High-res version

Tradição, invenção, revolução, ato de fé?

Para você, o teatro anda para frente ou vive perdido lá no mais remoto passado? Os autores antigos, celebrados pela tradição, destacam-se mais pelo adjetivo – antigos – do que por sua profissão de fé – autores? A realidade dos edifícios teatrais, com uma cena oposta a uma plateia, agride o clamor por protagonismo da sociedade industrial? É uma cena fóssil?

As perguntas podem parecer recorrentes. Seriam, para alguns céticos, águas passadas, coisas naturais e rotineiras, mas, na realidade, foram impostas pelo nosso tempo, ou pelo ritmo desenfreado da vida a partir do século passado. Na verdade, o mais certo é que, desde o eclipse social da arte do palco, especialmente forte a partir do final dos anos 1950, este questionamento do teatro  se tornou agudo. Em resumo, diante da multiplicidade incrível das formas expressivas difundidas na sociedade, o teatro passou a ser questionado profundamente por causa do seu jeito rústico de ser. 

Sim, para muita gente o debate é velho como Augusto Comte – segundo o positivismo, o teatro seria uma arte inferior, velha e bolorenta, por condicionar a presença inefável da poesia ao peso mesquinho da carne. E não são poucos os poetas que já brandiram contra o palco esta reprovação. Porém, sectarismos filosóficos à parte, importa ver como a vontade de falar e a pulsão de presença, motores do mundo virtual, parecem querer empurrar as convenções do teatro para sarcófagos ou museus.

Existe um dogmatismo populista enganoso, muito difundido em segmentos da esquerda, inclinado a afirmar a universalidade democrática da arte. Quer dizer, segundo este pensamento, toda e qualquer pessoa seria artista, como se Molière, Mozart, Grande Otelo, Bibi Ferreira ou Tônia Carrero fossem amostras de uma condição comum às multidões. Não é verdade, bem o sabemos: todo o ser humano é uma existência sensível e deve ter direito pleno ao cultivo e à expressão de sua sensibilidade. Mas isto não significa que tal capacidade seja ou precise ser uma manifestação requintada de arte. Em geral, ela é apenas uma forma de expressão, com todo o direito de aflorar. Mas esta universalidade expressiva não nos torna, a todos, gênios das artes. Artistas são artistas.

Além do tema delicado do talento – como poderíamos explicar resumidamente o fenômeno magnético daquelas pessoas dotadas desde o nascimento de dons requintados para o trabalho de arte? – há o problema da vocação, o desejo de aperfeiçoar, decididamente, os dons naturais. O artista nasce com determinado talento, mas isto não basta para se tornar artista. Ter ouvido absoluto ou dons requintados de oratória, presença ou acuidade plástica não bastam em si. Para o artista brotar e acontecer, é preciso um pouco mais, é preciso que ele não resista ao seu talento, mergulhe na vocação, não veja prazer em viver fora de sua arte… e tenha espaço social de formação e de manifestação.

Há mais complicação. No nosso tempo, a produção de arte frequentemente se tornou uma peça automática numa esteira acelerada de produção. Vários teóricos, intelectuais e artistas  começaram a ver este “fantasma” da arte ainda no século XIX, quando o debate opunha ainda apenas arte elevada (do espírito, da academia), contra arte inferior (do corpo, do rebolado, do populacho). Mas, convenhamos, naquele momento a trama ainda era singela!

No século XX, com a consagração das massas como realidade de consumo, o debate esquentou – boa parte da produção de arte passou a ser vista apenas como formas automáticas de embrutecimento das pessoas, como se elas estivessem num estado de pureza a ser perdido e como se estas formas mecânicas e baixas não sustentassem qualquer grau de trabalho sensível na sensibilidade de suas pobres “vítimas”.

