Você e todo o amor deste mundo
Faz tempo, numa terra devastada por guerras, um jovem poeta inspirado buscou conceber uma poção para acabar com as dores do mundo. Conseguiu um resultado fascinante, exemplar, tão exemplar que persiste pulsando à disposição de todos os seres de boa vontade desejosos de mergulhar no lado iluminado da vida. O poeta, era William Shakespeare (1564-1616), a poção, Romeu e Julieta (1595?).
E agora, nós, varridos por guerras e ódios, desgovernados em meio ao náufragio do país, recebemos este presente do teatro, um bálsamo para acalmar tantas dores, mostrar um outro caminho de delicadeza neste momento de turbulência total. Aproveite, está bem aqui, no Rio, no Teatro Riachuelo. E a montagem, gente, é uma espiral ensandecida de beleza e de arte, para sair do teatro levitando, dançando na rua. Imperdível. Corra para ver.
Sob a direção inspirada de Guilherme Leme Garcia, você verá em cena uma montagem esplendorosa do texto clássico. A poção mágica descoberta pelo poeta – o amor, sim Romeu e Julieta é sinônimo de amor – está presente por todo o espaço, do saguão do teatro ao mais afastado recanto do palco. Uma trama inefável de beleza e de elevação estética passa por toda parte.
Para expor este jogo doce do amor, de bem querer e de se entregar, se anular, Guilherme Leme Garcia concebeu um espetáculo dotado de uma rígida convenção estética, absolutamente teatral – é só o puro amor ao teatro, sempre, nada de realismo, naturalismo, romantismo ou melodrama. Talvez se possa dizer que a direção de cena adotou um simbolismo pictórico, em que os humores, as formas, os desenhos e as cores seguem um código explícito, sempre estético, como numa pintura, voltado para falar de opostos, do eterno e do efêmero, do grande e do pequeno, do poder e do deserdado, do amor e do ódio.
A escolha é fiel à chave mais profunda do texto, feito de jogos de opostos, oxímoros. Trata-se de uma fórmula renascentista de explicação do mundo, dual. Segundo este pensamento, para traduzir o ímpeto vertiginoso do amor, devastador e inaugural, seria essencial vê-lo diante da força oposta, o ódio, também uma força devastadora, mas de destruição. O convite era muito oportuno, um sucesso, numa terra desolada diante das guerras de religião, promovidas por seitas irredutíveis, tão opostas como os Capuleto e os Montecchio, seitas que não ambicionavam apenas dominar as almas comuns, mas o trono inglês.
Opostos simétricos, amor e ódio são meios de cegueira do ser, formas de não ver – no amor, se tem apenas a bela visão, no ódio, apenas a visão do horror. Portanto, a bela visualidade da cena é a mais perfeita defesa do ato de amar. Como no amor, a cena nos arrasta e nos faz vagar assim, em sonho teatral, frágeis pedaços quentes de ser à deriva do mundo, o imenso e frio mundo lá de fora. Como o efeito de uma canção doce de Marisa Monte.
A opção surge já na cena de abertura, lírica, quando Romeu canta o seu amor sozinho sob o luar – no caso, o amor por Rosalina – e a praça de lutas, de rinhas permanentes, aparece povoada por jovens fervendo por sangue. Amor e ódio se apresentam loquazes nos corpos. Ao fundo, os volumes da cenografia falam de poderes objetivos, opressivos, formas cristalizadas da política na sociedade, que precisam do ódio, em algum momento, para governar.
A lição remota explorada em cena, sob um tom sutil, é de Gordon Craig (1872-1966): a verticalidade dos volumes em oposição à pequenice humana. Esta inspiração rege a cenografia majestosa de Daniela Thomas, uma criação genial – ela incorporou a ideia e transfigurou-a em torres simples, potentes, móveis e praticáveis, de uma textura entre o medievo e a renascença exposta na dureza da pedra varrida por alguma cor do tempo.
As cores da montagem, aliás, formam um espetáculo à parte, são um convite ao romance, remontam à história da pintura e à história do figurino. O seu impacto se torna maior graças aos preciosos efeitos de luz, de Monique Gardenberg e Adriana Ortiz, em diálogo criativo intenso com a direção, a concepção e a cenografia. Em alguns momentos chaves, o tratamento do espaço, a composição dos volumes, o jogo das luzes e o telão colorido criam um efeito plástico de extremo vigor, a cena se torna um quadro plástico de arrebatadora representação teatral.
