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                           Brasil, nosso velho desconhecido?

Alguém disse, num clima desbragado de folia: o seu Cabral inventou o Brasil, no dia 22 de abril. Folia à parte, não é verdade. Se assim fosse, saberíamos com certeza definir o chão sob os nossos pés, o céu sobre as nossas cabeças. Vale reconhecer, humildes: o que somos, não sabemos, somos um redemoinho de dúvidas bem enroscado.

Para chegar a esta conclusão, basta contemplar a belíssima exposição Fotógrafos italianos no florescer da fotografia brasileira, realizada pela Embaixada da Itália e pelo Instituto Italiano de Cultura do Rio de Janeiro. Ela está aberta à visitação até 18/11, no Centro Cultural Banco do Brasil. Não dá para perder.

Retrato de Zacarias Milhazes. Ferrótipo. 1886.

Na mostra, vemos bem clara a nossa surpreendente multiplicidade. O Brasil só existe no plural. E, convenhamos, desligados de nossa própria história, descompromissados com a memória dos fatos da terra, encontramos exposta na elegante sala do centro cultural uma grande dúvida a respeito de nós, graças à indicação discreta do que deverá ter sido a atuação dos fotógrafos italianos no país. Não há indiferença que resista. Somos nós, de verdade, ali naquelas belas imagens? E há muito mais por estudar. Faltam pesquisas, estudos, reflexões.

Os fotógrafos incluídos nesta seleção surpreendem por sua mobilidade, sua capacidade “andarilha”; eles percorreram o território nacional do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Claro, esta constatação tem extrema importância. Contudo, o feito mais notável da pesquisa nasce de uma interrogação perturbadora lançada por ela – um número ainda indeterminado de fotógrafos italianos atuou por aqui. Qual o painel da nossa imagem que seria construído por tantos clics, se pudéssemos ter um inventário mais amplo destas tantas obras que desconhecemos…?

A partir do belo livro catálogo da exposição, graças aos textos dos pesquisadores, constata-se com muita clareza a nossa perda. Foram escolhidos para o estudo fotógrafos cuja fortuna, hoje, de imediato aparece forte, acessível, expressiva em números de obras localizáveis. O prazo de trabalho era restrito – o motor (exemplar) era o de contribuir para a comemoração dos duzentos anos da Independência do Brasil. O grande desejo, portanto, era o de demonstrar a força da presença italiana no país, situação negligenciada frequentemente, em favor da presença francesa.

Destaque-se – não se trata de um tema negligenciável. Afinal, D. Teresa Cristina (1822-1889), esposa de D. Pedro II (1825-1891), nasceu em Nápoles e, muito culta, estimulou fortemente a difusão das referências culturais italianas no Brasil. Por sermos uma terra de forte tradição misógina, o tema nunca recebeu o merecido destaque. Mas a coincidência ajuda – o ano assinala também o bicentenário de nascimento da imperatriz, é fundamental olhar para a sua atuação no país ao qual dedicou a sua vida.

L. Terragno. D. Pedro II na Guerra do Paraguai. 1869. Acervo Biblioteca Nacional.

Vale sublinhar o fato tão conhecido: o imperador foi um amante devotado da fotografia, sentimento compartilhado por sua esposa. A atmosfera com certeza estimulou o trânsito dos italianos. Dotados de personalidades riquíssimas, os fotógrafos traziam as marcas da forte tradição pictórica e estética italiana, como bem demonstra o artigo assinado por Livia Raponi, organizadora da mostra ao lado de Joaquim Marçal Andrade.

Nas fotos, surgem com força o sentido estético da composição, o chiaroscuro, o cálculo dos volumes e dos planos,  o sentido de pesquisa, a percepção poética, a dimensão humana. Os perfis dos fotógrafos são múltiplos: há o fotógrafo explorador, capaz de se embrenhar na floresta e se encantar com a descoberta da riqueza cultural dos povos originários, como há o fotografo ambulante, verdadeiro camelô de imagens.

 Ao lado deles, encontramos o fotógrafo cultural, inclinado a trabalhar também com cinema e pintura, e o fotógrafo de rua, olhar atento para a pulsação urbana e humana. Os perfis, porém, são plurais – as origens de classe dos profissionais são diversas, eles tanto podem ser engenheiros empenhados na construção de estradas, como nobres, artistas, professores de fotografia, desenho, pintura…

Assim, tais profissionais vieram para o Brasil sob condições variadas – muitos adotaram o país como pátria de eleição e trouxeram a família numerosa típica do século, outros constituíram família por aqui, ainda outros retornaram para a Itália com relatos e vivências impressionantes. Alguns se tornaram personagens trágicas, morreram sob o signo de desventuras, digamos, tropicais.

