High-res version

Revolução teatral já!

Vamos ser sinceros – o teatro, no Brasil, está em eclipse. A frase tem um desenho otimista: um eclipse pode ser definido como uma sedação temporária da luz… Então, mãos à obra! O que se pode fazer para conseguir que o teatro dance, feliz, sob os raios de sol geradores da vida?

Ninguém prestou muita atenção até hoje, mas vale destacar uma curiosidade histórica: sempre existiu um conflito feroz entre o palco e o povo. Quer dizer, a coisa, a guerra, sempre aconteceu, mas sob matizes bem variados. Recentemente, depois da aventura moderna, o teatro decidiu em boa parte se tornar uma viagem hermética, segregadora mesmo, pós-moderno. Em lugar de público de teatro, passamos a ter plateias de especialistas teatrais… Naturalmente, a audiência encolheu!

Já se pode imaginar o efeito da escolha na bilheteria. Todavia, nem sempre foi assim, nem sempre existiu esta seleção explícita de espectadores. Se olharmos a história da nossa cena, encontraremos surpresas. Pois, algumas vezes, tivemos até coloridos chocantes ou mesmo um tom inusitado! Por exemplo – de certa forma, o palco já significou liberdade.

Nireu Cavalcanti.

Quando? Ora, no século XVIII, quando ainda nem existia esta entidade jovem chamada Brasil. Segundo depoimentos (raros!) de viajantes, nossos atores de então eram mestiços libertos, quer dizer, negros. Eram comandados pelo tal do padre Ventura – o historiador Nireu Cavalcanti já provou que ele se chamava na verdade Boaventura, Boaventura Dias Lopes. Fiapos de informação sugerem que ele era corcunda, rabequista, regente, animador, ator, empresário e… mestiço! E o mais surpreendente, de toda a história, é que ele, assim como o seu sucessor, Manoel Luiz Ferreira, ficaram ricos com o teatro.

Visão do Largo do Paço, a Praça XV atual, com a Casa da ópera de Manoel Luiz em 1858, desenho de sergio Fagerlande.

A pergunta brota de imediato. Alguma condição poderia fazer um ser humano mais livre na sociedade escravista e racista brasileira do que ser ator? Curiosamente, apesar de ser profissão desprezada, muito malvista pela sociedade, ao longo do século XIX o palco foi se tornando cada vez mais branco. No século XX, com a burguesia paulista pulando eufórica para a cena, a ocupação se tornou chique e os profissionais da arte passaram a se tornar figuras de projeção crescente. Até se tornou viável não esconder o nome da família sob um nome artístico!

E, em resumo, como fica o povo nesta cronologia do tablado…? Vale fazer uma ressalva. Não incluímos na conta a catequese jesuítica: parece evidente que o teatro catequético era um procedimento de dominação política colonial imediata, sem relação direta com a arte, com o mercado de arte ou com a profissão. Não existiu um teatro regular na colônia antes do século XVIII, assim como não existiram centros urbanos fortes antes da mineração. Portanto, deixemos os padres jesuítas entregues às suas devoções e enveredemos pelas nossas.

O teatro que surge no século XVIII, nas casas da ópera, apesar de contar com a frequência da elite e do embrião de classe média que surgia, apesar de se esforçar para reproduzir as modas da cena europeia, não era considerado como expressão nobre das almas. A sociedade carioca crescera, mas continuava a ser aldeã e muito provinciana, ainda não era a corte. Esta nobreza das almas, então, existia sim: andava mais pelas missas, pelos saraus de família, alguma serenata ou seresta.

A rigor, esta prática teatral incipiente espelhava um pensamento filho do século, a ideia de que o palco funcionava como excelente instrumento para educar o povo. A cena deveria iluminar as mentes, uma ideia revolucionária, típica manifestação, justamente, do século das luzes.

Aquarela, Z. Wagener, século XVII, Brasil Holandês, dança ritual de escravos no domingo.

E foi este o motor da expansão do teatro no século seguinte, apoiada, a expansão, por dois grandes poderes, o político e o intelectual. A cena deveria contribuir para domar o populacho. Devia ser escola de boa moral e de melhores costumes. Portanto, se, no início, havia o povo em cena, ele não falava de si, antes se esforçava para tentar difundir as letras cultas. Aos poucos, o perfil da classe teatral foi mudando, mas o espírito civilizador persistiu na cena, como a sua razão de existir.

