quer ver ou precisa ver. E este teatro amado pelo público não precisa ser lixo cultural: precisa ser teatro, apenas teatro.

Nas grandes capitais do mundo o teatro acontece como rotina saudável e segue níveis diferenciados de densidade de linguagem. Há a peça elaborada com uma carpintaria mais próxima da cabeça cotidiana, inclinada a trabalhar e até sacudir pequenas emoções. E num leque crescente de sofisticação de linguagem se chega à peça hermética, densa, devotada à reinvenção de tudo, inclinada a contentar os espíritos sofredores mais sofisticados, aquela peça que vai arrebatar umas seis pessoas ou ninguém, sem problema, pois o seu foco é quem faz…

Talvez nos grandes centros mundiais o capital teatral conte com uma parcela considerável de capital público – não sei dizer em que grau está esta relação. Ela é bem forte na França, de certa forma é o modelo francês, e está um pouco por toda a parte. Mas, vale destacar sempre, tal nunca se deu por aqui dentro de uma visão sistêmica, contínua: foi justamente por esta omissão do Estado que o teatro brasileiro moderno quebrou. Este foi o impasse que estrangulou o TBC, as modernas companhias de atores saídas do TBC, a Companhia Maria Della Costa, enfim, todos daquele tempo.

Vale, então, brigar com o governo para que ele construa teatros, financie a construção de teatros a baixo custo, mantenha os seus teatros funcionando em condição de excelência, intermedeie a relação teatro-escola, financie programas decisivos de formação de plateia, banque pesquisas e centros de documentação, depósitos de cenografia e figurinos. A classe teatral monta as peças. Simples assim.

Esta ação – quase uma oração para ser rezada em voz alta pela classe – pode ser o único caminho para viabilizar a institucionalização do teatro entre nós. A partir do dinheiro do povo, transformado em público, interessado em transformar a própria sensibilidade, a classe teatral pode vir a constituir o capital teatral e assim promover uma operação caça-fantasma eficiente.

Dá para começar a estruturar um programa de ação agora na quarentena, para não perder tempo. Quando o isolamento acabar, a classe teatral precisará ter projetos, propostas, ideias e garra para fazer a sua arte, se possível uma arte renovada. Para evitar que, sufocada por todos os lados, siga as pegadas do seu velho e carcomido capital: para evitar virar, ela própria, um fantasma.

Serviço:

Foto: Glauce Rocha, fotógrafo ignorado – agradecemos se houver identificação.

Novos caminhos para o teatro – significa também experimentar e ousar propor formatos para o isolamento, pensar a renovação da linguagem. Alguns casos são propostas bem teatrais:

CENA EM CASA

O dramaturgo Leandro Muniz está lançando o excelente Cena em casa – projeto teatral online. Estão disponíveis no Instagram duas cenas – uma com o ator Pedroca Monteiro, outra com o ator Thelmo Fernandes.

Confira: @munizleandro

CLUBE DA CENA

A atriz, autora e diretora Cristina Fagundes está assinando o projeto, com cenas de ficção ao vivo no Instagram.

Confira: @clubedacena