Sim, é uma cena teatral total e o diálogo se estende aos figurinos, claro. Afinado com a chave de leitura proposta pela direção, João Pimenta concebeu roupas sem época, mas sempre eloquentes para identificar climas e situações, eficientes para expor personalidades fortes, bem definidas na sua função dramática. Desenham, também, uma corte rica, uma opulência interiorana, em que reina a ostentação e o bem comum não é um valor cotidiano. Para frisar o conflito central, os coloridos dos figurinos das duas famílias se opõem. As roupas do baile, com leves insinuações de absurdo, são eficientes retratos de uma sociedade engessada pela hierarquia e pelo desejo voraz de aparecer.
Mas não é só – a grandeza da encenação se faz com muitos outros ingredientes. Há o jogo de corpo, um fluxo intenso de representação, dramático e musical, mas despojado, ainda que fiel ao propósito de ser simbólico e poético, de Toni Rodrigues. Há a limpeza das lutas, sempre elegantes e convincentes, obra de Renato Rocha. Há o visagismo requintado de Fernando Torquatto. E há, afinal, a música.
Esta versão do famoso romance é um musical na plena acepção do têrmo, estruturado ao redor do repertório de Marisa Monte. O verbo estruturar é intencional: com texto adaptado e roteiro musical de Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, autores experientes no gênero, foi feita uma escolha de músicas em função do rendilhado dramático, marcado, este, por uma tensão moderna, seca, mais objetiva e menos narrativa.
Quer dizer – mesmo quando as canções não registram ações efetivas, objetivas, são apenas declarações de sentimento ou exposições de estados da alma, elas aparecem tratadas sob o conceito de ação dramática. Assim, o fluxo da ação não esmorece, a música faz a peça caminhar, ativa a sensibilidade e a emoção do público, sempre em sintonia direta com a trama, abordada de maneira ágil.
O resultado é deslumbrante – é fundamental reconhecer. A direção musical de Apollo Nove e a direção vocal de Jules Vandystadt conseguiram traçar um desenho sonoro envolvente, um conjunto de sensações sentimentais que, além de arrebatar a plateia, é um hábil propulsor do jogo de cena. As vozes surgem em solos cristalinos, são apoiadas por soluções corais vibrantes, tecem climas, dialogam com a excelente orquestração. Vale destacar: a formação do conjunto musical garante momentos sentimentais intensos graças à sonoridade especial proporcionada pela harpa e pelo rico naipe de cordas.
É preciso, contudo, dizer algo mais, frisar que este é um espetáculo histórico, uma encenação espetacular de exceção. Trata-se de uma montagem obrigatória, para ir ver e rever. Além do olhar teatral plástico e poético de Guilherme Leme Garcia, a atriz Vera Holtz assina a ficha técnica como colaboradora artística, indício de que o projeto foi dominado pelo cálculo estético mais intenso que se possa imaginar, atendeu a um conceito teatral em que a cena é um olhar de arte, criação de fluxo de beleza solto no espaço, situação à qual os atores aderiram.
Várias cenas, em consequência, se projetam como momentos de teatralidade pungente, arrasadora mesmo, vertigem estética de emoção. Vão fazer parte da história do teatro brasileiro como momentos de criação absoluta, teatro total. Integram esta lista, no mínimo, a cena do balcão, com a arrebatadora chuva de rosas brancas, a cena do casamento, com a celebração celestial dos freis, a cena da despedida da noite de amor, com o vestido vertigem de luz, a cena do mausoléu e a cena final, da reconciliação, canto geral de amor de toda a companhia – ou de Verona, digamos.
Uma outra conquista da encenação é o equilíbrio do elenco, a afinação da equipe de atores. Uma sensação preciosa de amor ao teatro irradia do palco para a plateia, vale insistir. Há uma doação sincera dos intérpretes, a sala é inundada por um sentimento de crença profunda nos valores humanos mais nobres. Comentar os desempenhos é uma longa tarefa, é impossível focalizar todos os trabalhos. No entanto, muito do que é oferecido em cena é de uma qualidade tão exemplar que algum registro precisa ser feito.
Bárbara Sut é uma Julieta decidida e diáfana, garrida e inquieta, capaz de se lançar ao amor com ímpeto juvenil, sem medo, seguindo um impulso cego digno da jovem herdeira mimada. Prisioneira do amor, ela se entrega e se expõe sem reservas. Canta com segurança e beleza, domina a cena com naturalidade: a sua força cênica é tão desmedida que ela transforma a canção Amor I Love you, polêmica e discutível para muitos, em momento irresistível.
