Passa o tempo, fica a saudade
Vamos combinar: não foi em vão que o Brasil inventou a saudade. Foi para, agora, nesta altura da História, nos esbaldarmos, mergulhados nela. Para todos os lados que olhamos, em especial se nascemos na mui heroica e leal cidade de São Sebastião, somos arrastados por marés impensáveis – saudades do que fomos, saudades do que não viramos, saudades do que poderíamos ter vindo a ser.
Quando eu era criança, cansaram de repetir nos meus ouvidos que éramos o país do futuro. Na adolescência, vi a pátria virar a terra dos jovens. Naqueles tempos, chamavam o tal do futuro de porvir. E não foi uma ou duas redações que me obrigaram a escrever conjeturando a delícia futura anunciada no lema Brasil Ano 2000.
Ano 2000?!? Caminhamos para 2020 – o melancólico 2019 está no fim. Gostaria de ter guardado as minhas velhas redações para ler agora e, em vez de sentir saudades, me esbaldar de rir. Pois, naqueles textos, arquitetados a partir de leituras indicadas pelos dedicados professores, ninguém cogitava o desastre em que nos tornamos. Por ironia, defendo que a razão principal da nossa decadência desastrada sem elegância é óbvia: a falência da educação.
No belo texto de Martha Batalha, A vida invisível de Eurídice Gusmão, que acabei de ler e recomendo vivamente – não deixem o ano acabar sem ler – há um quadro acessório na trama bastante curioso. Ele diz muito a respeito da arquitetura de nosso abismo.
O jovem rico de Botafogo, de família nobre desde sempre no poder, não estuda, mas passa. Através de vários artifícios bem pouco éticos, se torna médico, para matar e aleijar pessoas, por ser totalmente desqualificado na profissão: podia ter estudado, mas não estudou. Mas isto não é problema: ele nasceu poderoso e será poderoso, para todo o sempre amém.
Portanto, a ruína da sociedade brasileira se funda neste pântano complexo chamado educação nacional. Ele é podre. E chegamos a um lugar tal que não adianta reformar o ensino, dobrar os horários de aula, entulhar as escolas com modernas tecnologias.
O primeiro passo para mudar tudo é revolucionar a situação profissional do professor. Os salários devem ser ampliados numa escala explosiva, a um ponto tal que nenhum professor genial pense em buscar outra profissão. E mais: estes professores revalorizados, aclamados, devem ditar as normas da educação, rever tudo – aí, sim.
Sem isto, nada adiantará. Ficaremos entregues à saudade. E à compaixão, diante de figuras heroicas que insistem, não esmorecem, abraçam sem medo e com a mais elevada qualidade de trabalho possível as lides da educação e da cultura.
O preço? Vai ser alto. Nos tornaremos um país triste. Esta alegria interior inexplicável, que nos incendeia o peito, ilumina os olhos e produz uma compulsão natural para o riso e o sorriso, vai se apagar.
Ela fala de uma inteligência brasileira, popular, rueira mesmo, uma arma de defesa do povo diante das podres elites nacionais. Nasceu e vicejou em épocas nas quais tanto o samba como a arte da vida não se aprendiam nas escolas. O tempo passou: sem escola, hoje, neste mundo tão especializado, não dá nem para pensar em querer sorrir.
O leitor implicante há de pensar – mas o quê, raios, o teatro tem com isso? Não me importo de repetir: tem tudo. No teatro antigo, a arte era uma prática de família, ou de praça, ou de mercado, ou de rua.
Existia uma forma de expressão cristalizada – ela reunia funções dramáticas traduzidas em personagens e ações, habilidades físicas tradicionais, locais de ação identificáveis, familiares. Portanto, havia uma estabilidade formal da arte. Isto não significava uma qualidade maior ou menor, apenas procedimentos fixos, capazes de adquirir, inclusive, um brilho ou impacto novo graças a este ou aquele talento.
As poucas escolas de teatro que existiram nestes tempos, eram escolas de treino, digamos, e não de formação. O professor trabalhava com o aluno os papéis adequados ao seu talento. A aula era estudo de texto no sentido direto: treinar o declamado, treinar os gestos convencionais adequados a cada situação e a cada caráter. E a aula seguia para a vida – uma ingênua, adequada para fazer a Julieta, por exemplo, poderia fazer papéis de jovem serelepe e apaixonada até os bojudos sessenta. E isto sem que o público tascasse pão velho na cena – claro, bastava que ela fosse uma grande atriz.
A escola de teatro surgiu como necessidade concreta com o teatro moderno. Surgia aí uma nova forma teatral, na qual a poesia cênica passou a reinventar o palco de forma surpreendente, sem funções dramáticas a priori e com a chance da invenção rondar o infinito. As coordenadas do palco mudaram, ganharam a assinatura do diretor. E o ator mudou.
O aparecimento de um novo ator, ainda mais plástico, mais disponível e mais inventivo, se possível, forçou a instalação de instituições escolares de um tipo novo. Método, disciplina, organização, estudo, domínio de amplo arsenal técnico e disponibilidade para a renovação permanente fizeram a diferença nos novos bancos escolares-teatrais.