Contudo, um palco identificado com a verve das ruas e as inclinações populares, não exatamente doutas, começou a brotar por toda a parte, nas feiras, nas praças, nas calçadas. No Rio, ficou famosa a Barraca do Telles, no Campo de Santana, uma das inspirações do teatro cômico do século, referência importante para a gênese da obra de Martins Pena. Logo eclodiram os cafés cantantes e assemelhados.

A partir daí, até o século XXI, um cabo de guerra se instalou: de um lado, doutos ilustrados cultos ou inspirados nas mais avançadas teorias a respeito das engrenagens do palco, brigando a favor de uma cena capaz de educar o país, às vezes com algum sucesso junto às elites, muito embora elas preferissem ver os originais, em Paris. Do outro lado, os bastardos da cena, a expressão imediata e livre, o senso comum, as formas automáticas dos sentimentos, o trólóló-e-pernas-nua aterrorizador dos letrados e amado pelo povaréu.

A guerra continua, claro, apesar de uma parte expressiva do teatro dito popular ter sumido – as montagens de comédias, dramas, dramalhões e até dos clássicos populares desapareceram, são figuras raras. Uma forma atual do paradoxo histórico da cena, cuja alta ambição secreta consiste em suprimir a pulsação mais popular e afetiva dos palcos, pode ser localizada na briga entre teatro de vanguarda x teatro musical. Numa estranha vibração subterrânea, os musicais voltaram, depois de um hiato iniciado por volta de 1961, para a suprema irritação dos adeptos do declamado de alta estirpe.

Há, contudo, sob este percurso histórico surpreendente, um rio-mar de sangue abafado, uma dor que se tenta esconder, uma falha vergonhosa para toda a gente que faz teatro. Talvez esta falha dilacerante possa ajudar a explicar a trajetória estranha do povo no palco do Brasil. É o grande crime da escravidão, uma força anti-humana maléfica difícil de ser encarada. Não fomos responsáveis por ela, mas somos herdeiros diretos de sua inaceitável violência.

Então, polêmicas aparte, muito do teatro que se fez aqui como teatro para educar, moralizar, civilizar, conter, reprimir… foi teatro de dominação racial, especialmente por duas razões: por supor a existência de um homem-indivíduo cidadão brasileiro livre e pleno (ignorando a existência do escravo) e por buscar difundir valores culturais elevados, contraditoriamente, para uma plateia de seres livres, cercada de escravos por todos os lados. Falar de elevação de valores para uma plateia de senhores de escravos sem dar o nome aos bois…?

Humanidade esfacelada, fragmentada, apagada nos seus contornos mais profundos, não, não pode dar bom teatro. Este debate é o mais importante do momento teatral brasileiro e precisa acontecer a pleno vapor se desejarmos conquistar a existência de uma vida teatral forte. Pois, a rigor, mantemos a prática de um teatro civilizador/cultural/de elevação desde o século XIX. Desprezamos ou ignoramos as pulsações populares, apesar de criações potentes assinadas por autores como Ariano Suassuna e Lourdes Ramalho, por exemplo.

Ah… O tema é vasto, precisa ser desdobrado em episódios, com o objetivo de se chegar a uma importante conclusão, basicamente a resposta a uma pergunta simples: ok, fazer o quê? O que seria a revolução teatral necessária aqui e agora? Como levar o teatro a ter força verdadeira, necessária, no cenário do país?

João Roberto Faria.

Há, primeiro, uma tarefa básica. Acabou de ser publicada em belo livro uma excelente pesquisa – Teatro e Escravidão no Brasil, do professor e pesquisador João Roberto Faria. Estudioso do tema ao longo de anos, em especial a partir de sua dedicação ao estudo do teatro no século XIX, Faria escreveu o volume sob um norte muito interessante: verificar se, como sustentaram alguns intelectuais brasileiros, o nosso teatro teria mantido uma distância incômoda diante do drama da escravidão, teria sido omisso. Vale ampliar a pergunta. O teatro brasileiro foi abolicionista, escravista ou muito pelo contrário?

A extensa pesquisa vasculhou os bastidores do teatro profissional e do teatro amador, partiu do Rio de Janeiro para lançar o foco sobre a cena do Rio Grande do Sul, de São Paulo, do Espírito Santo, da Bahia e de Pernambuco, sem esquecer o Ceará, a maior terra abolicionista do país. Após o exame de um pouco mais de cem peças, número considerado elevado pelo autor, e de consultas a variadas coleções de jornais, o estudioso considera que o teatro brasileiro esteve sim mobilizado contra o horror da escravidão.

