
Ei, Você aí! Um milionário chamado teatro
“Existe uma superstição teatral curiosa: ela reza que não se deve propalar a falta de sucesso. Para este modo de exorcizar a maré baixa quando ela já está acontecendo, vale sempre afirmar a potência da bilheteria. Por exemplo, falar que está dando meia casa, mais ou menos, algo por aí, ainda que a sala esteja às moscas.
Pois bem: gosto desta superstição e quero sugerir a criação de uma outra. O ponto a considerar é simples – toda obra de arte contem força para encontrar o seu público. A força está em latência na obra, irradia para o espaço ao redor e os que têm identidade seguem ao encontro, enfeitiçados, para conferir. Não estou desmerecendo a propaganda, ela ajuda, mas não é a alma do negócio. A alma do negócio-teatro é a força da obra, em potência e, em contato com o público, em estado de expressão.
A superstição que eu decidi criar é simples: toda obra de teatro, para acontecer, precisa ter dinheiro de teatro, ou então… a força da obra encrua, não acontece, não abraça o público. E, aí, adeus plateia. Não, não estou falando daquelas cédulas de mentirinha, adoradas pelas crianças. Estou falando de dinheiro vivo, de verdade, gerado pelo próprio teatro, pela bilheteria.
Para os iniciantes, marinheiros de primeira viagem, uma outra superstição seria criada, a dos padrinhos de camarins. Profissionais ou grupos mais experientes, felizes com a renovação da arte, investiriam um valor bom para viabilizar a produção de estreia de novatos, sem dinheiros de teatro ainda. Haveria até uma festa de batismo.
Qual o sentido desta superstição, os jovens mais inquietos logo perguntariam? Simples como água: tornar a classe mais definida enquanto categoria produtiva, mais unida e mais independente dos poderosos e dos donos do dinheiro social. Seria, de certa maneira, uma guinada para completar, afinal, a obra iniciada (e sonhada) por Mozart.
A prática já existe – em parte. Muita gente de teatro reinveste em teatro os lucros e mesmo a riqueza pessoal, as economias, a poupança. Já vi gente vender tudo – carro, apartamento, bens móveis – para conseguir a dotação necessária para uma produção. E existem as vaquinhas virtuais, crowdfounding, das quais participam a categoria, amigos, familiares.
Mas o que considero necessário é um outro foco. A ordem agora seria profissionalizar, profissionalizar a um ponto que passasse a existir, com expressão econômica forte, o dinheiro teatral. O tema não é local, exclusivamente brasileiro. E pelo andar da estrutura do showbiz, vale pensar a hipótese de que uma configuração internacional de mercado nova pode surgir.Um diálogo novo palco-plateia, em especial ali onde o Estado não faz caso da arte, como é tradição no Brasil
Na França, acabou de ser lançada a obra Financement participatif: une voie d’avenir pour la culture?, publicada pelo Departamento de Estudos da Previsão e das Estatísticas, do Ministério da Cultura da França, e Presses de Sciences Po. Vale assinalar a função deste departamento: a análise dos futuros globais possíveis, setoriais e temáticos, a partir de estudos e pesquisas, com o objetivo estratégico de determinar a ação pública. Vale dizer que o ministério não faz apenas contas para repartir mesadas, mas ele pensa a arte e planeja as estruturas essenciais para a sua prática.
A obra é muito oportuna. Ela parte da constatação de que o financiamento participativo não é novo, se for considerado o caso de Mozart. Já no século XVIII, reza a lenda, o compositor teria recorrido à prática, ansioso para ter o direito à livre expressão de sua arte, frente aos mecenas e patronos. Lenda ou verdade, de toda forma, o mercado de arte ocidental começou a se estruturar no século XVIII e, a partir do século XIX, efetivamente se constituiu como mercado.O artista se tornou livre para se vender na praça, para quem se dispuser a lhe dar um dinheiro em troca de sua arte. Em tese, o artista se libertou. Deveria se tornar realidade de mercado por sua capacidade de criar…
Hoje, com a internet e os computadores, o financiamento participativo se tornou uma força econômica respeitável, segundo os autores do livro. Tornou-se fácil colocar um projeto no ar, à disposição de uma comunidade de internautas, para ser analisado. Após um pouco mais do que um decênio, numerosos projetos artísticos e culturais foram beneficiados por este procedimento. Os fundos coletados por esta modalidade de produção reuniram, segundo os autores, para a cultura, 45 milhões de euros. Financiamento participativo e autoprodução são práticas em expansão, cresceram muito nos últimos dez anos.
