Atores: o impossível da arte
Você já se perguntou – talvez muitas vezes – quem é afinal esta gente às quais chamamos atores. Deve ter concluído, como eu também já fiz, que eles pertencem a uma galáxia especial, bem deles, pois passam a vida buscando pretextos para ficar fora de si.
Como entender uma pessoa que, no pleno domínio das próprias ideias, decide pendurar-se a si própria num cabide, de preferência bem escondido, decide apagar-se, enquanto sai para passear por aí com alguém outro, um alguém desconhecido, um estranho, por vezes até um ser perigoso? E quantas vezes a tal criatura postiça, de aluguel, vira uma personalidade amiga, quase um querido de infância, seduz tanto o ator que o porta como aquele que o vê?
Atores, mil formas, mil cores. Uma vida que, em vez de se dedicar a viver a si própria, elege o nomadismo humano e resolve vaguear, vadiar, flanar, como se o natural da existência fosse ser aragem, sopro, uma vertigem que passa, para não mais ver, alma sem pouso. Um desfile quase infinito de modos de ser rodeia os nossos atores de hoje, assalta as suas vidas. Sim, pois se agora, por aqui, um papel dura um piscar de olhos e some, antigamente não era assim, dava para conviver um pouco mais com as próprias criações.
Certo, antigamente um ator era uma casa de cômodos movimentada, dentro de cada ator morava uma multidão, pois as peças apresentadas eram muitas, mudavam quase todo o dia. Mas, se as peças que traziam a multidão passavam tão rápidas que precisavam do ponto, pois nem sempre dava para decorar tantos textos, em contrapartida o teatro era de repertório. Assim, uma peça de qualidade poderia permanecer ali pronta, dentro do ator, a vida toda. O papel não morria, saía de cartaz para de repente voltar já. A qualquer momento, o papel pulava pela porta, saltava pela janela e lá ia divertir a plateia, todo lampeiro. Um ator tinha seus personagens, seus truques, andava de braços com a sua história, tinha o seu cavalo de batalha.
O cavalo de batalha era a peça certa, o tiro certeiro, o sucesso garantido, eterno por toda a vida. No tempo das grandes companhias lideradas por um primeiro ator, o cavalo de batalha podia ser uma peça de grande elenco, cenário suntuoso, de papelão, tecido e sarrafos de madeira. Sim, uma peça cara – como já estava pronta, no acervo, a remontagem era rápida e barata e podia viajar por todo o país.
Mas os grandes atores, mesmo quando eram líderes de companhias, gostavam de ter sucessos retumbantes totalmente pessoais – monólogos de absoluta força, para expor toda a sua potência. Um dos maiores exemplos históricos pode ser encontrado em Rodolfo Mayer (1910-1985), com o célebre espetáculo As mãos de Eurídice, de Pedro Bloch, que atingiu vários milhares de apresentações. Você pode pensar – que confortável, ter uma peça para retornar sempre, como se fosse um bom filho que à casa torna. Pois é, talvez existisse este abrigo, talvez o ator gostasse de ter um ponto estável, no seu meio oscilante de vida, para recorrer. Adoraria perguntar a um ator deste gênero, esclarecer o mistério, mas perdi a oportunidade: todos se foram.
Rodolfo Mayer, por exemplo, trabalhou em mais de cem peças de teatro, sem falar nas radionovelas, onde ele começou, nas telenovelas e nos filmes. A opção pelo cavalo de batalha era para sobreviver, ganhar dinheiro? Funcionava como instrumento de marketing, de fidelização de fã clube, fixação de identidade artística? Ou era um exercício de cortinas abertas? Um teste de força e potência?
Um outro dado da vida de ator de antigamente surge aqui – ninguém esperava, apesar do que se diz por aí, que o ator fosse apenas ele mesmo, com uns truques de algibeira. Injustiça dizer isto dos colossais velhos atores. Eles contavam com fortes traços pessoais sim, imprimiam tons particulares inegáveis aos desempenhos – e Dulcina de Morais (1908-1996), com sua expressividade facial forte e a dicção marcada, sempre surge como o grande exemplo.
