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O teatro nosso de cada dia

Um vazio retumbante ecoa dentro de mim. Desisti? Não sei. Uma trégua? Quarentena? Exílio de mim? Os sintomas ainda parecem vertiginosos, confusos, difíceis de analisar. Uma sensação maior tenta se impor enfática. Pânico: parece que o meu ser desistiu de pensar o Brasil.

Uma ponta de raiva surda aflora. Afinal, desde cedo, na vida, no eco do varguismo, me impuseram um culto à pátria. Eu fui guarda-bandeira na escola primária, decorei todo o hinário cívico e cantava tudo aquilo com doce entrega infantil. Mas o que eu percebo, ao longo de tantas décadas? O meu país me escapa. Seria o futuro. Seria um paraíso tropical na Terra. E o futuro é um desastre.

O que mais me incomoda? A época favorece a sinceridade deslavada, sem pejo. Começou o tempo de áries e, já que estou no meu signo, conhecido por seu destempero, vou direto ao ponto. O que me deixa irada de verdade é o fracasso redondo da educação nacional. Simples assim. Nossa escola é como um carrossel miserável desvairado, penso que tudo o mais gira ao redor. A nossa escola é uma vergonha.

Quer dizer, não conseguimos, através da escola, gerar um ser brasileiro, uma forma de cidadão que nos faça pensar, sentir, caminhar juntos. Ok, é claro que não estou pensando num exército de soldados de barro da tumba de um faraó chamado Brasil. Nossa multiplicidade, realidade vertiginosa, é maravilhosa, um trunfo. Falo, antes, de uma cultura de base comum, tipo saber que a lei da gravidade existe e é universal, para tocar a vida com garra. Sim, falo de identidade nacional. Não vou me prender a este ponto, no entanto. O argumento segue.

A hora impõe esta necessidade, uma crise brutal nos aguarda de braços abertos, ter esta fortuna existencial comum seria uma maravilha. O fundamental seria termos uma inteligência humana do abismo, ubuntu. Acredito que muito da minha irritação de agora nasce da larga margem de oportunismo que vejo por toda a parte, uma canalhice brasileira que eu detesto. Tanto de má fé, quanto de ignorância – gente que pensa que fazer fortuna é usar a crise para tapear o próximo, gente que acredita (e espalha) as histórias mais estapafúrdias a respeito dos fatos, gente inculta que acha possível inventar a pólvora e explode tudo junto.

Insisto: nossa urgência maior, ao final da crise, terá que ser a escola. De saída, mudar a condição profissional dos professores. Logo, rever o nosso conceito de escola. A seguir, dar os maiores estímulos – bolsas, viagens, cursos avançados aqui e no exterior – para os melhores estudantes de cada grau. Para recorrer a um verbo enfático: será preciso desasnar o país.

A urgência seguinte, acoplada à primeira, terá que ser a formação de políticos. Precisamos com urgência de uma escola de altos estudos políticos, um lugar onde se possa pensar política, um lugar apto para pensar o país, formar estadistas, profissionais capazes de pensar e gerir a vida pública. Um liceu cujo eixo central seja a compreensão da política como arte sublime de entendimento do humano.

Sim, estas instituições não são frutos sujeitos à súbita germinação espontânea, imediata. Se conseguirmos a união necessária para aprová-las e planejá-las, quando forem implantadas, os seus resultados só começarão a nos abençoar dentro de vinte anos. Estaremos abrindo caminho para uma nova geração. Haverá um hiato, um deserto, uma praia perdida – nós.

Mas há o que fazer no deserto – enquanto isto. A solução incendiária, automática, perfeita, existe e funciona. É o teatro. O teatro é uma máquina precisa de transformação da sensibilidade humana. Uma verdadeira usina de humanidade. O vírus vai passar, a quarentena vai passar, o isolamento vai passar, o retorno à vida cidadã vai acontecer e o teatro, com sua nobreza de ideais, estará à nossa espera.

