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Complexo de Van Gogh

Sim. Complexo de Van Gogh. Será que a expressão é eficiente para definir o sentimento de inferioridade que, dia sim, dia não, assola o teatro? Distante dos píncaros da invenção poética, o teatro sonha, em particular na sua ala mais jovem, propor obras capazes de abalar os sentidos do mundo,  obras incompreensíveis para as plateias comuns. Quer dizer, incompreensíveis para os seres incapazes de compreender as ousadias poéticas mais avançadas.

O teatro repetiria, assim, o arrojo do pintor. Incompreendido no presente imediato, seria aclamado na História. Este lugar de invenção, difícil para o teatro, na verdade irrealizável, parece rondar os sonhos e a ambição de muitos teatristas. Vale a pena tocar no assunto, neste ano de 2022, de celebração do Centenário da Semana de Arte Moderna, evento no qual, a rigor, o teatro não participou.

Sim, sempre se pode esticar o verbo e o conceito, fazer manobras de raciocínio, para dizer que sim, o teatro lá esteve, afinal o episódio teria sido uma performance avant la lettre  e aconteceu no Teatro Municipal, afinal um edifício teatral… No fundo, porém, sabemos perfeitamente que o palco estava longe do debate, envolvido numa outra forma de ser. Importa  partir deste ponto: a outra forma de ser do teatro.

Na verdade, ela não é outra, ela é a maneira de ser do fato teatral. É a própria essência do fato teatral. O teatro, por definição, à diferença da arte de Van Gogh ou do romancista, é um acontecimento coletivo. A sua manifestação só acontece como interação, prática dialógica. Assim, o teatro depende do outro para existir. Consequentemente, os artistas de teatro precisam ter uma afinação comum, em cena, e uma sintonia plena com a sociedade do seu tempo.

Por mais que o teatro recorra a estruturas poéticas sofisticadas, conceitos de alta formalização, ele precisa, para acontecer, conter uma razoável interface com o senso comum, as formas medianas correntes de pensamento. Ou não acontecerá – se o teatro criar uma obra incompreensível para o seu tempo, como um quadro de Van Gogh dos oitocentos, esta obra não se concretizará, pois não terá nem plateia nem público. A vanguarda absoluta não tem como existir no teatro.

Há, porém, uma grande nuança neste mecanismo. Se não se pode ser Van Gogh, quem sabe seja possível  mimetizar algum Renoir, um certo Munch, talvez algum impressionismo ou expressionismo…? Pois o mercado de arte consolidado, do moderno ao pós-moderno, se notabiliza por sua capacidade de engendrar a sua sobrevivência. Isto quer dizer algo capaz de acalentar o Complexo de Van Gogh de vastos contingentes da vida teatral, ainda que tal aventura permaneça impossível, na medida em que o teatro sem público simplesmente não é teatro. Por uma fresta estreita, a vanguarda acontece.

A arte, assim como os seres, acontece no tempo. Precisa, necessariamente, incorporar a marcha geral da vida em vários graus.  Por isto, se conseguimos com facilidade contemplar um velho quadro de paisagem do século XIX, mesmo sabendo que sua fatura foi ultrapassada no movimento incessante da arte, não suportamos com naturalidade um drama calçudo daqueles tempos. O palavrório, a visão estreita do mundo, tudo aparece como moldura insuportável. A marca do tempo passado no teatro só é superada nas obras dos grandes artistas. Os pequenos e médios, foram andaimes, apodreceram.

Aquele cenário humano passou, tornou-se letra morta, só pode ser admitido para a sensibilidade atual quando muito se for transformado em comédia. Até mesmo produções da televisão de cinquenta anos atrás podem soar insuportáveis hoje: a cabeça do tal homem médio mudou, apesar de marchar  lentamente. E como a arte garante atualização da arte, ao lado das ideias comuns do tempo?

A máquina de diversão, lazer e cultura se tornou uma prática quotidiana, a velocidade da vida e de tudo surpreende a todos, impõe novas formas de ver, sentir, pensar e ser. Assim, para a sobrevivência da arte, dentro do próprio mercado de arte prospera um inquieto segmento de experimentação, pesquisa, invenção – até mesmo no teatro. A vanguarda é a parte arrojada do mercado, ela é uma função do mercado: nesta fresta ela acontece .

Logicamente, trata-se de um manjar para paladares requintados, fruto de estudos e pesquisas arrojados. A invenção abrange um circuito pequeno. Sempre se pode cobiçar repetir os gestos de Hélio Oiticica, sonhar com um teatro sem fronteiras do tamanho do mundo, parangolés dançando por todas as partes. Mas, por enquanto, sobretudo para a maioria, a vida ainda é trabalho, rotina, produção e, contidos num curto espaço de tempo, atos de lazer e poesia.

