High-res version

         Samba no brejo imperial

É a maldição de D. Pedro II: seremos ignorantes para todo o sempre. Bárbaros e selvagens. Os monarquistas, por favor, me perdoem a puxada de tapete assim, imperial. Vamos para a polêmica. Precisamos saber ver o mal que nos acomete, antes que não haja mais remédio.

Vivemos um caos. Não, o culpado não é o corona vírus, ele só levantou o véu do rosto do monstro. Já estávamos em agonia progressiva há algum tempo. No meu entender, a crise vem de longe, aconteceu por causa do século XIX podre. Quer dizer – graças ao bendito imperador.

Por vezes, tenho a impressão de que este negócio chamado Brasil vai explodir, vai se dividir em 5 ou 6 países. Ou mesmo em 27, quando estou mal humorada, qualidade rara no meu cotidiano, apesar dos enfáticos motivos ao redor.

Atribuo sim a nossa falha original ao imperador. Com espanto, constato: para alguns, ele foi um homem culto, intelectualizado, um cérebro impregnado pelas ideias mais avançadas de seu tempo. Ah, duvido.

Lamento, mas cada vez mais penso que o cenário para erigir a erudição do monarca era a nossa abissal ignorância, traduzida, em especial, na devoção brasileira à escravidão. Erudição de senzala, sem humanidade, não me parece digna do nome erudição.

Impossível considerar a existência de um estadista culto se o sujeito se manteve capaz, sempre, de tolerar a prática da escravidão. Se o governante não tornou a escola pública universal. Não lutou com tudo para erradicar o analfabetismo.

O Brasil se destacava como uma sociedade de analfabetos, analfabetos de letras e analfabetos sociais, estes uma gente tosca por vontade própria, mas endinheirada. Consequentemente, o imperador deve ser considerado responsável, logo, pela consolidação de uma sociedade de castas.

Sim, sociedade de castas, a maior herança legada pelo império escravista. Ela permanece em vigor: não existe ainda no Brasil a categoria universal de cidadão. E ainda temos escravos, volta e meia se anuncia um caso.

A sociedade de castas nasceu do pacto entre fortuna e poder, para cimentar a escravidão. Veio lá da colônia. No império escravista, mesmo liberto, caso conseguisse, o indivíduo seria uma coisa social, não passaria a sujeito pleno, quer dizer, cidadão, nunca.

Como assim, sociedade de castas? Vejamos. Além dos escravos, que eram negros sequestrados na África ou mesmo pura e simplesmente filhos de escravos (aliás, estupradas de rotina, as escravas podiam ter filhos brancos, mas ainda escravos), a sociedade era pródiga em párias. Ser branco, portanto, não significava ser poderoso, o voto era censitário.

Assim, o acesso ao direito de votar não era universal. Dependia da fortuna do sujeito. E para ser votado, então, era preciso ser da nobreza tupiniquim – em outras palavras, ter muito dinheiro, posto que sangue nobre, por cá, não corria. Era uma nobreza fake, feita pelo imperador. Os títulos de nobreza quase todos eram comprados, por dinheiro ou bajulação.

Até hoje, as noções de voto, democracia, dinheiro e poder persistem confusas. Nas últimas eleições, apesar de ser um relato subjetivo, soube da venda de votos por R$50,00 na Baixada – a simples existência da versão, seja ou não verdadeira, diz muito do que somos.

Esta miséria existencial e intelectual da sociedade se ancorava, no Império, num vazio institucional boçal, um outro pecado imperdoável do imperador pseudo-esclarecido.  O Brasil atravessou todo o século XIX sem ter um código civil.

O primeiro código civil brasileiro foi  sancionado apenas em 1916, portanto na República. Apesar de a nossa primeira constituição, de 1824, estabelecer a necessidade de organização dos códigos civil e criminal, só este último foi elaborado.

Em decorrência, as relações entre as pessoas no jogo social imperial persistiram submetidas a um cipoal confuso de leis, em particular às Ordenações Filipinas, de 1623, quer dizer, leis coloniais. Ditadas pela União Ibérica!

Por trás desta negação do reconhecimento da realidade social de vida do cidadão, qual o grande poder preservado? O escravismo e suas correlações. O que se celebrava? A propriedade sobre pessoas reduzidas a coisas.

Por incrível que possa parecer, dois fatos me levaram para este pensamento urgente. O primeiro, a posse do novo prefeito do Rio, Eduardo Paes, um candidato com vínculos nobres – no melhor sentido do termo, espero – com a realidade social dos subúrbios e periferias da cidade.

Espera-se que o Senhor Prefeito  faça de seu mandato um instrumento para a proclamação da fidalguia maior do Rio. Para tanto, ele precisará investir de forma maciça na educação, criando não só uma ampla plataforma educacional cidadã, mas centros educacionais de excelência.