Thiago Machado é um Romeu boêmio, impulsivo, aventureiro, sonhador, coração aberto para o mundo, de porte altivo e destreza nobre, aura elegante, sedutor até nas canções, ingênuo na medida certa. Afirma-se de saída como galã romântico na canção de abertura, expõe com sinceridade o desespero do amor interdito e recebeu de presente a excelente versão de Ainda Bem.
Ícaro Silva estrutura Mercuccio sob tons transgressivos fortes, verdadeiro negro gato, com extrema plástica corporal. E encanta por sua malícia nas contracenas, por alguns toques certeiros de humor rasgado, além de se destacar em pequenas intervenções no canto.
Stella Maria Rodrigues é um fenômeno de empatia avassalador. Intérprete intensa, revela toda a sua excelência de atriz na Ama, jogando com o perfil materno e brincalhão da serviçal, explorando a malícia da criadagem, exalando a mais objetiva sentimentalidade popular. O gestual, as expressões, as intenções trabalhadas nas falas fazem com que ela acione mais um estágio sentimental da plateia, a forma de amor expressa por aquele que cuida do outro. Ao lado do Frei Lourenço de Claudio Galvan, a atriz participa de um dos números musicais arrebatadores da noite, o dueto O Que Você Quer Saber de Verdade. A dupla é irresistível.
No Cântico Gregoriano, na antológica cena do casamento, Claudio Galvan demonstra a intensidade de sua presença cênica e a beleza de sua voz. Na condução do desastre do caso de amor, ele é um perfeito conselheiro trágico, combina a boa intenção com o involuntário e o patético.
Kacau Gomes, na Senhora Capuleto, é o retrato da frivolidade, a expressão correta da mulher dominada e sem poder, objeto decorativo. Marcello Escorel, em contraponto, materializa no Senhor Capuleto a força massacrante do chefe de família autoritário, impõe o perfil do líder inflexível de facção política radical.
Pedro Caetano sugere para Teobaldo uma dimensão hierática prepotente, Bruno Narchi compõe Benvólio em sintonia com o o seu caráter conciliador. Nas cenas de conjunto e nos solos, os outros quinze atores que completam a ficha técnica se destacam pela devoção ao teatro e por um profissionalismo extremo, aquele necessário para definir a palavra elenco.
Enfim, o espetáculo é encerrado com uma cena painel de extrema beleza, de conciliação e celebração do amor, em lugar da longa cena trágico-dramática de relato dos fatos aos pais litigantes, da versão textual original. A morte por amor une as famílias inimigas e dilui o ódio em Verona, restabelece, na dor, o equilíbrio da vida na cidade: o amor cumpriu o seu ciclo de criação.
Afinal, a lição da peça, surpreendente como a poção de um mago iluminado, reza que o amor prevalece, o amor é sempre a razão da existência, é o segredo sublime do ser. Um ódio tão sólido, tão grande, só poderia gerar o amor mais delirante e absoluto, caminho para a pacificação.
Vale reconhecer, por fim, que não somos renascentistas, não acreditamos mais nestes jogos de opostos para explicar a vida, nossa vã filosofia seguiu outros caminhos, mas a beleza desta construção poética teatral é bem oportuna – sem dúvida, é deste clima que estamos precisando. Portanto, não perca de jeito nenhum, aproveite, tome um banho de amor, faça a sua alma cintilar sob uma nova humana luz. Você merece todo o amor deste mundo.
Autor: William Shakespeare
Músicas: Marisa Monte
Concepção e Direção: Guilherme Leme Garcia
Adaptação e roteiro musical: Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche
Colaboração Artística: Vera Holtz
Direção Musical: Apollo Nove
Direção Vocal: Jules Vandystadt
Coreografia: Toni Rodrigues
Lutas: Renato Rocha
Cenário: Daniela Thomas
Figurino: João Pimenta
Visagismo: Fernando Torquatto
Desenho de luz: Monique Gardenberg e Adriana Ortiz
Desenho de som: Carlos Esteves
Desenho gráficol:Victor Hugo
Produção de elenco: Marcela Altberg
Elenco: Bárbara Sut (Julieta), Thiago Machado (Romeu), Ícaro Silva (Mercuccio), Stella Maria Rodrigues (Ama), Claudio Galvan (Frei), Marcello Escorel (Sr. Capuleto), Kacau Gomes (Sra. Capuleto), Bruno Narchi (Benvoglio), Pedro Caetano (Teobaldo), Diego Luri, Kadu Veiga, Max Grácio, Neusa Romano, Franco Kuster, Gabriel Vicente, Laura Carolinah, Luci Salutes, Saulo Segreto, Thiago Lemmos, Vitor Moresco, Gabi Porto, Santiago Villalba, Daniel Haidar e Natália Glanz.