Para quem vive preso às engrenagens da vida corrente, talvez pareça até um desacato oferecer imagens que supõem a liquidação da materialidade corriqueira. A rigor, isto significa derrubar o salário, os meios de garantir a sobrevivência, demolir a casa – em um verbo, explodir a vida que passa, razão de ser destas pessoas.

Para estes segmentos fundantes da base da vida em sociedade, Van Gogh foi um louco delirante que pintava mal… O próprio Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, soou como uma verborreia indecifrável, desvario. O Anjo Negro, de Nelson Rodrigues, jogou em cena “personagens com elefantíase moral”, nas palavras de um crítico famoso da época. Um longo tempo sensível foi necessário para que eles se tornassem figuras corriqueiras. Antes de atacar estas reações ou desautorizá-las, é fundamental entendê-las – para tentar entender o próprio funcionamento social do teatro.

E uma advertência importante precisa ser feita – assim como Van Gogh reverteu os padrões da pintura a partir das tradições das telas, tintas, pincéis, linhas, planos, cores, figurações, fundos e pontos de estruturação do olhar, enfim, a linguagem institucionalizada da arte, assim a invenção de vanguarda no palco precisa se confrontar com as convenções de linguagem praticadas pela cena.

Há, portanto, uma via de mão dupla fundamental para a prática da arte hoje no mercado de arte – a invenção oxigena a tradição para que se concretize a arte do presente e se invente o futuro, a tradição oferece à invenção a matéria poética própria da arte para que ela possa acontecer.

Se em 1922 o repertório teatral em cartaz se restringia aos dramas, melodramas, dramalhões, comédias, revistas e gêneros musicais de sucesso de bilheteria do tempo, tais espetáculos mantinham um diálogo cerrado com as suas plateias – Itália Fausta, Leopoldo Froes e os jovens Procópio Ferreira e Jaime Costa sabiam como pisar nos tablados e ganhar os corações.

Cena típica do teatro de sala de visitas, com cenário de gabinete, década de 1930.

Hoje, uma distância considerável parece ser buscada por boa parte da classe teatral em relação ao grande público. Talvez esta estranha obsessão explique o aparecimento do tal Complexo de Van Gogh. Parece, para muitos, deplorável – o que é espantoso – fazer do teatro um lugar de sucesso popular. O mesmo projeto rançoso do século XIX, de civilizar os seres, domar as sensibilidades com valores requintados, parece se manter em cartaz em muitas mentes.

Mas o saldo final não é de todo ruim. Muita coisa de forte impacto – e boa – nasce da devoção à experimentação. Então, vamos lá, dos males, o menor: grandes obras de arte têm nascido da luta para fazer da linguagem teatral uma engrenagem acelerada para desvendar os recantos mais remotos da sensibilidade.

Grandes artistas de expressão poética inefável têm dedicado a sua vida à pesquisa cênica séria. Aliás, são nomes que seriam absolutamente arrebatadores se envolvidos em textos de grande envergadura, de Ibsen a O’Neill, passando por Shaw, Tchekhov e indo a Shakespeare e tantos mais, repertório raro no mercado brasileiro.  Pois temos na experimentação atores que nos presenteiam com investigações pontuais densas da alma humana.

Sim, são trabalhos comoventes de grande arte – mas não se pode impedir o amante de teatro de perguntar: “E se…?”.  A reação é visceralmente humana, nasce da fome de beleza que habita todos os seres, em particular aqueles que tiveram o privilégio de conhecer os grandes reservatórios universais de poesia.

Um nome? Nem hesito – temos em cartaz no SESC Copacabana a sensacional atriz Rita Clemente, em Natureza Morta. Um furacão desmedido de sensibilidade, ela nos premia com um trabalho inventivo, arrojado e muito questionador. No pano de fundo, aflora a pergunta de sempre – por quê motivo as artes plásticas – e as artes em geral – podem avançar mais profundamente na pesquisa de linguagem? O teatro pode avançar neste campo ou precisa sempre ser retaguarda?

Para saber a resposta, só indo conferir – e sempre vale a pena. Rita Clemente é imperdível. Nesta obra, com texto de Mário Viana, a atriz leva adiante as suas pesquisas a respeito do ato de “estar só” em cena, numa interlocução artística com Júlio Maciel (do Galpão – coletivo no qual dirigiu o fabuloso Till: a saga de um herói torto, de 2009).

