Um galã para chamar de seu
Monstro. A palavra é exata, é o nome certo, no lugar certo. Serve para falar de alguém que extrapola na arte os limites triviais, cotidianos, roça o céu absoluto dos maiores voos criativos. O sentido aqui, destaque-se, é muito distante do antigo monstro sagrado ou monstro teatral.
Traçar a diferença é fácil – neste caso, o frágil contorno do velho mito logo se quebra. Pois o antigo monstro sagrado se definia por ser a grande estrela da arte, líder de companhia, solitário brilhante isolado em si com a sua luz. O maior exemplo na cena universal será sempre Sarah Bernhardt; no Brasil, Leopoldo Froes.
Já se vê a distância que separa o velho mundo de aclamações delirantes da força poética e criativa de Gustavo Gasparani. Então, ele é monstro, um artista desmedido, mas sob um sentido novo, revolucionário até. A sua arte escapa das velhas definições pois não se resume a um transbordamento de si, fluxo palpitante de sensações de uma personalidade excepcional, voltado, tal fluxo, para o próprio brilho pessoal.
Ao contrário: a arte acontece com o cálculo de criar emoções e sensações adequadas para fazer o mundo tremer, sacudir valores e referências do jogo social. Duvida? Ah, por favor. Para ter certeza disto, basta ir ao teatro conferir o tamanho de sua ousadia, aliás um procedimento habitual: ele está em cena em dose dupla, no Rio, em produções apaixonantes.
Curiosamente, as duas encenações falam das estruturas do homem ocidental. O primeiro caso é o monólogo Como Posso não Ser Montgomery Clift?, excelente estudo de personalidade na arte assinado pelo espanhol Alberto Conejero López, cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. O outro trabalho traz de volta à cena carioca, no Oi Futuro do Flamengo, a Companhia dos Atores em Julius Caesar – Vidas Paralelas, uma encenação inspirada no texto clássico de Shakespeare.
Na peça espanhola, Gustavo Gasparani consegue, em grande parte graças à sensível direção de Fernando Philbert, propor uma imersão na crise profunda vivida pelo ator Montgomery Clifft (1920-1966). Sob as formas e as cores elegantes oferecidas pelo simbólico cenário de Natália Lana e pelas luzes mágicas de Vilmar Olos, a cena materializa a liquidação em vida do astro, como se fosse uma cena de set, o sacrifício ritual do pequeno deus.
Após uma carreira relevante no teatro, o ator foi alçado ao estrelato de Hollywood, mas sob uma atmosfera de massacre total de sua individualidade, situação que o obrigava a ser ‘outro’ que não ele próprio, ator desesperado da própria vida. Clifft, transformado por sua beleza em ídolo das mulheres, era homossexual, orientação inaceitável num sistema de celebração devotado a transformar indivíduos em objetos. A autodestruição surgiu como solução natural, um processo que foi bem definido como um longo suicídio. Após um sério acidente de automóvel que desfigurou o seu rosto, o autor se arrastou por uma vida de álcool e drogas até a morte prematura.
Gustavo Gasparani dá corpo a esta crise contemporânea violenta, a crise gerada pela fama, com uma grandeza humana admirável. O seu jogo, discreto, equilibrado, bem resolvido, pode ser sintetizado como a busca da revelação interior nos seus meandros mais sutis – a exposição não busca produzir admiração, pena, empatia, mas sim compreensão.
A alma cindida do ator transparece num crescendo surpreendente, dividida entre o gozo da celebração basbaque e a dor da perda de si, até chegar à impossibilidade de ser contida na partitura da vida. O cenário com a banheira monumental (lugar onde ele teria morrido), as garrafas em profusão, o telefone para tentar conectar com o mundo e as roupas espalhadas, vestidas, despidas, registros de uma gala desesperada, conferem um tom peculiar ao drama. Afinal, a plateia está diante de um homem-objeto entre objetos, desvelado por um ator dedicado ao projeto de ser sujeito teatral.