A rigor, considerando-se a enxurrada de peças escritas, criadas e produzidas ao longo do período pesquisado, 1838 a 1888, talvez a cifra não seja tão alentadora. Além do mais, observando-se que os primeiros atores brasileiros, do século XVIII, eram negros – segundo nomenclatura da época, mulatos – parece muito estranha a inexistência de uma dramaturgia preta, a falta de grupos de teatros formados por negros, dedicados ao teatro preto.

Rugendas (1802-1858), Jogar capoëra danse de la guère, c. 1835.

Um dos muitos dados relevantes reunidos pelo autor aparece no estudo da encenação da peça Como se Fazia um Deputado, de França Júnior (1838-1890), dramaturgo sem militância direta no abolicionismo, mas, conforme atesta o autor, sem dúvida simpatizante da causa, apesar de alguns estudos de recorte político muito estreito, recentes, se engajarem numa injusta tarefa, a de reduzir a visão a respeito da grandeza de França Júnior. A refutação da visão reducionista do dramaturgo é muito bem fundamentada por Faria.

Além das diversas iniciativas alinhadas com a causa abolicionista relacionadas à temporada da peça, a montagem contou com a presença em cena, contratados pela empresa dramática, de figurantes negros – capoeiras, para o segundo ato, e negros e negras para um número final de canto e dança. A escolha, uma opção ousada, foi considerada por um crítico como semelhante à presença de uma nota desafinada, capaz de ferir o ouvido acostumado a requintadas melodias. Levar para a cena gente estranha ao palco soou, para ele, como uma “concessão exagerada ao realismo.” A amostra permite figurar a dimensão do autor, que aceitou a inclusão dos figurantes na montagem, e a escuridão mental ao seu redor.

Esta pulsação espontânea das ruas, mais estudada em relação à música e às danças populares, ainda não foi incorporada aos estudos da teatralidade: não sabemos bem do que se trata, aqui, se pensarmos na expressão teatral. Os atores negros existentes no teatro profissional, com o passar do tempo cada vez mais embranquecidos, seguiam a linha de linguagem dominante no palco, contaminada aqui e ali, em particular nas revistas, com indícios da cultura negra. Os casos que deveríamos estudar em profundidade são as formas expressivas de Francisco Correa Vasques (1839-1893) e de Xisto Bahia (1841-1894).

A leitura do texto exemplar de João Roberto Faria se torna fundamental para construirmos um pensamento a respeito do tema – de que forma o teatro lidou com a escravidão e com o abolicionismo? Se o palco foi abolicionista e libertador, por que a presença negra no palco sumiu e precisou da liderança de Abdias do Nascimento (1914-2011) para voltar a lutar pelo protagonismo? Por que os modernos não se constrangiam em optar por black-face, com a alegação de que não existiam atores negros dotados de impacto dramático eficiente?

Sim, para que o teatro brasileiro se torne uma referência social consistente para toda a sociedade, se faz necessário ter plenitude humana no palco. Este precisa ser um atributo essencial do teatro.  Para alcançá-lo, tarefa bem difícil, só através de uma revolução teatral, a ferramenta capaz de funcionar como alavanca para fazer ceder o eclipse. A rigor, não basta ter dinheiro, financiamento, editais, comissões, prêmios. O fundamental é a existência de um canal de diálogo entre a cena e a sociedade, caminho da sensibilidade abandonado e esquecido. Existem peças que enveredam por este incrível espaço de diálogo social – vale voltar ao tema, comentando-as. O assunto segue.

Numa época em que os teatros ficam fechados ou são demolidos sem espanto, nem dor, numa cidade, outrora orgulhosa do seu poder cultural diante do país, na qual as salas de representação minguantes se concentram num estreito recorte urbano ligado às elites e às classes médias, contamos apenas com um teatro de cristaleira, espécie de bibelô frágil, esculpido para olhares delicados, iniciados na arte suprema da contemplação.

Teatro de verdade, é outra coisa – é gente, é agito, é uma forma de expressão disposta ao pé no chão, adepta do cheiro de terra e do ser coletivo, sem a obrigação de dar aula ou de ensinar a andar na linha. Diz o ditado popular: foi andar na linha, o trem matou. Então, a opção é simples. Apenas vibrar e entoar junto. Um pouco aquela vertente que a música popular seguiu, vindo lá dos batuques e dos terreiros, sem medo de ser feliz.

 PARA LER:

CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

FARIA, Joao Roberto. Teatro e escravidão no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2022.