A tragédia teatral do nosso tempo
Crônica teatral
Somos privilegiados: temos um vasto universo histórico diante de nós. E, modernos, adquirimos o hábito de olhar o passado tentando ver lá, ainda que longe, as formas de outrora. Contudo, somos contemporâneos, pós-modernos – então nos deixamos levar pela mania de julgar o que passou. Como se fossemos modelos de algo ou como “se” o passado pudesse ter sido diferente.
Os historiadores detestam o tal do “se”. Para a cabeça acostumada a pensar os saberes do tempo, o que foi, foi e será o que foi, eternamente. Importa saber, assim, apenas quem olha o passado, se olha com olhos de ver, de sonhar, de fabular, de aproveitar, torcer, enganar… No fundo, todo olhar é oblíquo, muito embora muitos olhares se inclinem para a defesa das algibeiras.
Pois o passado pode ser uma produção. Sempre atraiu os poderosos, para a criação de lastro para o poder. E com frequência foi vetado – ou velado – para a plebe ignara. Sim, com frequência se pode ouvir escolares reclamando da tortura de estudar, nas aulas, apenas múmias. Nem sempre os professores de História saem do Egito e chegam ao presente.
Existe até uma velha tradição bolorenta da historiografia, que reza por uma cartilha curiosa, segundo a qual não haveria “distância crítica” para estudos de fatos próximos, atuais, condenados ao jornalismo. A presença imediata dos fatos levaria o historiador a uma visão parcial, deformada, sem densidade.
Contra o velho tabu surgiu a História do Tempo Presente. Uma disciplina desafiadora, submetida a limites cronológicos móveis, pois os seus limites seriam sempre, de um lado, o presente, do outro lado a contagem de uma geração. Por convenção os historiadores consideram uma geração como um período de sessenta anos. Assim, a HTP está sempre mordendo o calcanhar dos contemporâneos, colada na vida de quem está por aqui.
A tarefa não é fácil: os documentos relativos ao presente por vezes estão submetidos a sigilo e os seus protagonistas, vivos, possuem direito de interdito, além de frequentemente guardarem interesses nem sempre confessáveis. Em certo grau, o dilema do estudo do presente também envolve os estudos teatrais.
Durante um longo tempo – praticamente até o século XX – a história do teatro foi vista como uma disciplina derivada da História da Literatura. Sob este enfoque, os estudos históricos da cena ignoravam toda a parafernália acionada pelo palco e se detinham na análise da literatura dramática. O resto seria descartável. Mas, o século, ao trazer o teatro moderno para quebrar a ribalta, trouxe novidades, em especial a necessidade de escrever a respeito da cena moderna.
Para os espíritos mais conservadores, não se poderia escrever a história das montagens, das encenações, a não ser quando elas tivessem sido vistas pelo pesquisador – talvez se pudesse cogitar que eles queriam a História do Teatro como uma espécie de História do Tempo Presente avant la lettre. Com uma diferença: segundo esta linha de pensamento, este historiador do teatro, muito ousado, precisaria ser crítico de teatro, pois só a condição de crítico lhe daria o distanciamento necessário para o estudo de atores e artistas do seu próprio tempo, sem provocar iras ciclópicas, em virtude de ocasionais vaidades feridas…
Surgiu assim um embate curioso, a necessidade dos novos historiadores do teatro quebrarem fronteiras rígidas em benefício do pensamento a respeito da cena atual. No caso brasileiro, as tais fronteiras por vezes parecem ser muralhas assustadoras. De saída, surge a fragilidade ou a ausência das políticas de preservação, de constituição de acervos, de tratamento das fontes documentais.
Num país em que grandes museus, como o MAM, o Museu Nacional e a Casa da Palavra, pegam fogo e viram cinzas, como lutar pela preservação da memória teatral com resultados efetivos? No Rio de Janeiro, outrora capital cultural do país, o tradicional Museu do Teatro foi desativado e pulverizado, ninguém sabe como, sem que explicações claras fossem oferecidas a consulentes, frequentadores e doadores e herdeiros… O acervo do museu era precioso, na origem formado por excelente material relativo à história do Theatro Municipal. Sumiu.
