A delicada magia do viver
Dizem que o teatro brasileiro é mulher. Será? O fato é bem curioso, pois alguns episódios ligados às primeiras práticas teatrais realizadas na terra parecem indicar que o acesso feminino à arte não foi nada fácil – e nem aconteceu cedo na história. Ou seja: para chegar neste poder atribuído hoje, a luta foi insana. Isto quer dizer que as mulheres são fortalezas inacreditáveis… Não?
Bom, na minha opinião, o teatro catequético praticado pelos jesuítas nos territórios da colônia não integra a história do teatro brasileiro. Não era teatro. Defendo um ponto de vista bem objetivo: o que os jesuítas faziam eram práticas para teatrais, uso do teatro para a conquista da terra; o objetivo era adensar a colonização e promover a catequese indígena (Ou a sua conversão? Ou a sua extinção?). Tampouco exisitia Brasil naquele tempo…
Vale frisar também que estas práticas eram eventuais, circunstanciais, não eram contínuas, nem mesmo surgiram locais permanentes para a sua realização. Elas aconteceram sobretudo nos séculos XVI e XVII, depois sumiram. E dividiam as opiniões dos religiosos: havia um partido contrário às práticas teatrais, considerando-as nocivas para a formação dos seres em geral. Sim, estes eram favoráveis ao extermínio simples, direto. Logicamente, mulheres não integravam os elencos jesuíticos. No século XVIII, os jesuítas foram liquidados, a ordem foi extinta, a favor do poder do rei.
Mas no próprio século XVIII, no entanto, com a mineração e o adensamento da ocupação urbana, surgiram as primeiras casas da ópera – edifícios teatrais infelizmente ainda bem pouco estudados. Muitas pesquisas devem ser feitas para que se chegue ao conhecimento mais objetivo deste processo. Sabe-se que os poucos elencos localizados, semiprofissionais ou simplesmente amadores, contavam com mulheres. E todos eram mal vistos. Mas, para o fim do século, a rainha D. Maria I proibiu o acesso feminino ao exercício da função.
Portanto, se os atores em geral não gozavam de prestígio na sociedade, o ato real provocou a cristalização de mais uma camada de preconceito para o caso das atrizes. Surgiu por esta época a associação das artistas à prostituição, estigma forte persistente até o século XX. A restrição social chegou a um tal ponto, legalmente, que as atrizes estiveram obrigadas a apresentar a mesma carteira da saúde pública então exigida das prostitutas, uma forma de controle sanitário que pretendia agir para conter a disseminação das doenças venéreas. O documento ficou conhecido por um nome bem contundente: carteira de puta. A prática esteve em vigor no século XX.
Imagine-se, nestas condições, a batalha existencial necessária para uma mulher ser atriz no Brasil. O investimento era alto – começava na troca do nome, pois as famílias não aceitavam ter os seus sobrenomes anunciados nos cartazes, e prosseguia nas fugas, humilhações, parcos rendimentos e na dureza da vida mambembe.
Aliás, não precisava ser de família rica ou nobre para viver os dissabores, nas classes mais modestas a escolha de ser artista também repercutia mal. Basta passar os olhos na vida de Dercy Gonçalves (1907-2008) para ter uma dimensão objetiva da resistência familiar contra o descaminho da arte.
Logicamente, também os homens enfrentavam uma maratona de preconceito: a batalha de Leopoldo Froes (1882-1932) para ingressar na carreira atesta a dimensão do problema social. Se a família de Dercy era modesta, Froes nasceu na próspera elite de Niterói e depois de se tornar advogado deveria chegar no mínimo a juiz. Para contornar a pressão do pai, ele iniciou a carreira em Portugal.
Estes fatos aconteceram ontem, digamos. Há algum tempo, talvez o espaço de uma geração, dá para anunciar em casa sem conflitos maiores a deliberação de ser atriz ou ator. Ser expulso de casa ou excomungado virou acontecimento de exceção. É até bem curioso observar um outro fato – agora, na nossa época, se consolidaram mitos, auras e celebrações ao redor da arte. Tornou-se um valor positivo aparecer nos palcos e nas telas.