Assim, logo se vê que hoje o teatro não pode acontecer sem um vínculo bastante complicado com a escola. Além disso, já se percebe muito claramente a função social do teatro – sim, ela está enunciada desde Aristóteles, quando ele teorizou a respeito das artes da imitação e da importância da imitação para o aprendizado humano. Mas a sociedade humana é lenta…
Parece muito evidente hoje, para vários segmentos dedicados à arte, à cultura e à educação, a potência decisiva do teatro para a estruturação da sensibilidade humana. Isto quer dizer que teatro, na escola, da creche ao vestibular, é artigo de primeira necessidade. Trata-se de uma forma sensível de pensamento, hábil para estruturar os mecanismos básicos de percepção do jogo social.
Não, não é difícil. Dá para entender bem claramente. No caso brasileiro, se tivéssemos teatro por toda a sociedade, em pouco tempo teríamos um outro horizonte de vida. Qualidade emocional, qualidade ética, qualidade racional, qualidade social – inúmeros campos são reelaborados profundamente graças à prática do teatro.
Talvez exatamente por isto tenha existido sempre por aqui uma força contrária ao teatro, uma força de inegável sucesso. A elite podre não pode cogitar qualquer saúde social. Lembre-se que, por mais polêmico que o teatro catequético de Anchieta fosse, no século XVI, havia um partido forte contrário à prática – o partido que preferia escravizar ou matar os índios, em lugar de fazer teatrinhos para lhes apresentar a cultura europeia. Mesmo que o teatrinho liquidasse com a cultura deles: não saiam nem escravos, nem mortos, como queriam os conservadores.
Nisto tudo, o mais importante a frisar é a capacidade vital do teatro, sua capacidade de resistir e sobreviver. Ele apanha, mas sobrevive. Neste fim de ano de 2019, o inventário da temporada aponta para esta pulsação impressionante, esta riqueza de vida arrasadora. Não contei quantas peças foram apresentadas no Rio este ano e nem sei se alguém tem esta conta. Mas, olhando o conjunto da temporada, pensando uma retrospectiva rápida do ano, salta aos olhos a pulsão de vida fremente – desculpem, não pude usar outra palavra.
Há vida, mas há vida como vibração, agitação, pulsação. Não é vida latente, marca-passo. Quem é de teatro vive disso e pendura a alma na cena. Pode ser teatro de sobrevivência, mas é sobrevivência com sangue nos olhos. Considere-se, por exemplo, a profusão de monólogos que varre a cena carioca. Eles não são pretextos para exibição narcisista ou simplórios cavalos-de-batalha caça-níqueis, na sua imensa maioria. São projetos de estudo dotados de uma essência teatral forte, objetiva, estudada.
E mais. Apesar da maré contrária, ainda sobrevivem algumas montagens com elenco numeroso. Elas aconteceram em particular no musical, um gênero profundamente sintonizado com a alma brasileira e de forte apelo para o publico – decididamente, temos uma plateia dançante.
Contudo, é preciso ver que o rendilhado da cena comporta uma identidade múltipla, muito variada, em sintonia com os temas quentes do presente, mas sem embarcar na moda, e sim com força para trazer as inquietudes do tempo. Vale considerar esta característica tão carioca, marcante no nosso palco, a voragem de olhar o mundo, a coragem de encarar as mazelas e as dores locais. Somo, para sempre, para o bem e para o mal, aldeões cortesãos.
Assim, é possível falar de uma cena grandiosa: o adjetivo importa por dois motivos. O primeiro, fala da garra destes artistas aferrados à sua arte e à sociedade em que vivem, o segundo fala de um fazer que não mede esforços para estar presente aqui e agora, não importa o custo pessoal envolvido. Trata-se de uma grandiosidade que comove – e por isto consegue resposta de público. Ainda.
Portanto, vale desenhar um perfil do ano através da listagem dos espetáculos que se destacaram por alguma razão particular. O simples registro numa lista dos maiores destaques pode revelar uma visão da dinâmica da cena que passou. Num próximo texto, será feito um breve comentário a respeito destes feitos da cena.
Não há como deixar de agradecer a todos a doação generosa, a criação ousada, o investimento delicado na energia social brasileira. Sim, estes artistas nos fazem viver o nosso presente e nos levam a pensar a respeito do que somos. Quais os nossos desejos, as nossas potencias – o quê, afinal, fazemos conosco e com a dádiva de estarmos vivos, aqui e agora? Graças a eles, aos seus momentos de devoção à arte, escapamos da agrura da saudade. Ah, esperança é belo sentimento – quem sabe a arte nos ajuda a construir uma outra sociedade?
Serviço:
Destaques de 2019 – ordem alfabética:
Segundo Semestre:
3 Maneiras de Tocar no Assunto
Angels in America
Company
Despertar da Primavera
Diario do Farol
Embarque Imediato
Fim de Caso
Folhas de vidro
Freud & Mahler
Grandes Encontros da MPB
Nastácia
Oboró masculinidades negras
Os Impostores
Relâmpago Cifrado
Sangue
Simples Assim
Sylvia uma comédia romântica
Um beijo em Franz Kafka
Primeiro Semestre:
40 anos esta noite – Teatro Ipanema
A próxima estação – um espetáculo para ler
A Verdade
Abujamra presente
Ariano o cavaleiro sertanejo
As comadres
A crianças
Cálculo ilógico
Cole Porter – ele nunca disse que me amava
Eu, Moby Dick
Merlin e Arthur
Meu destino é ser star
O ator e o lobo
O cego e o louco
Os desajustados
Quebrando regras – um tributo a Tina Turner