Músicos: Maestrina: Claudia Elizeu, Teclado: Gabriel Gravina, Violões e Bandolim: André Barros, Violino e Viola: Arthur Pontes, Cello Acústico: Fábio Meg, Percussão Orquestral: Gabriel Guenther, Harpa: Gelton Galvão.
Fotos: Felipe Panfili
Produção: Leme produções Artísticas e Aventura Entretenimento
Patrocínio: Circuito Cultural Bradesco Seguros
ROMEU & JULIETA
Local: Teatro Riachuelo Rio – Rua do Passeio, 40 – Cinelândia – Rio de Janeiro/RJ
Temporada: 9 de março a 27 de maio
Horários: sextas (20h), sábados (20h) e domingos (18h)
Vendas: www.ingressorapido.com.br
Preços (valores de entrada inteira):
SEXTA 20h
Plateia VIP – R$ 140,00
Plateia – R$ 120,00
Balcão Nobre – R$ 100,00
Balcão – R$ 50,00
SÁBADO 20h e DOMINGO 18h
Plateia VIP – R$ 160,00
Plateia – R$ 140,00
Balcão Nobre – R$ 120,00
Balcão – R$ 50,00
Capacidade: 1000
Duração: 2h
Classificação etária: Livre
*Cliente com cartão Pré-Pago do MetrôRio tem 50% de desconto na compra de ingressos
Informações para a imprensa
MNiemeyer Assessoria de Comunicação
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Teatro: veneno e remédio
Volta e meia o assunto aparece: o que se faz com uma peça ruim? A rigor, não há nada a fazer, apenas ver e tentar entender o que aconteceu. Como nasce uma peça ruim? Ninguém assina um fracasso por querer. Acontece. E detalhe importante: nem sempre uma peça é ruim para todo o público.
Já vi peças detestáveis que o público adorava, urrava de satisfação – exalava o sublime prazer de ser enganado sem arte – e eu não morri por ter estado por lá, no meio da plateia. Sobrevivi sempre e fiquei exercitando os neurônios para tentar entender o desastre, a sua função na linha de trabalho daquele artista. Há sempre uma lógica da arte ao redor das oscilações da arte.
Gosto muito de lembrar uma entrevista que fiz com o ator Sergio Britto (1923- 2011), em que ele se declarou contra o teatro na escola – no seu entender, o teatrinho escolar de papel crepom só poderia gerar pessoas de sensibilidade deformada, incapazes de entender a arte. O resultado seria afastar o público do teatro.
No entanto, conheci uma faxineira cujo maior encanto de toda a vida foi ter tido a chance de fazer teatro de papel crepom na escola primária, na Baixada Fluminense – por causa da experiência, ela adorava teatro e sempre que podia e o bolso deixava, ela ia ver as peças em cartaz. Não era uma especialista, enquanto convivi com ela nunca deixou de ser uma espectadora singela, mas ela dizia que sempre saía do teatro com a alma leve. Qualquer teatro, vale frisar – mesmo peças que, para especialistas, emanavam o mais puro tédio – faziam a sua felicidade.
Portanto, vale concluir a favor da boa intenção eterna do artista, da constituição humana positiva da arte. Quando alguém sobe num tablado, por mais sem noção que o exibido possa ser, ele acredita sinceramente ter algo importante, significativo mesmo, para passar adiante. Busca, então, transmitir esta sua descoberta, a sua produção, algo em que investiu energia e tempo.
O artista sabe dos seus riscos. No fundo da alma, teme ser um enganador desclassificado, um blefe. Mas mergulha, confia, não sabe fazer outra coisa. Existe a possibilidade, contudo, de uma hesitação, um vácuo, um vazio, um equívoco. E pronto – a obra não consegue mobilizar o outro, o espectador. Recebe uma avalanche de vaia, coisa rara hoje. Ou esvanece sob pura indiferença. Ou mobiliza um segmento reduzido. Mas, não importa: a obra está ali e sempre estará acionando um fluxo de energia e de comunicação viva, certamente o elo que incendiava a minha amiga faxineira.
