A vingança do Artur: o golpe no vazio
Era uma vez um país fervilhante. O povo sofria, mas vivia alegre. Todos adoravam dançar nas ruas, rebolar até o chão e rir. Tais hábitos, ainda que fervorosamente cultivados pelo povo, geravam inúmeras discussões. Pois – imagine-se a cena! – o saracotico desenfreado volta e meia saía das ruelas e becos e tomava de assalto as cenas teatrais!
Do alto de suas cátedras ilustres, os intelectuais se dividiam. Um grupinho, amaldiçoado para todo o sempre, achava graça e coerência nas estripulias populares. Incorporavam os meneios nos seus textos e volta e meia levavam tremendas bordoadas letradas, acusados de estimular o tró-ló-ló, as bambochatas e as pernas nuas.
O grupão da maioria, no lado contrário, se desdobrava para estimular o cultivo dos valores mais elevados da cultura ocidental. Inspiravam-se nas nobres letras da França e até mesmo de Portugal. Não esmoreciam nunca, às voltas com o propósito de civilizar a terra selvagem, liquidar a irreverência desbragada, instaurar a elevação moral das melhores páginas. Sobretudo no teatro, necessitava-se de grande poesia, diziam.
Tal empresa bandeirante, contudo, sofria muitos reveses. O primeiro revés, talvez o mais devastador, surgia diretamente da própria ideia de projeto civilizador: a cultura, ali, precisava ser pregação de mentes iluminadas, projeto de grandes indivíduos, portanto, uma imensa solidão. A consequência direta? Ora, por ser prática individual, isolada, a cultura não se constituía nem como instituição, nem como política de Estado e vivia à deriva, nos braços do acaso, de cérebro em cérebro, à semelhança dos bêbados poetas das ruas, quicando de bar em bar.
O segundo revés, em decorrência, se espalhava mais indomável do que tiririca em terreno baldio – até mesmo para o populacho rebolativo, cultura de verdade, com pompas e dourados, só podia ser a estrangeira, pois esta, sim, aparecia sob a qualidade de construção orgânica, densa em si, longe da aparência de desvario pessoal… Às vezes, era até incompreensível, já que lidava com temas bem distantes.
Logo, as elevadas concepções eruditas locais eram desprezadas, vistas como blefes ou pobres simulacros – o que, a bem da verdade, em muitos casos, elas eram, pois o modelo ideal da elevação vinha lá de fora. E os grandes intelectuais e artistas da nação, se conseguiam conceber uma produção de alto espírito, para sobreviver precisavam ter ocupações outras, decentes, distantes de sua arte. Se os populares conseguiam algum sucesso com suas pobres plateias, os eruditos singravam o vazio, com plateias chiques invisíveis ou quase. Um grande preconceito contra o trabalho nas artes foi se consolidando, em toda a sociedade.
O tempo foi passando e, ainda que o verniz do embate fosse renovado, a tinta do fundo persistia – no teatro, ao longo de séculos, o maior drama desta trama foi sempre a vida precária do autor nacional. Resultado: nunca existiu no teatro brasileiro um dramaturgo sequer que vivesse de sua arte. Todos sempre tiveram “outra profissão”. E esta outra foi – ou quase – o meio de sustento. Até hoje esta condição permanece em vigor.
É para espantar qualquer mortal o ato de conferir por quantos empregos Artur Azevedo (1855-1908) se desdobrou para sobreviver. Foi funcionário público, colega de Machado de Assis (1839-1908), e, segundo os biógrafos, trabalhava a sério na repartição. Deu aulas, militou na imprensa em múltiplas funções e inúmeros veículos, escreveu e montou peças, fez traduções… Morreu cedo, claro. E o seu teatro, grande em todos aspectos, quase que morreu com ele… Nós não temos qualquer rotina de montagem de Artur Azevedo! Milhares (ou milhões?!?) de brasileiros desconhecem a sua obra!
Aliás, destaque-se – impressiona constatar a qualidade dos combatentes contra o teatro de AA. Na sua época, os ataques, às vezes ferozes, nasciam do seu amor à expressão das ruas, à irreverência, ao riso franco. Depois, com os modernos, à associação com o popular se juntou a aderência ao teatro do primeiro ator. A arte de Artur Azevedo nascia também de um palco, um tipo de interpretação brejeira e maliciosa, tudo aquilo que o teatro moderno quis apagar. Azevedo escrevia tendo em mente os sensacionais atores que estavam ao seu redor e isto passou a ser crime também.