Os autores, François Moreau e Yann Nicolas, se perguntam a respeito das modalidades e dos efeitos deste procedimento, a partir de dados apurados nos sites Ulule, KissKissBankBank e Touscoprod. Uma das surpresas proporcionadas pela análise do perfil dos contribuintes foi a revelação da conexão, talvez inesperada, entre proximidade geográfica e contribuição.
Uma das perguntas de importância no texto consiste em dimensionar o que, afinal,os produtores anônimos financiam – o tema importa para o planejamento cultural e para o pensamento a respeito do futuro da cultura. A preocupação, no caso, era definir se eles engrossam as mesmas tendências favorecidas pelos setores profissionais e institucionais, tradicionais, ou se contribuem para fazer surgir uma diversidade maior no mapa dos projetos artísticos.
Levando adiante o pensamento sugerido pelo livro, há um raciocínio provocativo importante.A linha de raciocínio conduz a duas constatações de impacto – em primeiro lugar, a necessidade vital de que cada arte assuma a sua potência econômica, governe a sua estrutura de produção. Urge, portanto, tomar iniciativas capazes de fazer com que o teatro constitua o seu capital – o controle do processo de produção precisa ser assumido pelos artistas, inclusive na geração do capital.
Em segundo lugar, é possível deduzir com muita clareza a função inteligente que um Ministério da Cultura pode – e deve – ter junto à sociedade. O Ministério da Cultura precisa pensar a cultura e se dedicar à estruturação do lugar social das práticas culturais. Isto se considerarmos, ao menos em parte, a experiência francesa – lá, em lugar da Revolução Industrial, aconteceu uma Revolução Cultural e a indústria da cultura francesa se tornou senhora do mundo. Se os ingleses dominavam os corpos, a França passou a dominar as almas.
No caso francês, se o ministério foi uma câmara normativa e produtiva, tal se deu até o século XVIII – daí o desespero de Mozart, ainda que ele não fosse francês. Para o bem e para o mal, o artista precisa escutar os mecenas e os gerentes da política da vez. A partir da estruturação progressiva do mercado, o ministério manteve instâncias de produção/criação, tais como a Comédie Française, mas a sua função de instância estruturante se revelou mais importante. A arte cresceu ao redor. Portanto, em lugar de financiar a produção, cabe ao estado contribuir para afiar a estrutura de produção.
A rigor, a percepção de que a cultura necessita ser instituição, de que valores clássicos, canônicos, precisam ser trabalhados para que sobrevivam como patrimônio comum e possam, assim, gerar o campo da cultura, integra a própria definição de ação cultural do Estado, ao menos no caso francês. Há, por exemplo, uma junção admirável de educação e cultura a favor do teatro na França.
É o caso da escola Théâtre Molière Sorbonne, fundada em 2017 sob a direção de Georges Forestier. Ligada à universidade e à academia de formação superior de professores e de profissionais da educação de Paris, a iniciativa promove um estudo histórico vivo de Molière. Em dezembro será apresentado o espetáculo Les Facheux, primeira comédia balé do autor, acompanhado com a música original e interpretação historicamente informada.
O projeto pretende pesquisar e divulgar o espetáculo teatral em sintonia com a sua historicidade. Seria um pouco como se, no Brasil, a Escola de Teatro da UNRIO criasse um Teatro Martins Pena. A partir de pesquisas históricas minuciosas, a instituição ofereceria, com a parceria do Instituto de Educação ou uma Faculdade de Educação pública, montagens dos textos de Martins Pena orientadas para a sua historicidade. Em Paris, os ingressos custam um preço acessível e são ainda mais baratos para estudantes abaixo dos 18 anos.
Estes casos ilustram um pouco o que se tenta falar aqui a respeito de estruturação do mercado. A suposição é a de que seria a fórmula ideal. De um lado, o capital, a prática, o teatro acontecendo, com bastante autonomia econômica e remota dependência do governo e do Capital Social. Do outro lado, o Estado e o seu cortejo de ações para garantir a infraestrutura produtiva, a formação de plateia, os alicerces da cena teatral maior. A construção de novos teatros, por exemplo, seria uma das prioridades deste formato do Estado.
