A ideia do teatro
Atores são pedaços do céu. Já conseguiu perceber isto? A afirmação foi escolhida com muito cuidado, com um objetivo claro: o desejo de escapar de visões ingênuas da arte. Parece estranho? Pois é. A formulação contém um artifício, um argumento a ser desdobrado. É uma provocação.
O tema é urgente, precisa ser debatido de forma exaustiva, pois, infelizmente, na sociedade brasileira, as visões ingênuas da arte predominam. Tecidas a partir de visões simplistas da cultura, elas são muito nocivas para toda a sociedade.
As visões ingênuas se situam numa extensa linha de pensamento, uma linha muito estreita. Suas origens remontam aos tempos coloniais, porém deixaremos este aspecto de lado. A linha citada, atual, pode ser traçada entre a crença primária na celebração oca, numa ponta, e a mesquinharia de não entender nem aceitar a arte, na outra.
De um lado, pulsam aqueles inclinados a pensar os artistas como se fossem mitos-vivos, seres excepcionais ou geniais. Para eles, quem faz arte está um degrau acima do ser humano comum. Os artistas seriam pessoas impregnadas de alguma substância especial – a fama, a glória, o gênio – capaz de erguê-los num pedestal.
Do lado oposto, há um mundo de sombras, onde seres das trevas, sempre errantes, vagueiam, obtusos, incapazes de compreender o significado da arte. Autômatos existenciais, consideram todas as artes como uma forma de vadiagem, uma singular ocupação de ociosos, um truque para fugir do grande valor da vida, o trabalho.
Os dois extremos são muito comuns. Entre eles, várias nuanças podem ser encontradas. Apesar de antagônicos, eles se equivalem, no fundo. Nos dois casos, o sentido do pensamento acaba por ser o princípio de ignorar a arte, recusá-la. As duas maneiras obtusas de olhar a arte são aparentadas porque revelam uma distância absurda frente ao universo da cultura.
Nos dois casos, a arte estaria fora da vida – e aí começa o problema. Evidentemente não se pode negar aos artistas o dom da diferença – quer dizer, o artista se define como artista por sua capacidade, inata ou cultivada, de contemplar a vida a partir de um lugar de linguagem específico. O artista pensa a vida e a sociedade a partir da sensação, da sensibilidade.
Portanto, ele agencia um tipo de percepção diferente do pensamento científico, tecnológico ou filosófico. No caso do teatro – o que mais interessa a este espaço – há um pensamento social trabalhado em cena, a percepção coletiva da existência. Isto quer dizer que o teatro é uma forma social de pensamento. Trata-se de um ato coletivo de pensar.
Não pense que a existência do coro, nas tragédias gregas, era apenas uma técnica menor ou datada, invencionice do autor. Nas tragédias gregas, aliás, mais do que em muitas formas teatrais históricas passíveis de estudo, a condição do teatro como forma de pensamento social aparece de maneira absolutamente palpável.
O tema é vasto e absolutamente sedutor, segue aqui apontado de forma muito breve. Vários textos podem ser lidos para ampliar o conceito. Interessa caminhar um pouco com a reflexão: se o teatro deve ser visto como uma forma do pensamento social de seu tempo em ação, em movimento, o que seriam os atores?
Certamente, não seriam filósofos. Nem os dramaturgos, autores dos textos, poderiam ser enquadrados nesta definição. Tanto é assim que a filosofia já se deu ao trabalho de distribuir bordoadas no teatro. A filosofia dispensa a carne, exalta o puro conceito.
Vale lembrar o melhor exemplo. Platão, quando conheceu Sócrates e se tornou seu discípulo, rasgou os textos teatrais que escrevera e se dedicou aos seus diálogos, apenas filosofia. E acabou escrevendo umas das mais importantes páginas da filosofia dedicadas à arte: expulsou os artistas da cidade ideal.