Sergio Britto também tinha horror ao artista medíocre. Mas, convenhamos, ele existe, tem a sua função e o seu público. O modesto artista suburbano tem todo o direito à sua arte. Nem todo artista é genial, é Rimbaud, cada um faz o melhor que pode e, afinal, o verso do momento do grande poeta pode ser ruim. No meio de uma obra de excelência, um dia aparece o cascalho bruto, o verso torto, menor. Talvez uma procissão de pequenos artistas seja necessária para o nascimento de um ídolo.
Mas não é só isto. É mais. Instável, a natureza da arte. O próprio da trajetória da arte, de toda a grande arte, é ser acidentada. É impossível fazer uma obra prima todo o dia, só conceber grandes obras, perfeitas, por mais genial que o artista seja, por mais que disponha de condições ideais de inspiração e de produção.
A criação é um processo, atinge um grau mais elaborado em certo momento, mas passa por etapas de formulação mais problemáticas, menos nítidas, com menor clareza de concepção. Ter difusão da arte na sociedade e escola, educação para todos, impulsionam o refinamento da expressão coletiva. O teatro de escola é direito do cidadão, dever do Estado e oxigênio para a arte.
Na verdade, tudo pode ficar bem desfavorável para o artista, tudo pode ser bem mais difícil. Numa sociedade de escolaridade nebulosa, a expressão coletiva tende a ser turva. Num cenário teatral rarefeito, instável, com instabilidade de produção, como conseguir uma voltagem produtiva elevada, propícia ao fluxo criativo mais requintado, refinado? No caso do teatro, que não é obra solitária de atelier ou de escrivaninha e depende de condições materiais objetivas de produção, uma arena de arte hostil, como a brasileira, é um enorme obstáculo para o trabalho do artista.
Ainda assim, temos grandes artistas – temos artistas guerreiros capazes de sobreviver e produzir sob condições de trabalho detestáveis. No entanto, há um preço, temos sempre uma instabilidade grande de produção. Temos um contingente razoável de peças com resolução obscura. As obras fracassadas – as pecas ruins, digamos – se tornam bem mais dolorosas, pois não se permite, para o artista de teatro brasileiro, o horizonte de hesitação natural na produção de arte.
O artista teatral brasileiro tem que acertar sempre – o que é uma total impossibilidade. As peças aqui, boas ou ruins, têm pouco público, não podem viver em liberdade o seu fluxo de concepção e criação, vivem pouco tempo. O teatro brasileiro é um cemitério, cheio de fantasmas e de obras vítimas de morte prematura. O teatro é acidental, em lugar de ser um diálogo estético vivo da sociedade. Pouca gente frequenta o teatro para vivenciar a linguagem específica da encenação. Neste contexto, o teatro é outra coisa do que aquilo que ele é: é passatempo, é desfile de celebridades, é fru-fru social, é modinha, é caça-níquel, é passarela de vaidades, é lavanderia. Difícil, então, definir com objetividade o que seria uma peça ruim.
Neste jogo insano, dois fatores precisam ser muito valorizados: os prêmios, a escolha dos melhores de cada ano, e a grande produção, com oferta de condições de trabalho estáveis. São dois eixos de importância para o equilíbrio do mercado – devem favorecer a qualidade, a obra de artesanato sofisticado, estimular o burilado da arte.
A reflexão importa esta semana por conta de dois grandes acontecimentos – o primeiro, a cerimônia de entrega do Prêmio Shell de Teatro, exatamente a comemoração festiva de trinta anos do prêmio, uma noite de gala no Golden Room do Copacabana Palace. A lista de indicados, abaixo, reúne vários segmentos da arte, com ligeira tendência à valorização da pesquisa de linguagem e do vanguardismo. O Prêmio Shell se tornou um prêmio inquieto, preocupado com o experimentalismo e um tanto distante dos grandes nomes-monumentos da arte, apesar de ser concedido por uma gigante do mercado petrolífero.
O segundo acontecimento é, no mesmo dia, a estreia de Romeu e Julieta, de Shakespeare, em versão musical, grande produção da Aventura, cartaz do belo Teatro Riachuelo. A ficha técnica do espetáculo conta com profissionais do mais alto padrão e a expectativa é de que o Rio terá uma peça para celebrar a alma da cidade.
Além do grande volume de capital investido, nomes preciosos povoam a ficha técnica. A direção geral coube a Guilherme Leme Garcia, a preparação do elenco ficou sob a responsabilidade da atriz Vera Holtz. O cenário traz a excelência de Daniela Thomas. E vai por aí.