Contudo, tais aclamações apresentam a fina espessura de sua existência recente, são ocas. A condição de artista na sociedade brasileira está ainda longe de ser um banho de luz em céu estrelado. A grande maioria dos artistas brasileiros depende, para sobreviver, do exercício de uma segunda profissão, mais estável e mais consolidada no mercado.
Ou seja – a identidade profissional do artista brasileiro, em particular dos artistas de teatro, é dupla, no mínimo. A sua vida é de dupla jornada. Felizmente, não se atribui mais às atrizes o vínculo com a prostituição. No mundo inteiro, o movimento de combate ao assédio e de defesa da integridade do corpo feminino tem envolvido a profissão numa nova condição de respeitabilidade. Contudo, sobreviver diretamente do trabalho de arte no mercado brasileiro continua a ser um grande desafio.
Analisar os dados do mercado não é tarefa fácil – não contamos com recenseamentos profissionais habituais, uma medida que seria preciosa para pensar a arte e desenhar políticas e reivindicações para o setor. A impressão geral, muito embora não fundada em pesquisas, é a de que o teatro brasileiro possui um contingente de atrizes superior ao de atores. E elas ilustram o peso de uma enorme luta histórica: são monumentos sensíveis espetaculares.
Estas artistas tendem a ser empreendedoras – possuem notável capacidade de liderança, concebem e realizam projetos, mobilizam elencos, coletivos e grupos de trabalho. As mulheres, por sinal, estão presentes nas diferentes funções profissionais arregimentadas pelo palco, artísticas e técnicas. Precisam, com certeza, conquistar mais postos de liderança política e administrativa, único território em que permanecem com baixa figuração.
Diante deste quadro, vale perguntar diretamente: por que a violência social contra a mulher é, na sociedade brasileira, uma realidade tão difícil de ser reduzida? Ainda que o teatro não seja uma forma de corretivo social, não seja uma panacéia jesuítica, nem funcione diretamente contra problemas tão profundos, com certeza a difusão desta arte feminina pode atuar a favor de mudanças significativas da sensibilidade social.
O Brasil precisa de poesia, precisa de arte. O país precisa de uma ampliação revolucionária do acesso da população à produção de arte. Não se trata de catequese ou de negação da arte popular, um campo riquíssimo de múltiplas expressões. O caso é, na verdade, de diálogo – pois se existe amplo acesso à produção popular, das festas, danças, representações, não há a recíproca, o mercado de arte mais formal tende a permanecer fechado no seu estreito círculo de difusão.
Neste sentido, alguns trabalhos teatrais adquirem uma relevância absoluta e precisam transbordar dos palcos da zona sul, no caso carioca, para os diferentes limites urbanos e suburbanos. Considere-se, na questão, a linha de trabalho de atrizes empreendedoras como Sara Antunes ou Elizabeth Savalla, por exemplo, grandes exemplos de potência propositiva. Espetáculos como Sonhos Para Vestir, Dora ou A.M.A.D.A.S. traçam uma panorâmica importante a respeito da mulher na sociedade brasileira. Mas há mais, muito mais, possuímos um tesouro inesgotável de criações femininas de extrema força poética.
A poesia, por sinal, é o elemento que configura toda a cena de um espetáculo absolutamente impactante, Cora do Rio Vermelho, um solo magistral da jovem atriz Raquel Penner, estreia do próximo dia 12 no Teatro Poeirinha, em Botafogo. É de tirar o fôlego. Não deixe de ver por nenhuma razão – vai fazer diferença na economia da sua alma.
Na pandemia, o espetáculo foi apresentado em temporada virtual e cumpriu carreira de notável sucesso. A gravação foi feita no lindíssimo Teatro Municipal João Caetano, de Niterói, escolha de rara felicidade, inclinada a elevar a beleza da composição cênica a um patamar comovente: uma joia reluzente de palavras, emoções e imagens acontecia em cena.
A concepção do projeto nasceu do desejo da atriz de se apresentar só em cena, sob uma partitura forte; o tema eleito de saída foi o universo feminino. Ao reler a obra de Cora Coralina (1889-1985), uma das mais relevantes vozes poéticas brasileiras, a atriz encontrou o veículo ideal para a expressão do seu desejo.