Mas… eles buscavam soluções afinadas com cada nova vida exposta em cena num fluxo inesgotável de formas do humano. Como nascia isto? Como tinham acesso a este tipo de loucura controlada? Muito simples – o ator possuía um método de estudo seu, uma visão da arte infelizmente em desuso. Não existia ator sem estudo – estudo da arte do ator, a bem da verdade.
E o quê o ator estudava? Estudava papéis! Naturalmente, num país de cultura frágil como o Brasil, os métodos eram muito pessoais, percepções singulares da necessidade de contar com procedimentos permanentes de aperfeiçoamento. Ou nasciam da troca entre os integrantes dos elencos, a sabedoria de coxia, o aprendizado da classe na classe.
Para os atores dotados de pretensão intelectual, quer dizer, atores inclinados para o grande teatro, alheios à comédia e ao trololó de gosto popular, o sistema de aprendizado e de estudo não tinha erro: significava o mergulho nos grandes papéis dramáticos adequados ao temperamento do intérprete. Vamos a outro exemplo – Itália Fausta (1885?-1951).
A grande trágica brasileira (se bem que nascida na Itália), formada no amadorismo dos grêmios italianos de São Paulo, depois do início de sua carreira profissional fez uma viagem de estudos para a Itália. Segundo suas declarações aos jornais, ela teria estudado no Liceo Santa Cecília, em Roma, com o professor Gatinelli. Neste aprendizado, ela estudou os textos Gioconda, Magda, Irmãos em Armas e Fedra – ou seja, textos do repertório das grandes trágicas do momento, que ela poderia transformar em cavalos de batalha, tal a sua repercussão junto às plateias. Ou poderia manter como rotina de estudos pessoais.
Não penso que este tipo de formação está ultrapassado – por isto trago o debate aqui. Apesar da mania atual de teatro invisível – quer dizer, atores que representam como se estivessem apenas vivendo a própria vida – considero importante brigar por alguns valores fundamentais da arte. E perguntar aos atores o que é que eles fazem, como fazem, para que possam sentir no palco a fortaleza da profissão.
De saída, a velha ladainha: teatro é arte, é representação, consiste num ato muito requintado de trabalho com as emoções, sentimentos, percepções e pensamentos acerca do mundo. Portanto, teatro é técnica. O natural, despojado, muito humano, é fingido, construído. Consiste numa simulação. O ator não está ali, saiu para passear e nem sequer deixou o paletó na cadeira.
O fato é que somos apenas jovens infantes na arte, jovens demais. Com o centenário da Escola de Teatro Martins Pena, completamos cem anos de estudos teatrais – o que é nada. O mais estranho é que o acontecimento passou despercebido, a classe não vibrou e pouco se comemorou. Fundada em 1908 devido ao empenho de Coelho Neto, seu primeiro diretor, ela só começou a funcionar em 1912 – portanto, até a data da inauguração é confusa. A rigor, a escola não era necessária para o palco daquela época, no qual os artistas se formavam na prática, foi mais uma sinecura do que uma necessidade social.
Procópio Ferreira foi um dos grandes nomes formados pela casa – ou quase. Na realidade, ele estudava contra o gosto da família, foi chamado para uma peça profissional e abandonou o curso. Com o sucesso estrondoso, a escola o chamou de volta para diplomá-lo… Por este relato, dá para ver que a escola bem merecia um livro dedicado à sua história, pontilhado com muitos episódios saborosos, mas infelizmente o próprio governo do Estado ignora esta urgência.
Pois bem – o estudo das escolas mais antigas do país – a Martins Pena, o antigo Conservatório (UNIRIO), a EAD – ainda hoje faz surgir diante do estudioso um monstro sem cabeça curioso. Não temos um método de teatro. Nem muito menos seguimos, como base expressiva nacional, um método importado. Stanislaviski não é uma unanimidade. Nem o pobre Brecht. Somos empiristas, espontaneístas: cada ser de talento precisa sofrer muito para chegar a algum lugar.