Sujeito teatral: a expressão tem história. Um dos seus principais artífices foi Shakespeare. O nome do poeta está no centro do outro trabalho em cartaz assinado por Gustavo Gasparini, neste caso como diretor. A montagem celebra os 35 anos de existência da Companhia dos Atores, uma das equipes teatrais mais dinâmicas da cena carioca, um conjunto em que sempre esteve em discussão a própria função atoral, uma das condições determinantes do nome da companhia.
Assim, escolher trabalhar com as temáticas shakespearianas tem lógica; os estudiosos são pródigos em apontar como o homem renascentista, o sujeito ocidental, se estruturava naquele momento. Há uma profunda crise do mundo ocidental, associável ao nascimento do sujeito, e o tema se projeta nos debates propostos pelo autor.
Gustavo Gasparani assina a dramaturgia da montagem e, com fina percepção, leva a trama para as dificuldades e conflitos de uma companhia de teatro engajada na montagem da tragédia Julius Caesar, de Shakespeare. Aqui a densidade do ator se revela sob um outro ângulo, a direção de atores em sintonia com uma requintada visão da cena, para se afirmar como ousadia teatral. O resultado é uma extrema inventividade poética, pois afinal o coletivo reunido tem uma garra inusitada.
A montagem/ensaio acontece diante da plateia jogando com a quebra da representação; quando o público entra, a ação já começou, com uma sugestão de improviso musical, e a plateia é recebida como se fosse se tornar parte do projeto – seria o coro. A identificação da plateia como parte da montagem oscila durante o espetáculo, mas é uma constante. Não há, contudo, importunação do público, apenas adoráveis convites, pontuais, de participação.
Isio Ghelman e Suzana Nascimento, foto de divulgação.
Na cena, a potência dos atores surge como o grande fator de enfeitiçamento. A noite se torna mágica, eletrizante, divertida e cerebral de acordo com as decisões dos encantadores de almas, ágeis motores da vida do palco, inclusive na composição da cenografia. Isio Ghelman e Suzana Nascimento, nas funções de primeiro ator e diretora da companhia fictícia, comandam a ação. Cesar Augusto, como uma força de maturidade, busca aparar as arestas, afiadas pelo incendiário Gilberto Gawronski, o ator conspirador.
A inventividade da cena é justamente a marca profunda do trabalho dos atores. Historicamente, este é um dos eixos históricos do trabalho da Companhia dos Atores, notável por ter sido sempre o berço de uma cena que pretende se inventar. Gabriel Manita e Tiago Herz, o poder jovem da montagem, oscilando entre a música e a representação, brotando por vezes da plateia como se fossem parte do coro, ilustram muito claramente esta linha.
Consequentemente, a inventividade é a razão de ser da cena e alcança uma enorme ressonância no excelente cenário de Beli Araújo – ao mesmo tempo, ele materializa uma sala de ensaios, um espaço de comunicação com a plateia, a cena romana. A multiplicidade de cenas contida no cenário obedece a um curioso ponto de fusão, com passagens inspiradas de um lugar de ação para outro. A operação é apoiada e amplificada pela luz de Ana Luzia De Simoni e pelas projeções e vídeos de Batman Zavarese.
Há, portanto, um jogo de espelhos curioso. A partir de uma rotina de ensaios, surge a trama romana para a derrubada de César, coroada com o seu assassinato, espelhada no palco, por sua vez, nas conspirações contra a diretora.
A diretora configura um dos grandes impasses do artista brasileiro atual e esta é a raiz de diversos conflitos do grupo. Ela está fazendo sucesso na televisão, com uma trama trivial de novela que lhe rende capas de revistas de fofocas, porém gostaria de ter tempo para se dedicar de corpo e alma à montagem do grupo… Naturalmente, a certa altura, ela se sente traída por todos, assim como todos se sentem incomodados com a extensão do seu poder.