Não é difícil definir um Estado estruturante, diferente do Estado paternalista que age nas intervenções imediatas. Uma política editorial consistente, por exemplo, precisa ser prática efetiva do Estado. Caso existisse esta concepção da cultura no Brasil, a carnavalesca Rosa Magalhães, cenógrafa, figurinista, diretora de arte, não teria esperado tanto tempo para publicar o livro E vai rolar a festa…, uma obra preciosa para a cena cultural brasileira.
Trata-se de um livro documentário, algo que se poderia chamar de doculivro. A obra reúne material da festa de encerramento das Olimpíadas Rio 2016 e das cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Panamericanos de 2007, no Rio de Janeiro. A rigor, o projeto do livro surgiu lá atrás, no trabalho de arquivamento do material de 2007. Mas não houve chance qualquer de encontrar um patrocinador. A referência ilustra a dificuldade para a produção de livros de cultura no país, em particular no caso do teatro.
Mas, afinal, o resultado deste trabalho de tanto impacto pode ser reunido e publicado, para efetivar o registro histórico e para constituir fonte de pesquisa para estudiosos em geral. Foram selecionados e editados desenhos, plantas, croquis, perspectivas, fotos do making off e dos espetáculos. Uma festa para o olhar. Uma oportunidade para comemorar a imensa capacidade criativa do brasileiro, da qual Rosa Magalhães é prova inconteste.
Portanto, capacidade de criação, inventividade, garra, disposição estética e disposição contemplativa não faltam por aqui. Falta dinheiro. Não adianta chorar e querer colo quando a mãe, no caso brasileiro, é uma viúva alegre, que já abdicou faz tempo da gerência da prole. Então, não há dúvida, é preciso produzir o dinheiro. Vale arregaçar as mangas e partir para o trabalho, mas com um rumo diferente, capaz, quem sabe, de transformar os sucessos de retórica em sucessos efetivos, fazer nascer um teatro aclamado pelo público como ato sonante de cultura, no qual o público vê, em cena, o resultado emocional do seu dinheiro. Neste espaço, a arte do teatro se torna ato social pleno e efetivo.
Financement participatif : une voie d’avenir pour la culture ?
François Moreau, Yann Nicolas
Presses de Sciences Po | Coéditions
Brochura- 18,00 €
Les Fâcheux de Molière
Jeudi 20 décembre à 19h45
Amphithéâtre Richelieu, Sorbonne Université
(17 rue de la Sorbonne, 75005 Paris)
Entrée : 10 € / 5 € (étudiants et lycéens, moins de 18 ans)
Réservations uniquement en ligne, avant le 19 décembre (pas de vente sur place) : https://www.billetweb.fr/facheux
Rosa Magalhães
E vai rolar a festa… (Ed. Nova Terra, 180 pág., R$ 80)
Foto: Fernando Tribiño / Divulgação.
LANÇAMENTOS
Restaurante La Fiorentina
Endereço – Avenida Atlântica, 458 A, Leme.
Data – Terça-feira, 27 de novembro, 19h.
Telefone – 2543-8395.
Cidade do Samba
Endereço – Rua Rivadávia Correia 60, Gamboa, Zona Portuária.
Data – Terça-feira, 11 dezembro, 17h.
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A prefeitura e o teatro da cidade
Nasci no Distrito Federal, capital cultural do país, capital do país. Durante a infância, me afeiçoei à ideia, por obra e graça do poder, hábil, naquela época, na arte de implantar em nós um profundo civismo. Quando decidiram mudar a capital, eu ainda era criança, mas não gostei nada, esbravejei. A vida seguiu de perda em perda, e foram retumbantes os meus furores domésticos contra o esvaziamento total da importância da cidade. Contudo, ela permanecia linda. E culta. Recentemente…
Bom, por conta da doutrinação insana que eu sofri no inicio da vida, uma cariocagem desvairada, detesto quando maltratam o Rio de Janeiro. Sou Distrito Federal, sou Guanabara, sou Rio de Janeiro. Sou esta pequena partícula de terra bronzeada incrustada nas montanhas cansadas deste litoral velho ao sul. Mexeu com o Rio, mexeu comigo.