Surge, aí, um dado importante para se pensar – o teatro moderno não se preocupou em fortalecer a dramaturgia nacional. Apesar de Nelson Rodrigues (1912-1980) figurar para muitos como integrante decisivo da proposição do moderno, logo ele se tornou maldito, apanhou feito burro ladrão. E em São Paulo, no TBC, não obteve reconhecimento: era um expressionista menor, nas palavras de uma liderança teatral da época. Aliás, a vida foi duríssima também para Jorge Andrade (1922-1984). E a adesão do TBC aos textos de Abílio Pereira de Almeida (1906-1977) se inclina mais para uma “solidariedade” de elite do que para o reconhecimento de sua obra.
O ponto mais curioso desta estranha dinâmica tropical nasce exatamente da existência de um vínculo profundo entre o primeiro momento do teatro moderno e o grande autor-poeta. Para os primeiros modernos, era fundamental ter em cena a poesia das palavras. Ela seria a arma decisiva contra o ator-primadona. Esta necessidade histórica foi fortíssima. O teatro moderno preciava ter uma dramaturgia moderna para chamar de sua, como Jouvet (1887-1951) recomendou várias vezes, quando esteve aqui no Brasil.
Aliás, a rigor, é próprio do teatro que cada geração teatral “faça” o seu dramaturgo, descubra-o, aclame-o e estenda o tapete vermelho para as suas peças. O teatro precisa ter as suas palavras, ter voz, sintonia mental com o seu tempo – ou simplesmente não é, não acontece. Uma classe teatral que não zela por seus autores, que não cultiva os seus poetas, assina a própria sentença de morte. Contudo, por aqui, a classe e a sociedade se fazem de surdas, não brigam para construir a sua voz como expressão autoral. Os autores lutam sozinhos.
Agora terminou a pandemia – dizem – e estamos de volta aos teatros. As casas estão bastante cheias. É gratificante, arrebatador. E a pandemia nos trouxe o autor nacional! Num levantamento rápido dos espetáculos oferecidos ao público carioca, a novidade é a presença de autores brasileiros em larga proporção. Puxa vida, Artur Azevedo, quem diria!
É bem verdade que muitos textos em cena – nos teatros e ainda no formato teatro-on – apresentam a assinatura patrícia e um pouco mais: os autores com frequência precisam se produzir. Ou não chegam à ribalta. Portanto, ainda estamos longe do reconhecimento espontâneo. Este é um limite para superar. Algumas medidas políticas poderiam ampliar e consolidar este movimento. No Rio, precisamos de uns dois teatros expressamente dedicados ao autor nacional. De que adianta dar nomes de autores nacionais aos teatros se as peças dos patronos são ignoradas?
Além de montagens, a cidade precisa contar com múltiplas atividades de difusão das letras teatrais. Leituras dramáticas, concursos de dramaturgia, seminários, laboratórios, exposições e até mesmo uma editora especializada. Afinal, tanto tempo depois da polarização que excomungou Artur Azevedo e marcou o século XIX, a dramaturgia de hoje é pura multiplicidade e precisa ser reconhecida. A riqueza de sua voz é o maior argumento para que aconteça em plena liberdade.
Liberdade, vamos combinar, é o ar do teatro. E o que vem a ser liberdade, no caso do palco? Encontrar a rua, flertar com a torre de marfim ou nada disto? Ok, o assunto é longo demais, vamos resumir. Ela pode ser, por exemplo, o roteiro de Marcia Abujamra para O Veneno do Teatro, espetáculo online em homenagem ao gênio de Antônio Abujamra (1932-2015), dirigido pela autora.
A palavra estará sob o comando do notável ator Elias Andreato – o que significa que a emoção atingirá uma voltagem muito elevada, puro amor. Amor antigo, pois o espetáculo tem história. Na versão original, ele foi encenado pelo próprio homenageado, com estreia em 1996. Portanto, há uma longa história neste veneno. A memória do espetáculo e a figura mítica de Abujamra foram incorporadas ao texto. O efeito deve ser vertiginoso, vale conferir. Será agorinha, dia 6 de abril, em apresentação gratuita, seguida de debate. Abujamra, diretor moderno, foi um dos nomes mais irreverentes do teatro nacional, um grande iconoclasta., capaz de acionar num átimo um vendaval de emoções.
Um tema bom para debater nasce deste ponto: no teatro brasileiro, desde o século XIX, há uma forte presença do sentimento, da emoção, ao lado de um bom eclipse da racionalidade e do conceito. Talvez por isto a presença do corpo rebolativo – tivemos até mesmo um gênero pejorativamente apelidado de rebolado – se tenha feito por aqui com tanta força. Somos emoção em estado bruto, razão ausente.