Ainda que estas formas “industriais” da arte cumpram uma função social relevante, configurem lugares sociais de expressão e de diálogo e promovam uma elaboração sensível do universo social, a tradição da esquerda insiste em qualificá-las como mecanismos de alienação – ou seja, de evasão da realidade social concreta. A elas, estariam antepostas as formas engajadas, quem sabe perfeitas, aquelas nas quais a diversão apareceria domada pelo desenvolvimento do espírito crítico. Sim, é platonismo…

Com certeza o assunto rende pano para muitas cortinas, bambolinas e tapadeiras: pode ser inesgotável, se o ponto de ouro da perspectiva não se inclinar ao infinito. Ou seja, não se trata de discussão para cabeças feitas, repletas de ideias cristalizadas, velhas como o teatro, mas, antes, de um estudo para aqueles que lutam pelo pensamento livre.

Uma constatação, no entanto, deve unir gregos e troianos e impedir a construção de cavalos de Tróia contra improváveis inimigos. Para a vitalidade de nosso teatro industrial de hoje, ali onde ele existe, certas práticas se tornaram essenciais. No interior do intrincado jogo de trocas e de dependências que estrutura a vida social de nosso tempo, onde a autossuficiência se tornou total impossibilidade, o teatro industrial (ou comercial) precisa de primos inquietos ao seu redor, para obter, de tempos em tempos, energia vital. E se renovar. 

Quer dizer – o teatro rotineiro, pedestre, precisa do teatro de investigação. Precisa daqueles sacerdotes da arte dispostos à dedicação mais profunda e sublime ao estudo da linguagem, seres livres para experimentar e criar.

Fotos: Layra Guimarães e Clayton Leite

No Rio, há um centro de fundamental importância para o estudo e a experimentação da linguagem teatral: o Studio Stanislavski, dirigido por Celina Sodré.  A partir desta semana, no Espaço Cultural Sérgio Porto, três peças arquitetadas pela equipe demonstrarão a força das pesquisas desenvolvidas – Bar Planetário Bergman, Sofia e Seus Doze Analistas e Matrioshka Polifônica. A temporada irá até 11 de setembro – vale se programar para não perder.

O evento integra a comemoração dos 30 anos do Studio, uma trajetória marcada por múltiplas realizações, destacando-se a criação de uma escola de formação, o Instituto do Ator, em 2008, e a proposição do Projeto Cultural Lapa Mundi. A dimensão precisa do alcance das pesquisas realizadas pelo coletivo fica bastante evidente quando se considera o desenho do projeto. O cálculo é generoso, pretende esmiuçar os fatos da linguagem teatral e, ao mesmo tempo, trabalhar a inclusão social.

Assim, as três peças em cartaz integram o Lapa Mundi, mas o projeto vai além, com vários segmentos de atuação – Lapa à Mostra, Lapa na Tela, Grupão Grotowski e Oficinas. O objetivo principal é a difusão cultural; procura-se a interlocução com os moradores da Lapa e áreas vizinhas, artistas estudiosos e em formação, pesquisadores, estudantes, enfim uma comunidade dotada de interesse pela obra de Stanislavski e de Grotowsky.

Qual o diagnóstico exato a fazer?  Sem dúvida se trata de uma aposta direta na valorização do teatro, associada a uma busca para a consolidação de referências sociais densas a respeito da arte teatral hoje. O requinte chega ao ponto de propor reuniões de estudo abertas, online, no youtube, para o estudo do percurso de Grotowski: é o Grupão Grotowski

Foto: Layra Guimarães 

Note-se uma peculiaridade interessante – o foco das atividades é o trabalho do ator. Assim, em Bar Planetário Bergman, a cena se faz em estilhaços, fragmentos, movidos por atores, através de cenas inspiradas em filmes do cineasta. A concepção do espetáculo nasceu de um texto de Grotowski, O Bar Planetário é um Lugar Muito Interessante, de 1978. A cena reúne 14 atores e conta com música, composições de Antonio Sodré, tocadas por ele ao violão e Raisa Richter ao piano. 

Foto: Layra Guimarães 

Já em Sofia e seus Doze Analistas a inspiração nasceu de  um conto de Clarice Lispector, dedicado à narrativa da paixão de uma menina por seu professor. A construção literária levou à concepção de um monólogo apto a fazer do espectador o analista da personagem – uma incursão no debate a respeito da ideia da plateia participativa.