Para Gasparani, a cisão do sujeito na sociedade do nosso tempo, fatal para Clift, não se limita ao quadrado do palco – todos são atingidos por ela, na medida em que ela nasce da imensa solidão de cada indivíduo, dentro de um jogo social que aposta tudo na guerra ao outro. A solidão está com Júlio Cesar, patente na frase que Shakespeare lhe atribui na hora da morte: “Até tu, Brutus?” A solidão está na companhia de teatro – apesar do nome companhia supor união…
Assim, a arte precisa buscar uma saída. E a entrega à arte sugere formular a busca de um caminho de libertação essencial para a espécie. No final da peça da companhia, a construção de uma obra comum permitiu a superação do egoísmo segregado pela solidão, levou à derrota da competição.
Então, palco e plateia se irmanam, se reconhecem. A arte do monstro, afinal, alcança um efeito oposto àquela velha arte do monstro sagrado: em lugar de incitar cada um a se isolar no culto ao divo instantâneo do momento, ela conclama a todos para que se reconheçam como mortais, feitos da delicada matéria dos sonhos, obrigados a lutar juntos para que se tenha um mundo melhor. Ok – monstro, na arte, é isto. Um sinônimo? Gustavo Gasparani.
Como Posso Não Ser Montgomery Clift?
FICHA TÉCNICA
Texto: Alberto Conejero López
Tradução: Fernando Yamamoto
Direção: Fernando Philbert
Atuação: Gustavo Gasparani
Cenário: Natália Lana
Figurino: Marieta Spada
Iluminação: Vilmar Olos
Programação Visual: Mary Paz
Participação em áudio: Claudio Gabriel, Cesar Augusto e Isaac Bernat
Direção de Produção: Fabricio Polido
Assistente de direção: João Sena
Realização: Coisas Nossas Produções Artísticas, Prefeitura do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura e Programa de Fomento à Cultura
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO
ESTREIA: 07 de janeiro (sábado), às 20h
TEMPORADA: até 12 de fevereiro de 2023
Teatro: Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto
Rua Humaitá, 163 – Humaitá – RJ (entrada do público pela Rua Visconde de Silva, s/nº, ao lado do nº 292)
HORÁRIOS: 6ª e sábado às 20h e domingo às 19h
INGRESSOS: R$40 e R$20,00 (meia)
VENDAS ONLINE: www.sympla.com.br
BILHETERIA: 6ª a domingo, 1h antes das apresentações DURAÇÃO: 70 min
CLASSIFICAÇÃO: 16 anos
GÊNERO: monólogo
CAPACIDADE: 98 espectadores
Julius Caesar – Vidas Paralelas
SERVIÇO
Temporada: de 12 de janeiro a 12 de fevereiro de 2023
Local: Oi Futuro (Rua Dois de Dezembro, 63 – Flamengo – Rio de Janeiro)
Informações: (21) 3131-3060
Dias e horários: Quinta e sexta, às 20h. Sábado e domingo, às 19h.
Capacidade: 50 lugares
Classificação etária: 12 anos
Duração: 120 min.
Ingressos: R$ 30 (meia) e R$ 60 (inteira)
Venda de ingressos: site da Sympla
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e direção: Gustavo Gasparani
Direção de produção: Claudia Marques – Fábrica de Eventos
Elenco: Cesar Augusto, Isio Ghelman, Gabriel Manita, Gilberto Gawronski, Suzana Nascimento e Tiago Herz.
Equipe Artística:
Cenografia: Beli Araújo
Figurinos: Marcelo Olinto
Iluminação: Ana Luzia De Simoni
Projeções e Vídeos: Batman Zavareze
Direção musical: Gabriel Manita
Assistente de direção: Menelick de Carvalho
Comunicação:
Assessoria de Imprensa: Paula Catunda
Redes Sociais: Rafael Teixeira
Captação de conteúdo e clipes para redes sociais: Daniel Barboza
Design Gráfico: Felipe Braga
Fotografia: Nil Caniné