Meu Coração (ou de carinho e de sexo), novo texto do inquieto autor João Cícero, também visita esta praia. Importa destacar que ele é um dramaturgo de perfil no mínimo curioso: é um jovem talento de projeção na academia. Assim, se este teatro pós-pandemia está materializando com força uma espécie de vingança sutil de Artur Azevedo, com tantos autores nacionais em cartaz dispostos a dialogar com a cicatrização da peste, aqui a coisa ganha uma projeção sui-generis.
Pois justamente o tema do texto, o amor, materializa a área mais querida dos dramaturgos do velho teatro, para encanto da plateia de plebeus da época. Sinal das agruras da cena brasileira, o autor dirige a montagem e lidera a produção. Nesta retomada da programação teatral da Sala Baden Powell, estarão sob as luzes momentos fortes da vida de um casal popular, ao longo de anos.
Não se trata, contudo, de um casal qualquer – Wanda e Claudemir são figuras populares, envolvidas numa relação clandestina e acidentada, com direito a violência, carinho, preconceito, solidão, desejo e medo. A história se volta para um universo social empobrecido, para acompanhar neste cenário uma trajetória afetiva vinculada às questões universais do amor.
Pois bem. Talvez se possa dizer que reside aí, no território do afeto, neste grande espaço, o lugar habitado pelas almas brasileiras. Isto não significa localizar uma escala de valores humanos, graus melhores ou piores do ser, mas apenas um modo de existir de absoluta solidão. Amamos demais porque somos sós. Nossa solidão é ditada por nossa miséria social – sim, este é o resultado do processo colonial – cada um conta consigo apenas, no máximo tem o leque da família.
Aqui as formas institucionais não vingam, não agregam, a não ser num grau mínimo, incapaz de superar o estado de solidão do indivíduo. O outro, então, antes de ser interlocutor, é inimigo. Logicamente, o nível de violência social é elevadíssimo. A violência e a brutalidade são formas negativas de afeto. O outro só pode existir para ser negado.
Neste lugar as pessoas precisam existir como ilhas para conseguir sobreviver. Sós, desamparadas, ilhadas, elas se matam umas às outras por dá cá aquela palha. Não é de espantar que o teatro, templo da palavra, do diálogo e do reconhecimento do outro, tenha imensa dificuldade para se afirmar, mesmo quando se dedica a reconhecer o embate dos corpos e as tramas de afeto. Certamente nasce daí o gosto amargo do sucesso que Artur Azevedo deixava transparecer aqui e ali nos seus escritos. Aderir aos corpos rebolativos, à pulsação das ruas e aos afetos exacerbados não lhe trazia a sensação de vitória, mas, talvez, apenas a antevisão de que a obra do teatro, aqui, era mais absolutamente efêmera, mais descartável do que os rápidos folguedos de rua do eterno carnaval nacional.
FOTO: Elias Andreato, O Veneno do Teatro, divulgação.
FOTO: Coristas, Teatro Recreio, 1924. CEDOC/Funarte. Observe-se a grande irregulatidade da linha de coro, o descompasso entre as posições dos corpos e até mesmo as diferenças dos figurinos.
O VENENO DO TEATRO
FICHA TÉCNICA
Roteiro e direção: Marcia Abujamra
Interpretação: Elias Andreato
Iluminação: Wagner Freire
Edição de Vídeo: Caio Rodriguez Montemor
Produção e administração: Mauricio I. Freitas – produção/administração
Assessoria de Imprensa: Helô Cintra e Douglas Picchetti – Pombo Correio
SERVIÇO
Apresentação seguida de bate-papo: 6 de abril, às 20h
Ingressos: grátis, assista pelo link https://us02web.zoom.us/j/86022686214
MEU CORAÇÃO (ou de carinho e de sexo)
FICHA TÉCNICA
Texto e direção: João Cícero
Elenco: Carlos Augusto Marinho e Paula Furtado
Direção de arte: João Dalla
Iluminação: Rafael Sieg
Operação: Sandro Demarco
Trilha Sonora: Márcio Pizzi
Fotos: Sabrina Paz
Assessoria de Imprensa: Júnia Azevedo (Escrita Comunicação)
Produção: João Cícero e Gabriel Garcia
Apoio: Cantina Donanna, Rua Gastro Bar e Casa do Sardo
SERVIÇO
Dias: 8 de abril a 1o. de maio de 2022 – sextas, sábados e domingos
Horário: sextas e sábados, às 19h30; e domingos, às 18h
No dias 22, 23 e 24/4 não haverá espetáculo
Ingressos: R$ 30 inteira. Meia entrada para estudantes e maiores de 60 anos
Vendas na bilheteria do teatro
Local: Sala Municipal Baden Powell
Endereço: Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 360 – Copacabana – Rio de Janeiro
Classificação etária: 16 anos
Duração: 75 minutos
Instagram: espetaculomeucoracao