Isto se traduz em algo grave – o historiador de teatro inclinado a trabalhar com a história atual do teatro brasileiro não enfrenta um campo de estudos fácil, se comparado à escassez de dados dominante para os estudos dos séculos XIX ou XVIII. Os acervos são desiguais, vivem em boa parte sujeitos a todos os tipos de intempérie. Um exemplo áureo? Na internet, é possível acompanhar a luta, em Brasília, para resguardar o espetacular acervo de Dulcina de Moraes (1908-1996), para impedir a sua destruição total.
Contudo, outros ventos preocupantes envolvem o teatro de hoje. Para a atualidade, os espíritos andam inquietos. A crise do jornalismo, com o fechamento de jornais e a redução drástica dos espaços dedicados à cultura, liquidou com o maior acervo de fontes utilizado para os séculos XX e XIX: as críticas, colunas, reportagens, tijolinhos, coberturas fotográficas praticamente desapareceram. Os registros jornalísticos são mínimos.
E o pior. Nas salas de espetáculo, os tradicionais programas de sala se tornaram figura rara, quando muito substituídos por QR CODEs. Muito material é lançado na internet, mas quem cuida de armazenar o que é depositado no ar? A supressão do suporte de papel trouxe um quadro inteiramente novo para o debate a respeito da memória teatral. Qual o registro que vai ficar do teatro do nosso tempo?
Assim, o teatro brasileiro contemporâneo enfrenta um brutal risco de liquidação histórica, pois a memória teatral do nosso tempo se tornou evanescente. Tanto o historiador atual, empenhado em escrever a História Teatral do Tempo Presente, quanto o historiador do futuro estarão diante de um vazio de fontes incontornável. Um pouco como se o teatro, entre nós, tivesse desaparecido.
É curioso observar que, nos palcos do país e em particular no Rio de Janeiro, o teatro brasileiro se tornou um morto vivo, um teatro ao contrário. Pois se o teatro existe para ser um diálogo intenso com os contemporâneos, as temporadas curtas ou curtíssimas resultantes dos modestos recursos das leis de incentivo fazem com que as peças nasçam mortas. Elas saem de cena antes de conquistarem um amadurecimento de sua proposta, que só surge a partir do diálogo com o público.
O quadro, então, não se resume a um dilema de historiadores, mero pesadelo da academia: atinge toda a classe teatral e, como o teatro é uma produção social, envolve toda a sociedade. O teatro não acontece na solidão do atelier ou do escritório, depende de ser público. Ou não é.
Uma sociedade profundamente violenta, na qual diferenças de opinião ou de interesses podem ser resolvidas à bala, na qual matadores de aluguel pipocam por todos os lados, na qual não se aceita livres escolhas de gênero, não se respeita a plena liberdade da mulher e se comete barbaridades em função de ideias racistas, o teatro parece ser um hóspede indesejado.
Ao mesmo tempo em que, contemporâneos, temos toda a história da nossa miséria e da nossa glória ao nosso dispor, ao lado da história de todo o mundo, não temos o palco vibrando para saudar esta imensa possibilidade de conhecimento sensível. Talvez seja importante ver, aí, o quadro síntese da tragédia nacional.
O quadro expõe uma cena social de desalento que a História, outrora tida como a grande mestra da vida, não pode ajudar a resolver, até porque não pode contar com aquele que já foi definido como um dos grandes espelhos da vida, o velho e bom teatro.
Uma esperança? Vamos lá. Mestra da vida, espelho da vida… Talvez estes sejam pensamentos antigos, ultrapassados. Se assim for, resta apenas ao nosso alcance o prazer de viver o caos. E talvez ele não seja nada teatral, mas, sem dúvida, apenas caótico.