Portanto, não desisto de lutar pelo Rio e penso que neste descalabro total em que vivemos agora só há uma saída: teatralizar a cidade. Transformar o Rio num grande fluxo de teatro a céu aberto, Teatro de Janeiro. O plano é diabólico, proponho que a arte do palco envolva tudo e todos, num reformismo mais avançado do que aquele que moveu um dos meus grandes inspiradores, Lima Barreto, carioca também, Distrito Federal destilado. Nada de Pereira Passos, a coisa tem que ser mais adiante! Cariocas, avante!
Começaria assim – faríamos uma intervenção decidida na gerência urbana mais ampla. Exigiríamos do alcaide que estivesse no cargo a adoção de um Plano Diretor de Vitalidade Urbana – o PDVU. O PDVU imporia uma visão teatral para cada recanto da cidade, detalhadamente, ao ponto que se pudesse ter uma cidade-poema cênico, uma instalação de arte coletiva capaz de deslumbrar todo o ocidente. Sim, a ação aconteceria por bairros e de bairro em bairro ergueríamos uma cidade-arte inédita, nunca vista no mundo, quiçá na Via Láctea ou mesmo em todo o universo. Seria uma teatralização moderna, construída a partir da realidade cotidiana aqui e agora, e não uma enxurrada de voos metafísicos.
É evidente que o lugar número um da proposta do PDVU seria Copacabana. A Princesinha do Mar seria transformada de maneira descarada no bairro trans, no bairro fantasia, no bairro sonho. Por todas as esquinas seria estimulada a implantação de lojas de fantasias. O traje típico de Copacabana seria “à fantasia”. Os salões de beleza – você sabem que Copacabana tem uma inflação de salões de beleza, não? – seriam estimulados, com redução de impostos, para que organizassem desfiles, mostras, encontros de Fantasia de Si. Quer dizer, além de andar metido em fantasia, o transeunte poderia usar os salões para transformar face, cabelos, superfícies maquiáveis.
As lojas de fantasias seriam (ou poderiam ser) verdadeiros ateliês de criação – fantasia encalhada, fantasia reciclada. Imaginação pediu, fantasia surgiu – qualquer um poderia encomendar aquela fantasia esquisita desejada por toda a vida sem esperança de realização. No Carnaval, seria permitido usar fantasia de gente comum, para surpreender os turistas desavisados que estivessem muito exaltados buscando adrenalina nas ruas do bairro. E Copacabana continuaria a ser assim a nossa maior referência universal. A trilha sonora seria o bolero e a marchinha, a chuva seria confete, as cortinas puras serpentinas.
Ipanema seria outra coisa – seria o bairro intelectual, suprema ambição de seus moradores célebres, e teria livros por toda a parte. Além de livrarias, teria praçatecas, digamos, praças com estantes para o acesso universal e pleno aos livros. E para organizar a brincadeira festiva solene do bairro, tão agradável, do livro-esquecido e do livro-revelação. O jogo teria regras simples: todo ipanemense teria que, uma vez por mês, abandonar um livro amado, importante para as letras do mundo, no santuário-mor do bairro, a Praça Nossa Senhora da Paz. E teria também que “achar” um livro para ler, dentre aqueles deixados pelos concidadãos. A teatralização seria o ato de ler – e mesmo quem não gostasse seria convidado a vestir o figurino, andar com páginas ao redor da alma. Ler em voz alta, em público, seria a suprema manifestação de amor e civilidade.
Alguns bares e esquinas seriam nomeados como academias ipanemenses. O assunto em suas mesas seria necessariamente a vida intelectual do bairro, da cidade, do país e do mundo, jamais trivialidades, fofocas ou besteirol. Uma ou duas esquinas seriam transformadas em locus poeticus – assim mesmo, em latim macarrônico – tribunas livres para a recitação de poesias. E a roupa ipanemense seria esta mesma que muitos deles usam, um misto de panos enviesados, fardão acadêmico, invenção e informalidade – aquela coisa de: veja, estou na moda. Ou: eu sou a moda! A música seria a Bossa Nova, claro.
E por aí seguiria o plano reformador, conduzindo as almas a outros lugares: distantes das agruras de hoje, eles se tornariam lugares maravilhosos. Mas as vocações destes lugares não seriam arbitrárias, seriam ditadas pela tradição local, nada seria imposto por ato de autoritarismo. A população seria ouvida duplamente, através da escuta refinada da tradição, a qual todo bom carioca conhece bem, e através de eleição popular, bairro a bairro, em assembleias públicas bem barulhentas e sem os riscos e os custos de modernices fantasiosas como as urnas eletrônicas.