Valerá a pena, então, estimular a disseminação do teatro por toda a parte – igrejas e paróquias, escolas e clubes, associações e sindicatos, feiras e mercados, praças e viadutos, escolas, terreiros e quintais de samba. O método funciona tanto para trabalhar o bem dizer, a maestria nas palavras, como para passar em revista os grandes temas da aventura humana.

Muitas são as formas teatrais interessantes para o caso brasileiro. Há tanto o grande texto, o clássico, arsenal de vivências e conceitos fundantes do modo de viver do ocidente, como os textos triviais, do pequeno confronto, dos sentimentos miúdos, do rame-rame cotidiano, e o acontecimento relâmpago performático experimental, imediato.

O mais notável – parece que os deuses tramam tudo à nossa revelia – é que existe uma classe teatral imensa, formada nas escolas, apta para trabalhar e dar conta deste desafio.  Ela já está formada, precisa de espaços, apoios institucionais, financiamentos. A hora chegou para estabelecer este campo de trabalho, que parecia impossível, inexistente. Ele está logo ali.

Talvez o grande tema seja este – não dá mais para pensar o Brasil. O Brasil não existe, está para ser fabricado. O que chamávamos de Brasil era uma quimera. Portanto, o que há para fazer é justamente fazer o Brasil. Construir afinal esta vasta terra. Lançar-se de ponta cabeça neste gigante pela própria natureza, deitado em berço esplêndido. Tocou a sineta, hora de acordar e ir à luta.

Enquanto esperamos contidos em casa, planejemos o grande revolução, a revolução cênica. O primeiro passo é partir em campanha. Aliás – ela já está na rua, uma das mais retumbantes é a Lista Fortes, de Caco Ciocler. No Rio, há o movimento do Circo Crescer E Viver, liderado por Júnior Perim, e a campanha para cestas básicas organizada pela APTR. O banco Itau lançou editais de emergência para apoiar a prática teatral. O SESC pagará os compromissos interrompidos pela pandemia. Há algo novo neste conjunto, importa ressaltar.

O primeiro mandamento em vigor nestas iniciativas é a necessidade de mudança de mentalidade do capital. Vamos chamar de novo capital tropical? Afinal olharemos para a nossa miséria, ali no osso da realidade, no aqui e agora? Importa convencer a todos os que dispõem de alguma riqueza acumulada, por menor que seja, mesmo que ela seja apenas fruto de economias de salários, que todo dinheiro tem DNA social.

Todo o dinheiro que se recebe é fruto de colaboração social. Em algum grau, em algum momento, a vida social ajudou para que tal dinheiro pudesse vir a ser recebido. Não existe o ser sozinho que faz jus a ter tal ou qual fortuna. A semana santa está diante de nós, é uma época que ajuda bastante a pensar a construção deste movimento.

Portanto, se você tem algo, mesmo pouco, doe. Se você não tem, está à mercê da crise, se candidate, receba.  Cada pessoa e toda pessoa importa para a grandeza social, o verdadeiro elo da sociedade é o reconhecimento de que somos uma irmandade. Para o todo existir, importa a saúde de cada um. O Papa Francisco sozinho rezando diante da praça vazia de corpos, repleta de esperanças, ficará como imagem magnética deste momento: o que há para fazer? O que você pode fazer? Qual a grandeza humana que nascerá da sua solidão?

Portanto, o vazio de que eu falava se revelou um lugar pleno – desconfio que a temperatura do momento fica por aí. Repensar os pensamentos, rever os conceitos, as prioridades. Agora se volta a falar no Mito da Caverna, de Platão. Em lugar de, acorrentados, contemplarmos confusos as sombras projetadas no fundo da caverna, forcemos a vista, ajustemos o foco e tratemos de ver a essência, a verdade dos fatos, as ideias. Assim, desconstruindo as sombras, vendo a verdade das coisas, nos libertaremos deste acanhado fundo escuro. Sairemos da caverna, contemplaremos a luz majestosa que banha o mundo. O esforço é nosso, individual, mas isto não é tudo. Cada um contribui para a marcha de tudo.

Serviço:

Dedique parte do seu período de isolamento social ao pensamento social: quem é você na trama do presente, o que você pode fazer a favor da saúde social brasileira?