A montagem é de importância estratégica para a cena teatral atual por esta condição de grande produção de qualidade. E por trazer à baila, mais uma vez, um debate histórico importante. Assinada por Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, também responsáveis pela adaptação do texto original, a trilha sonora revela um nome novo para o teatro – Marisa Monte.
Assim como, no início do século XX, a música popular e o teatro estiveram casados e unidos na cena carioca, para deleite do público, o casamento desfeito volta a acontecer aqui. A música abandonou o teatro, fez carreira solo de imenso sucesso, fugiu para o radio, o cinema, o disco e o show. A volta é uma virada histórica memorável.
O caminho foi o segredo irresistível de Otelo da Mangueira, de Gasparani. Fora da linha do musical biográfico, que transpõe para a cena em música a vida de astros da MPB, este formato ousa buscar o andamento dramático de textos consagrados em canções de sucesso do nosso tempo. A ideia é maravilhosa, os artistas envolvidos exemplares e a chance de fazer a cidade cantar teatro é total. Ou seja, está em cena muito do que se precisa para ter peças excelentes, favoráveis à pujança do teatro. Em uma palavra: imperdível.
Foto: Felipe Panfili
Lista dos indicados da 30ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio de Janeiro:
Autor
Marcia Zanelatto por “Ela”
Walter Daguerre por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Braulio Tavares por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Pedro Kosovski por “Tripas”
Direção
Eric Lenate por “Love Love Love”
Rodrigo Portella por “Tom na Fazenda”
Luiz Carlos Vasconcelos por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Paulo de Moraes por “Hamlet”
Ator
Armando Babaioff por “Tom na Fazenda”
Gustavo Vaz por “Tom na Fazenda”
Adrén Alves por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Ricardo Kosovski por “Tripas”
Atriz
Aline Deluna por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Yara de Novaes por “Love Love Love”
Guida Vianna por “Agosto”
Juliane Bodini por “Dançando no Escuro”
Letícia Isnard por “Agosto”
Cenário
Aurora dos Campos por “Tom na Fazenda”
Mina Quental por “Mata teu pai”
Carla Berri e Paulo de Moraes por “Hamlet”
Sérgio Marimba por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Figurino
Beth Filipecki por “Ivanov”
Marcelo Marques por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Kika Lopes e Heloisa Stockler por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Marcelo Olinto por “Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba”
Iluminação
Aurélio de Simoni por “Ubu Rei”
Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni por “Mata teu pai”
Maneco Quinderé por “Hamlet”
Paulo Cesar Medeiros por “O Jornal”
Música
Marcello H. por “Tom na Fazenda”
Ricco Viana por “Janis”
Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Marcelo Alonso Neves por “Dançando no Escuro”
Inovação
“Que legado” pela ocupação cultural que propõe o diálogo entre profissionais de atuações e geografias diversas no Rio de Janeiro.
“Escola Spectaculu” pelo contínuo trabalho de formação e inserção de jovens profissionais na área técnica das artes cênicas.
Espetáculo “Tripas” pela forma de realização entre a universidade, através dos programas de pós-graduação, e a produção teatral.
Homenagem
Hélio Eichbauer por seu trabalho ao longo de mais de 50 anos de renovação da cenografia brasileira.
Consumidor de arte, no Rio, sofre: uma ida distraída ao show de Marisa Monte
Tania Brandão
Posted on 9 de setembro de 2012
A decisão foi política – verificar como está a vida do público consumidor de arte no Rio de Janeiro. A escolha foi fácil – um show de música popular, categoria grande espetáculo, em que eu poderia me mover bem anônima, situação que não seria garantida em uma peça de teatro. Mas, diante do resultado assustador, fiquei com vontade de tentar um dia uma peça, tipo grande espetáculo, para verificar como andam as desventuras deste sujeito tão sofrido, o cidadão público de arte no Rio de Janeiro.
O primeiro passo, comprar ingresso: comodista ou moderna, não sei qual o adjetivo mais adequado, optei por comprar on line, grave pecado. A primeira dificuldade foi o enorme sucesso do show – a escolha era a de comprar os melhores lugares possíveis, dois assentos vips dos vips. E a itinerância pelas páginas e dias parecia não terminar. Não havia mais lugar bom que prestasse em qualquer dia, apesar da antecedência da compra: uau, que sucesso! Sem opção, a saída foi comprar dois lugares na mesa 421 do Vivo Rio. Agora, depois do show, preciso dizer – como o Vivo Rio tem coragem de vender tais lugares para alguém? São péssimos! Mas voltaremos ao tópico.
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