Não vou expor todo o plano diretor aqui – não quero correr o risco de algum aventureiro dele lançar mão. Porém, alguns exemplos mais, bem eloquentes, podem ser expostos. No caso do barulho, vejamos. Reza a tradição carioca que o bairro da Urca, talvez por ser tão novo, ter idade ao redor de um século, se tornou notável por ser um paraíso de silêncio e tranquilidade, mesmo com as tsunamis tradicionais de suburbanos que varrem o recanto nos fins de semana de verão – afinal, isto faz parte da rotina do Rio.
No entanto, um belo dia inventaram a mureta e a pobreta e, tchibum, adeus silêncio. Em particular no verão, há um bafafá noturno de assustar sentinela distraído. Pois bem, considerando a tradição de quietude, o plano pretende propor para o bairro a situação de oásis da pesca. Aos jovens mureteiros e pobreteiros seria oferecida requintada formação em pesca. Por todos os cantos possíveis seriam abertas lojas de equipamento de pesca e os militares do bairro, nas horas aquarteladas ociosas nas matas, providenciariam belas minhocas nativas para refinar a qualidade da atividade. A Urca permaneceria pululando juventude à beira mar, mas haveria um grande silêncio, pois ninguém consegue pescar com barulheira. E note-se: a amurada da Urca é um ponto tradicional de pesca da cidade, nada seria feito contra o que já está na essência do que é.
Pois o plano não torceria nunca a vocação de um lugar. Exemplos? Pois bem – Cascadura poderia se tornar um bairro de comércio de pedras preciosas, em honra ao nome. A música? Chá-chá-chá – um som bom para casos calientes de amor alimentados tantas vezes por belas pedras. No entanto, a arte de tecer sapatos artesanais sofisticados, inclusive para fantasias de luxo e para bailados de qualidade, muito bem exercitada no bairro, seria mantida, pois seria também um ato precioso.
O bairro do samba seria, claro, Madureira. Mas a macumba e o bate tambor dividiriam morada, pois são parentes muito chegados e afins. Embaixo do viaduto continuaria a ter a festa dos ritmos urbanos da hora. A roupa ia juntar o branco ritual, as baianas e os shortinhos, com alguma ostentação nas beiradas. Vila Isabel não se aborreceria com o samba sediado lá para o meião da linha da Central, pois se tornaria morada da seresta e da vida de bar. As modinhas românticas embalariam as noites, em contracanto com todo o cancioneiro de Noel.
Para o Méier migraria toda a moda, mesmo com o jeans continuando com a sua sede em Vilar dos Teles. Sim, ok, Vilar dos Teles pertence a outro município, São João de Meriti, o plano diretor não vai se atrever a gerar conflitos intermunicipais, vale só o exemplo, para tornar mais clara a coisa. Veja-se bem um outro exemplo – Botafogo, outrora um bom reduto de lojas de produtos de macumba, se tornaria o abrigo das ervas, todas as ervas, com as fantasias de folhas nativas liberadas para os moradores. Chapéus de embaúba serão acessório banal, espanadores do calor sob o ritmo de polcas e lundus.
E isto sem conflitos com São Cristóvão, senhor das flores, embalado com o xaxado e todos os ritmos nordestinos comendo solto. Para a Tijuca iriam os médicos, hospitais, clínicas e assemelhados, toda a população junto, aderindo aos higienizados uniformes. A música sem dúvida seria a valsa. O rock dominaria Laranjeiras, pois lá estaria o bairro hippie, pazeamor e zen. Enfim, a geografia toda se tornaria ato de arte, a partir dos matizes da própria vida cotidiana, local, como se o gosto pela performance fosse a razão de ser da polis. Os teatros brotariam do chão como uma espécie de cogumelo ávido, pois seria preciso ter muitas assembleias e muitas representações das artes locais.
Parece delírio de quem já está desesperado diante da crise carioca sem fim? Devaneio louco de quem não aceita a situação patética de abandono da cidade maravilhosa? Encosto de alta voltagem das almas de dois dos cariocas mais profundos, o maranhense Artur Azevedo e o nativo de estirpe Lima Barreto?