O que significa falar em centros educacionais de excelência? Pois o segundo fato responsável por alavancar este texto foi uma leitura. Estou entregue, com extremo prazer, às páginas impressionantes da biografia de Michelle Obama. Deveria ser livro de cabeceira de todo ser humano afinado com a existência hoje.

Sim, o tema é mais vasto do que a Via Láctea. Mas destaquemos um ponto – as referências preciosas de Michelle Obama às escolas públicas democráticas e de acesso universal, por mérito, que estiveram ao seu alcance.

Na infância e na adolescência de Michelle Obama, em Chicago, existiram formas democráticas de acesso aos estudos e à cultura, bem como à prática de esportes. Dava para idealizar, desejar e realizar.

Uma criança pobre podia sonhar com a alta cultura e chegar lá. Bastava querer e correr atrás – sem que isto fosse uma deprimente corrida de obstáculos ou uma fieira de humilhantes pedidos de favor.

Penso na urgência de investimentos monumentais em educação no Rio de Janeiro – e no Brasil também. Penso nas escolas modelo que existiram por curto tempo na cena carioca, em particular aquelas inauguradas por Carlos Lacerda.

É muito fácil fazer, se o político for estadista, se o prefeito não for mesquinho, se houver transparência de procedimentos e vontade de trabalhar. Basta não ser imperador das trevas.

A única forma eficiente para detonar a nociva herança imperial que arrastamos é a aclamação da escola universal e da escola de excelência como prioridades da cidade. E a visão precisa ser global – educacional também no sentido cultural.

A Prefeitura precisa dar as mãos às escolas de samba, por exemplo, para fazer com que elas se tornem agentes culturais perenes e integrais nas suas comunidades, deixem de ser efemérides. Cada quadra precisa se agigantar como centro cultural.

Sim. Centros culturais cariocas – com aulas e oficinas de artes, apresentações teatrais, bibliotecas, cineclubes, galerias de exposição de arte, janelas para o mundo e para infinitas possibilidades. Importa fomentar um modelo nosso, híbrido como nós – em que tanto a expressão da comunidade como o acesso aos patrimônios culturais universais se tornem rotinas.

Para as urgências do teatro, às voltas com a crise da crise, o projeto de implantação de centros culturais nas escolas de samba permitiria a ampliação da prática teatral na cidade. Uma via de mão dupla, vale destacar.

Como assim? Ora, o Rio de Janeiro precisa de muito teatro para trabalhar a sua identidade urbana cidadã. Só o teatro, no seu reconhecimento íntegro do humano, pode oferecer ao cidadão instrumentos sensíveis para o seu profundo autoreconhecimento. Imagine o tamanho da conquista logo ali ao alcance da caneta?… Aliado à escola universal, o teatro, uma arte hábil em reconectar o ser com a sua potencialidade.

Para as escolas de samba, seria afinal o reconhecimento merecido de sua majestade. Tanto haveria a ruptura com a ideia de que samba e carnaval são datas fechadas em si no calendário, como se abandonaria o preconceito antigo, de atrelar o samba a práticas de contravenção. E mais.

O tema toca a alma da cidade. A cultura carioca se funda profundamente nas escolas de samba e no carnaval, é urgente levar adiante esta forma social de ser, uma prática libertadora. Dançar na rua faz toda a diferença na vida e o mundo precisa saber disto.

Ainda estamos envoltos nas incertezas da pandemia – o ano começa sob nuvens pesadas, um novo ciclo de isolamento e de paralisação geral desponta por toda a parte. A vacina virá, mas ainda não sabemos ao certo se trará a nossa libertação.

Não importa: para quem tem cabeça e pensa, apesar das profundas forças obscurantistas que regem a sociedade brasileira, vale fazer projetos. Logo, quem sabe, eles poderão ser postos em prática.

Projetos: este é o nome do momento. Eles não faltam para o atual prefeito, ele sabe muito bem a lição régia que precisa dominar, cantar na ponta da língua. Quando se lê Michelle Obama, se vê que projetos não lhe faltaram e que ela soube desde pequena como executá-los para se tornar a figura preciosa de mulher que é hoje.

Ela contou, no entanto, com estadistas capazes de criar instituições aptas para garantir às crianças e aos jovens o direito de realizar os seus projetos mais ambicionados. Não esbarrou num governante dedicado às próprias barbas e a delírios pessoais de saber.

Que Eduardo Paes perceba o tamanho de seu desafio e persiga com afinco um projeto redentor para o Rio. O futuro dirá de sua grandeza: o julgamento nascerá da generosidade do seu projeto diante das necessidades ditadas pelo próprio futuro.

SERVIÇO

Para saber mais sobre o Código Civil Brasileiro, um artigo esclarecedor:

https://jus.com.br/artigos/60951/nosso-primeiro-codigo-civil-demorou-quase-um-seculo

PARA LER – Michelle Obama –

Foto – Arquivo Nacional – Desfile da Escola de Samba Portela, 1958, bicampeã do carnaval Rio de Janeiro, 1958. Correio da Manhã.