Foto: Layra Guimarães 

Um outro eixo literário move as engrenagens de Matrioshka Polifônica: personagens de Dostoievski estruturam a trama, que incorporou ainda trechos de Tolstoi e Tarkovski, numa espécie de balé teatral russo. A inclusão de textos da autobiografia de Anna Dostoievskaia, Meu Marido Dostoievski, ofereceu um fio narrativo estratégico para a ação cênica.

Os estudos de interpretação aqui acontecem sob o signo da intensidade, uma alquimia requintada inclinada a combinar fluxo interior e fisicalidade pulsante. Atuação e cena professam absoluta simbiose, a dramaturgia é cena, a autoria nasce de textos convencionais para se tornar invenção cênica. A partir das concepções cênicas da diretora, marcadas por extrema plasticidade, esmerado pensamento a respeito da luz e estudos delicados de ritmo a partir da música, a oportunidade rara é a de vivenciar jogos profundos entre o ser e o espaço, um tema crucial para a sociedade brasileira hoje.

Foto: Layra Guimarães 

Focalizar interioridades humanas em estado de suspensão, tensas ou dilaceradas, cercadas por ambiências indiferentes ou hostis, pode ser um ato estratégico, a sugestão de um lugar de sensibilidade e de pensamento social desafiador para a atualidade em geral. Mas, sem dúvida, a proposta soa particularmente forte no caso brasileiro. 

Sim, trata-se de um teatro de perguntas, dedicado à mais completa inquietude e à busca dos valores mais profundamente humanos. Com certeza a cena está longe do balcão de compra e venda da arte, mas, com mais certeza ainda, a cena oferecida indica um caminho, até mesmo para os balcões e para os mascates do templo teatral. Por isto, é fundamental ir ver, ir rezar teatro.

O caminho sugerido é a devoção ao fazer – pois, se a reza teatral de tantos se tornou uma rarefeita ladainha, ainda assim o oficiante desnorteado e perdido de si pode respirar fundo e mergulhar, desde que seja capaz de entender a grandeza de atos de fé no teatro, como estes assinados por Celina Sodré. 

Foto: Layra Guimarães 

Serviço:

 Bar Planetário Bergman 

Dias 26, 27 e 28 de agosto e nos dias 9, 10 e 11 de setembro.

1h45 de duração

Sextas e sábados às 20h e domingos às 19h.

Sofia e seus Doze Analistas

dias 27 de agosto, 3 e 10 de setembro, 25 minutos de duração
sábados às 18h.

Matrioshka Polifônica 

dias 2, 3 e 4 de setembro, 50 minutos.

Espaço Cultural Sergio Porto

Rua Humaitá 163, Humaitá, Rio de Janeiro 

institutodoator.rj@gmail.com
No Instagram: @institutodoator

Ficha Técnica:
Bar Planetário Bergman
Direção, figurinos e espaço Celina Sodré
Assistência de Direção Raíza Rameh
Produção Executiva Jonyjarp Pontes
Assistência de Produção Aléssio Abdon
Assistência de Figurino Thaís Frossard
Composição e Piano Raisa Richter

ELENCO
Aléssio Abdon
Amanda Brambilla
Branca Temer
Bruna Felix
Carolina Exaltação
Henrique Gusmão

Jonyjarp Pontes
Layra Guimarães
Maria Marinho
Mariana Rosa
Michael Sodré
Raisa Richter
Rogério Klein
Tássia Leite

MÚSICOS
Aaradelfa Wrede
Antonio Sodré
Raisa Richter


MATRIOSHKA POLIFÔNICA
Direção Celina Sodré
Assistência de Direção Layra Guimarães
Composição e Piano Raisa Richter
ELENCO
Branca Temer
Bruna Felix
Carolina Exaltação
Conrado Nilo
Jonyjarp Pontes
Mariana Rosa
Raíza Rameh
Raisa Richter


SOFIA E SEUS DOZE ANALISTAS
Direção Celina Sodré
Assistência de Direção Aléssio Abdon
Produção Executiva Valquíria Oliveira
ELENCO
Valquíria Oliveira

Realização Studio Stanislavski, Instituto do Ator e 
edital FOCA – Programa de Fomento Carioca, da Secretaria de
Cultura da Cidade do Rio de Janeiro.

Fotos: Layra Guimarães e Clayton Leite

Foto: Layra Guimarães