Consequentemente, o estado da arte – e da vida – dos nossos atores tem um nome: solidão. Apesar do ator abdicar de si para vivenciar e expor uma procissão de almas, este percurso acaba se tornando uma obra impressionista, tateante, encerrada na potência pessoal de cada um. Em uma frase: se não temos um método (ou métodos), seguimos decididos engajados no velho vai que dá.
Quais os resultados? Eles dependem exclusivamente do mérito pessoal de cada um. Dois trabalhos atuais ajudam a pensar as mágicas dos nossos intérpretes – os dois têm em comum o fato dos atores serem filhos da E. T. Martins Pena. Um, carioca, está caminhando para a desestreia, o outro, paulista, ainda vai estrear. Desestreia é um termo novo, bom para definir a situação de espetáculos sensacionais que, mal estreiam, precisam encerrar, pois a pauta disponível no teatro é curta. No caso, trata-se de uma peça para espíritos fortes – não é qualquer um com nervos de aço para ver.
Traz o primeiro monólogo de Thelmo Fernandes, ator que ingressa na maturidade com pleno domínio dos seus recursos expressivos, dotado de uma energia telúrica admirável. O texto, literário em sua origem, aponta para múltiplas discussões a respeito do bem e do mal, sem conseguir, no entanto, ultrapassar o velho caráter dualista, da explicação cristã ocidental, e a visão sociológica da origem do problema. O Diário do Farol, texto de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), expõe os horrores da vida de um psicopata frio e amoral, aquele homem filho do desamor de família, incapaz de construir relações positivas de afeto.
Em adaptação de Domingos Oliveira (1936-2019) burilada por Fernando Philbert e Thelmo Fernandes, o texto sai da página e entra na vida, na vida de representação. Se torna partitura multifacetada, um desafio para a atuação. De certa forma, o ator, identidade criativa, aqui, nunca sai de cena – ele preside um ritual de vivência de uma história impactante. Portanto, o principio de racionalidade do ator precisa estar presente sempre, para dar corpo ao ser soturno central da narração e a uns tantos mais seres importantes para o desnudamento de sua identidade. Mas, veja lá, o jogo é muito complexo: o próprio carrasco protagonista necessita aparecer ao quadrado – contando a sua história e sendo ele mesmo em flashes passados e atuais.
Thelmo Fernandes domina a cena com o tom soturno e autocrático essencial à definição do personagem obscuro; revela um homem do mal ao mesmo tempo sutil e esquivo, como os seres das sombras, mas vaidoso o bastante para se expor ao público. Ele narra, representa, canta, recorre ao seu infinito acervo de expressões de arte para se impor como o mal em estado puro, sem qualquer caricatura.
A direção de Fernando Philbert tem a magia teatral exemplar de dar corpo ao texto, romper com qualquer hipótese de literatice, tornar as palavras guias intensas da representação. Mas isto acontece sem qualquer transbordamento lírico ou estético. Uma contenção objetiva, milimetricamente calculada, faz o impacto dos momentos mais cruéis se tornar arrasador.
Numa cena de luzes diáfanas e projeções que buscam, junto à cenografia, provocar um sutil efeito de água graças às pernas cenográficas de plástico amassado, o ator segue uma partitura límpida. Recorre a gestos mínimos, econômicos, em sintonia com uma intensa pulsação interior. Aquele Thelmo Fernandes velho conhecido, camarada, eloquente, extrovertido, está longe da cena, assina um trabalho que nos obriga a dimensionar a grandeza do intérprete.
O falastrão de gestos largos, bonachão irresistível, espécie de descendente de Jaime Costa (1897 – 1967), se recolheu para um recanto remoto. Este novo homem enigmático se impõe, pleno, assustador. Ele faz com que a plateia o veja como efetivo ser solitário, macabro habitante de uma ilha-farol que renunciou ao mundo para conviver intensamente com a própria ruindade. O que é o mal, vocês sabem? – ele nos pergunta todo o tempo, docemente. E age pleno de certezas, como se ele fosse o senhor do farol indicado para iluminar as nossas vidas, por de cabeça para baixo máscaras sociais fáceis.