Quer dizer – não se trata de monólogo, mas de solo, pois múltiplas vozes habitam o espaço de representação. Neste caso, a interlocução se dá em especial com o pintor norueguês Edward Munch (1863-1944). A trama é complexa. Mário Viana escreveu a peça em 1906 inspirado pelo quadro do pintor A Assassina. Nele, uma mulher figura em primeiro plano com um facão, que parece ter sido usado para matar o marido, o homem morto em cima da cama.

Delineiam-se aí múltiplos limites: entre a pintura e o teatro, entre a narração e a representação, entre o amor e o ódio. O grau de tensão insuportável de um casamento falido, arruinado, teria sido o motor do crime – o crime, por sua vez, surge como libertação, a morte se projeta como a possibilidade de uma nova vida.  A pergunta central a respeito do crime projeta luz sobre a mulher, em especial a mulher vivida, que passou a vida atrelada a um projeto do outro ou a um projeto de autoaniquilação. E que se vê à deriva no tempo de hoje, contida e sem sentido claro para própria vida.

Considero injusto afirmar que Rita Clemente padece do Complexo de Van Gogh, não se pode cogitar que ela seja vítima da vontade compulsiva de transgressão que assola boa parte da juventude teatral brasileira. Rita Clemente é uma atriz de elevada potência artística. Ela tem o dom de irradiar fluxos profundos de emoção, sob uma expressão intensa e multifacetada, materializada na voz e no corpo com extrema generosidade. A sua interpretação é sempre arrebatadora graças à entrega sem limites ao jogo cênico.

Para o mundo do teatro tradicional, a sua contribuição tem extremo alcance histórico, pois registra uma forma de estar em cena na qual a palavra não se contem em si, pois acontece como forma magnética, eletrizante, plenitude física. Atriz sem amarras, a sua liberdade diante do verbo determina uma concretude física apaixonada e apaixonante, extrema pulsação de vida na qual o corpo é “ouvido”. Ou melhor, “fala”.

Portanto, na realidade, as coisas caminham noutra direção. Rita Clemente tem o poder de desmontar o predomínio nos tablados do Complexo de Van Gogh. Ela demonstra de forma cristalina como a pesquisa conduz o trabalho de cena ao grau mais elevado de poesia a favor da arte, sem perder o foco na sociedade ao redor.

Seria um sonho de uma noite de  teatrão, no bom sentido do termo, ver Rita Clemente intensa e inebriante entregue no palco a uma encenação monumental de um grande texto, nem que fosse um dos conhecidos Jardim das Cerejeiras ou A Gaivota.  Enfim, algo que fizesse soar a grandeza poética infinita do teatro, desmontasse velhos mitos embolorados; algo acima e além dos pequenos desejos geracionais de invenção.

“Natureza Morta”

Ficha Técnica

Atuação e concepção geral: Rita Clemente

Texto: Mário Viana

Interlocução artística: Júlio Maciel (Grupo Galpão)

Iluminação: Régelles Queiroz (Gato de Luz Iluminação Cênica)

Cenografia e figurino: Rita Clemente

Trilha e efeitos sonoros: Márcio Monteiro

Pianista intérprete (Gravação): Marcelo Sampaio

Voz em off (Mulher): Rita Clemente

Voz em off (Homem): Márcio Monteiro

Assistência de direção, direção de movimento, design e fotografia: Priscila Natany

Cenotecnia: Helvécio Izabel

Montagem: Charles Carvalho

Operação de luz e som: Fred Eça

Produção: Clementtina Cultura

Assistência de produção (BH): Analu Diniz

Assistência de produção (RJ): Sarah Alonso

Assessoria de imprensa: Paula Catunda

Social media: Rodrigo Menezes

  SERVIÇO
Temporada: de 06 a 24 de abril de 2022
Local: Sesc Copacabana – Sala Multiuso
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana
Dias e horário: De 6 a 10 de abril, quarta a domingo, às 18h De 12 a 17 de abril, terça a domingo, às 18h De 20 a 24 de abril, quarta a domingo, às 18h
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) | R$ 15,00 (meia entrada em casos previstos por lei, professores e classe artística com documento comprobatório) R$ 7,50 (credencial plena) | Gratuidade (PCG)
Horários da bilheteria: De terça a sexta-feira, das 9h às 20h Sábado e domingo, das 12h às 20h
Classificação: 14 anos
Duração: 40 min.
Capacidade: 50 lugares
Nas redes:
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