Sei não. Pois desconfio que a coisa está nos ares, traduz o descontentamento abissal com as omissões governativas do momento. Podem me refutar, se eu estiver errada, mas achei tudo coerente, depois do meu delírio, quando li o release da deliciosa ópera Bastien und Bastienne, de Mozart, que será apresentada no Rio neste fim de semana.
Justamente ela estará em cartaz nos dias 14 e 15 de Julho, na Cidade das Artes, aquele insano monumento ao desperdício que a cidade foi obrigada a engolir. No PDVU a Barra da Tijuca, por razões muito evidentes, será o bairro da ópera, com grandiloquências urbanas novas prolongando as grandiloquências inacreditáveis locais. A Barra vai se assumir em veludo, véus, bordados preciosos, rococós. Portanto, o espetáculo é mais do que bem vindo, é precioso.
E basta uma olhada rápida nos detalhes da proposta para que se perceba a sua beleza e a oportunidade de tudo. A ópera foi composta por Mozart aos 12 anos, razão pela qual a versão apresentada irá incorporar a figura de um narrador menino que sonha uma visita ao Rio no futuro, uma visita a uma exposição do pintor Pieter Godfred Bertichem. Deslumbrado, ao acordar ele escreve a ópera. As cenas irão surgir aos poucos, enquanto ele escreve a música.
O artifício dramatúrgico permitiu à concepção da montagem incorporar imagens do Rio dos séculos XVIII e XIX – verdade, aquele Rio arrebatador que virou a cabeça de tantos artistas e estrangeiros – sugerindo, hoje, um passeio visual por uma cidade apagada no tempo, desconhecida de verdade para nós, na atualidade. Um ato de magia teatral, não há dúvida, imperdível – o enredo de Bastien und Bastienne traz exatamente este colorido. A história – um Singspiel – conta as desventuras de Bastienne, jovem camponesa que perde o amado, Bastien, para uma mulher nobre. Desesperada, louca para recuperar o amor perdido, ela recorre ao mago Colas, que aconselha ao jovem casal o que fazer.
O diretor Manuel Thomas, em boa hora para as dores do Rio, optou projetar em cena reproduções gigantes de artistas das missões francesa e austríaca – e este procedimento ofecerá ao público a rara chance de mergulhar num túnel do tempo peculiar, de banho de amor à cidade, um banho teatral restaurador da esfrangalhada auto-estima carioca.
Vê-se muito bem, portanto, que está em pauta um ciclo de celebração muito especial. O foco é a recuperação da cidade. Em sintonia com este movimento, o PDVU tem larga perspectiva de sucesso. Você, carioca, fiel devoto da mais bela cidade entre todas (nenhum carioca de verdade descrê deste dogma, mesmo que não o confesse publicamente), precisa começar a agir. Pois se o Rio de Janeiro é mesmo o coração do carioca, corra, antes que o seu órgão vital seja esmigalhado, depois de arrancado brutalmente do seu peito. Nos ensinaram a amar, agora querem nos levar ao ódio. Então, lembre-se: imposições do poder à parte, o Rio merece todo o seu amor. Precisa dele. Inventaram o carioca, acreditamos: não vamos abrir mão da velha fantasia.
Datas: 14/07 a 15/07
Horários: – Sábado:20h; Domingo: 19h
Duração: 60 Minutos em média
Local: Cidade das Artes
Sala: Teatro de Câmara
Classificação etária: Livre
Preços: Inteira : R$ 70,00/ Meia: R$ 35,00
Direção Musical e Regência: Evandro Rodriguese
Direção Cênica: Manuel Thomas
Pianista Preparadora: Eliara Puggina
Elenco
Bastien: Rodrigo Sammarco,
Bastienne: Chiara Santoro
Mago Colas: Rafael Siano
Mozart: Vittório Gava
Atlantis Opera Orchestra
I Violino: Kelly Davis Moura
II Violino: Sarah Cesário
Viola: João Reis
Violoncelo: Diogo Moura
Contrabaixo: Matheus Tabosa
Oboé: Ruan Pablo Ribeiro
Trompas: Jhonatas Oliveira, Felipe Alves.
Produção: Kether Arts
Imagem: Hospício de D. Pedro II, Praia Vermelha,Pieter Godfred Bertichem.