Guido Boggiano. India Caduveo. MGS. S.d. Sistema Museale dell’ Università degli Studi di Firenze.

Se muitas imagens do pintor Guido Boggiano (1861-1902) surpreendem por sua sutil captação da alma indígena, as obscuras circunstâncias de sua morte numa expedição, justamente por mãos indígenas, causam certo terror. As suas fotos expõem de forma intensa aquilo que os indígenas temiam perder para o ato fotográfico – a alma. Já o requintado poeta da luz (e das letras…) Ermanno Stradelli (1852-1926), um conde que morreu em profundo sofrimento, vítima da hanseníase, aponta para o abismo doloroso dos desafios enfrentado nas florestas do país.

Ao lado dos dois ousados aventureiros prontos para mergulhar, ainda que com os pesados equipamentos fotográficos usados na época, na selva virgem, habitada por muitos povos ainda distantes de qualquer contato com a sociedade imperial, os outros, na sua maioria, fizeram percursos mais urbanos. E a sua agenda foi fervilhante, apontou frequentemente para destinos afastados dos grandes fluxos, fora tanto da corte como da “cidade grande”.

V. Calegari. Atelier Fotográfico, Rua dos Andradas, Porto Alegre. 1900-1910. Museu de Porto Alegre.

Com certeza encontravam comunidades ávidas por novidades e pela perspectiva de se afirmarem como personalidades modernas, ainda que do interior. Então, a lista de pousos inclui nomes tão distantes quanto Paraíba (João Pessoa), Campos, Porto Alegre, Recife, Goiana (Pernambuco), Manaus, São Paulo, Salvador…

Sob os olhos do público, surgem nomes obrigatórios da invenção fotográfica – Luiz Terragno, Camillo Vedani, João Firpo, Nicola Maria Parente, Virgílio Calegari, Vincenzo Pastore, Luiz Musso. O inventário dos trabalhos apresentados indica um feito, digamos, retumbante – o papel de primeiro plano do Brasil na invenção e na difusão da fotografia. Sim, com esta seleção, nas lentes internacionais, ainda que não saibamos disto, figuramos no primeiro plano.

A exposição, portanto, se apresenta como um programa obrigatório para o cidadão de hoje, interessado no debate mais profundo a respeito da identidade nacional. Ela é obrigatória por tudo o que mostra, em razão de um excelente trabalho de pesquisa, e por tudo o que insinua, ao apontar o quanto resta por fazer, apesar dos duzentos anos de independência. Já é tempo de desvendarmos o Brasil, duzentos anos é um prazo longo demais para ser ignorado, algumas urgências precisam ser firmadas.

V. Pastore. Retrato de mulher com criança no colo. São Paulo, c. 1910. Instituto Moreira Sales.

Mas a obrigatoriedade da visita nasce também da beleza visual das imagens, quer dizer, a notável qualidade de uma arte, a arte da fotografia, ainda na sua infância. Afinal, então, os fotógrafos apresentados se impõem como sujeitos no processo histórico brasileiro, graças a um rol admirável de ações. Nas suas trajetórias, há sobretudo a ação estética, mas há a ação antropológica, a ação geográfica, a ação etnográfica, a ação cultural, a ação política – portanto, a grande ação histórica.

O conjunto faz com que reconheçamos a imensa ação humana que promoveram. Por isto, mergulhar na sua arte nos permite ir bem mais longe no conhecimento deste emaranhado complicado em que nascemos chamado Brasil, estranho som sibilante de fogueira.  Tanto tempo depois do seu Cabral, olhar com olhos de ver para esta exposição nos indica algo precioso: precisamos zelar por nós, se quisermos inventar o país. Se é que um país se inventa… Talvez, quem sabe, a invenção de um país só possa nascer dos cidadãos capazes de cultivar a sua História.  

FOTO DE ABERTURA – Luiz Musso. Entrada e fachada monumental em estilo neoclásico do Museu Nacional, Quinta da Boa Vista. Rio de Janeiro. C. 1903. Instituto Moreira Salles.

C. Vedani. Largo do Paço, atual Praça XV de Novembro. Rio de Janeiro. 1865. Instituto Moreira Salles.

SERVIÇO

FOTÓGRAFOS  ITALIANOS – no florescer da fotografia brasileira

Curadoria: Joaquim Marçal Andrade e Livia Raponi

De 8 de outubro a 18 de novembro de 2022

Entrada gratuita (não é necessário emitir ingresso)

Local: Centro Cultural Banco do Brasil

Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 – 4º andar – Centro – Rio de Janeiro

Telefone: (21) 3808-2020

 ccbbrio@bb.com.br

Horário: segunda, das 9h às 21h; terças, fechado; de quarta a sábado das 9h às 21h e domingo das 9h às 20h.

Programação completa no site: bb.com.br/cultura