O resultado é imperdível. Se Cora Coralina pode ser definida como uma mulher libertária, a definição precisa situar um ser profundamente arraigado à vida rasteira, cotidiana mesmo, do interior do país e do interior da casa. Doceira por profissão, a poeta contemplava o infinito nas miudezas ao seu redor. Por isto a sua poética aponta para uma mágica potente, a transmutação da banalidade cotidiana. Raquel Penner consegue traçar diante dos olhos atônitos do espectador este arrebatamento, revelar a vida em abismo gerada pela presença de olhos-de-arte na mesmice do dia a dia.
A beleza irresistível da cena nasce de uma equipe de criação particularmente feliz. Leonardo Simões assinou com excelência a dramaturgia, uma combinação dos desejos da atriz com recortes biográficos e poemas da autora. Isaac Bernat harmonizou a atuação com materialidades simples, de interiores rústicos e domésticos, rotineiros e naturais; com notável maestria formal, enredou gestos da vida com gestos de arte. A direção sustenta um diálogo intenso com os traços e cores da cenografia, dos figurinos e adereços de Dani Vidal e Ney Madeira. O quadro de cena fluído como as paisagens da vida escoa direto para o coração da plateia graças à luz, sublime teia de emoções, de Ana Luiza de Simoni.
Na verdade, tem mais, muito mais: as camadas poéticas do palco são múltiplas, há na cena um caleidoscópio existencial surpreendente, um arranjo teatral multiforme, uma sugestão delicada do rodopio interior associável ao jeito-mulher. Em lugar de descrever, na tela ou no papel, importa mesmo é ir ver, entregar-se a esta grandeza, receber o banho abençoado de arte que estrutura a cena.
Pois não é nada fácil, neste mundo de sombras densas do presente, contar com a chance de mergulhar numa atmosfera de pura poesia, requintados meneios dedicados a ver a vida com a leveza dos sonhos. É coisa para sair do teatro com a alma lavada, como se mãos ribeirinhas atentas tivessem sacudido o tecido do seu ser. Coisa de mulher, vamos combinar. Estará lá, ao seu alcance, no Poeirinha, afinal um teatro de mulher, uma das grandes forças do teatro brasileiro do nosso tempo. E, pairando no ar, fica a pergunta. Será que o teatro brasileiro é mulher??
Cora do Rio Vermelho
Ficha Técnica
Idealização e atuação: Raquel Penner
Direção: Isaac Bernat
Dramaturgia: Leonardo Simões
Produção executiva: Clarissa Menezes
Cenografia, Figurino e Produção de objetos: Dani Vidal e Ney Madeira – Ney Madeira Produções Artísticas
Cenotécnico: André Salles
Tingimento, Bordado e Tratamento de objeto: Dani Vidal e Ney Madeira
Costureira: Aureci da Cunha Rocha
Costureira de cenário: Alessandra Valle
Pintura de arte: Paulo Campos
Carpinteiro: Paulo Sá
Iluminação: Ana Luzia de Simoni
Direção Musical e Trilha Sonora: Aline Peixoto
Percussão: Fabiano Salek
Vozes: Aline Peixoto, Chiara Santoro, Clara Santhana, Cyda Moreno e Soraya Ravenle
Operação de som: Rafa Barcelos
Músicas:
“Aponte” (Lan Lanh/Nanda Costa/ Sambê)
“Maria, Maria” (Milton Nascimento)
“Simplicidade” (Jaime Alem)
Visagismo: Mona Magalhães
Direção de movimento: Luiza Vieira (cenas “Mãos” e “Todas as vidas dentro de mim”)
Fotografias e Designer gráfico: Bianca Oliveira – Estúdio da Bica
Mídias sociais e Planejamento de divulgação: Lyana Ferraz
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)
Realização: Núcleo de Ensino e Pesquisa de Artes Cênicas – NEPAC
Serviço
Temporada: 12 a 29 de maio
Teatro Poeirinha: Rua São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro/RJ
Telefone: (21) 2537-8053
Dias e horários: quinta a sábado, às 21h, e domingo, às 19h.
Ingressos: R$ 25 (inteira) e R$ 12,50 (meia-entrada).
Duração: 50 minutos
Lotação: 50 pessoas
Classificação Etária: 12 anos.
Redes: Instagram: @coradoriovermelho
Youtube: https://m.youtube.com/channel/UCayoCIzVQl0-CIpQPVRYzrQ
Assessoria de imprensa Racca Comunicação Rachel Almeida