Então, conselho amigo, corra. A temporada será curta, é uma desestreia, não dá para correr o risco de perder. Se o tempo passar diante dos seus olhos distraídos e a cena se for sem você, há uma outra saída. Você pode voar célere para São Paulo e prestigiar a estreia da carioca mais paulista de toda a Pauliceia, Denise Fraga.
Aqui, há uma outra modalidade de cena como escrita do novo, diferente do projeto assinado por Thelmo Fernandes. Não há a busca do jogo dramático na literatura, mas quase a abolição da dramaturgia, ou uma nova compreensão do que a dramaturgia é. A atriz, em colaboração com o diretor Luiz Villaça, concebeu um trabalho em que as pessoas contribuíram enviando histórias de vida para a representação. Na sala de ensaio, o texto foi retrabalhado, debatido, estudado.
Portanto, chegou-se à cena com uma forma de texto novo, nascido da sala de ensaio, porém a partir de histórias contadas por pessoas comuns, numa proposta curiosa, na qual a atriz se transmuda no seu público: eu de você, digamos. Não há notícia se a montagem virá ao Rio – portanto, se você puder, dê um pulinho em Sampa, só para ver.
Lá, numa alquimia inusitada, a atriz vai se despojar de si para mergulhar em muitas almas, mas são almas de fãs que se propuseram a virar ficção no palco. Num gesto muito contemporâneo, performático, a atriz caminha num outro passo para a teatralidade: finge ser ela própria diante de múltiplas histórias e tece um painel de personagens vizinho da multiplicidade humana do nosso tempo.
Ao contrário do que se disse no início, não há, neste caso, uma retirada do ator para expor uma vitrine de personagens teatrais ou algum representante do clássico poder de criação da dramaturgia. Há, antes, uma forma de dramaturgia espontânea, vivida, que leva o ator a se enovelar numa amostra da vertigem humana do presente. Se você considerar como contraponto o trabalho de Thelmo Fernandes, inventado a partir das páginas, orientado para iluminar, como um maestro de almas, a solidão cercada de maldade destes tempos, terá muitos motivos para perguntas. A primeira, claro, é tentar entender o que é este ser mutante chamado ator. Definitivamente, mergulhe no desafio – se vivemos pressionados por tantos papéis ao nosso redor ao mesmo tempo, uma pressão inclemente contra a liberdade de ser, há uma arte essencial para olhar a vida, a inquieta arte do ator.
Ficha técnica:
Diário do farol – Uma peça sobre a maldade
Da obra de João Ubaldo Ribeiro. Idealização e inspiração: Domingos Oliveira
Direção: Fernando Philbert
Interpretação: Thelmo Fernandes
Cenografia e figurino: Natália Lana
Iluminação: Vilmar Olos
Fotografia e audiovisual: Rafael Blasi
Assessoria de imprensa: Christovam de Chevalier
Direção de produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi
Realização: Diálogo da Arte Produções Culturais
Serviço:
Temporada: de 29 de agosto a 22 de setembro
Dias e horários: de quinta a domingo, às 20h
Local: Mezanino do Sesc Copacabana (R. Domingos Ferreira, 160, Copacabana. Tels 2547-0156.
Valor do Ingresso: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia ou ingresso solidário, a quem levar 1kg de alimento para o projeto Mesa Brasil, do Sesc RJ) e R$ 7,50 (associados Sesc)
Duração: 70 minutos. Classificação: 16 anos.
Serviço
Eu de você
Idealização e Criação Denise Fraga, José Maria e Luiz Villaça
Direção Luiz Villaça
Com Denise Fraga
Texto Final Rafael Gomes, Denise Fraga e Luiz Villaça
Teatro VIVO (274 lugares)
Av. Dr. Chucri Zaidan, 2460 – Morumbi
Informações: 3279.1520 e 97420.1520
Sexta às 20h | Sábado às 21h | Domingo às 19h
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Vendas: www.sympla.com.br