Portanto, autores teatrais são seres que se equilibram numa fina rede de tramas contraditórias, impregnadas de vida, mas filhas das ideias do seu tempo. A carne e o espírito andam juntas, constituem as obras, algo inteiramente subversivo, pois a carne deveria ser a vida opaca, automática, descerebrada.
Não, não é a mesma equação em vigor em todas as formas de arte: a carne, no teatro, é imediata. Pulsante. Se não fosse, ele não seria sedutor para a comunidade, não teria plateia. Assim, o teatro é prisioneiro de seu tempo e, por tanto, muitas obras teatrais se entregam de forma radical a esta chave: morrem com a época que as criou.
A materialidade das obras de arte literárias ou visuais não precisa ter esta sintonia tão estreita, tão profunda, tão automática. É possível ter escritores póstumos, pintores ou escultores ignorados em sua época e célebres depois, mas não existe teatro de gaveta nem teatro póstumo.
Por isto, a frase poética “os atores são pedaços do céu” pode ser um juízo adequado à profissão. Em cena, eles apresentam – ou representam, há um debate caudaloso nestes verbos – seres humanos impregnados por um sentido de ação.
Ação? Personagens – pessoas que agem. Buscam um sentido, um objetivo. Quer dizer, seres de carne e de ideia. Os atores, no seu ofício, precisam manter sintonia, queiram ou não, saibam ou não, com o mundo das ideias. Precisam funcionar como pedaços do céu, pedaços dos pensamentos, para capturar nossa vontade de ilusão.
Vontade de ilusão? Nós, na plateia, os que olhamos a cena, somos movidos por vontade de ilusão? Sim, mas este é um outro texto, outro debate. Por ora, este texto aqui só desejava provocar o pensamento a respeito deste artista tão precioso e tão cotidiano que é o ator. A ideia é aproveitar a semana do Natal para pedir a todos para abençoá-los.
Afinal, sem os atores, profissionais dispostos a nos lançar questões vivas, em movimento, sobre as condições da vida, a nossa existência seria bem mais pobre. O nosso olhar seria incapaz de perceber, no mundo que passa célere, a possibilidade de existência do céu – afinal, uma forma curiosa que atribuímos à ideia.
Sim, o teatro é ideia, não duvide. Mas é ideia de vida. Por isto, não morre. Seja qual for o inimigo da vez. Enquanto houver vida, haverá teatro. E teremos atores, estes pedaços da vida inteligente que andam soltos ao nosso redor, para iluminar esta coisa sombria a que estamos condenados, o ato cego de viver.
SERVIÇO:
Foto: Platão. Atenas.
Para saudar os atores e saber mais sobre eles, muitos estudos e livros foram publicados. Listemos aqui alguns exemplares obrigatórios, que falam da História do Teatro e, dentro dela, do papel dos atores.
De saída, o principal estudioso de teatro do momento, com um volume centrado nas dificuldades existentes para pensar o teatro atual:
Patrice Pavis. A Encenação Contemporânea.
História do teatro também importa – o melhor manual para o estudo da História do Teatro Universal:
Margot Berthold. História Mundial do Teatro.
Mas se você deseja verificar se o teatro é mesmo ideia, algumas obras são fundamentais. A primeira:
Marvin Carlson. Teorias do Teatro.
A segunda obra faz um percurso deslumbrante associando as grandes formas teatrais, os momentos de ruína do palco e as mais decisivas revoluções intelectuais da História:
Ortega y Gasset. A ideia do Teatro.
Para os mais especializados, acabou de sair em Paris um volume de impacto decisivo nos debates a respeito de ideia e teatro:
Vuillermoz, Marc (dir.) Les idées du théâtre : Paratextes français, italiens et espagnols des XVIe et XVIIe siècles. Droz, Travaux du Grand Siècle n° 55, 1384 pages, ouvrage dirigé par Marc Vuillermoz et coordonné par Sandrine Blondet avec Anne Cayuela, Lucie Comparini, Christophe Couderc, Françoise Decroisette, Sabine Lardon, Véronique Lochert, Bénédicte Louvat, Lise Michel et Jean-Claude Ternaux.