Mistérios teatrais: homenagem histórica a Paulo Gustavo
Paixão e indiferença. Amor e desprezo. Como uma arte, construída com absoluta devoção por seus criadores, pode provocar reações tão absolutamente disparatadas?
A situação é cara ao teatro, envolve a cena com muita intensidade. Se algumas pessoas são capazes de inacreditáveis proezas para ter o prazer de ver uma peça, outras dariam o fígado para assegurar uma distância oceânica do palco.
Na verdade, existiu no mundo ocidental um século teatral, o século XIX. Um estudioso – Jean-Claude Yon – definiu a realidade social constituída na época com um termo precioso; além de objetivo, muito feliz: dramatocracia.
De certa forma, a cena governava os humores sociais como nenhuma outra manifestação da época. Talvez este tenha sido um episódio importante da libertação humana. Sim, libertação humana! O tema é denso, mas vale esboçar algumas ideias a respeito.
Ainda que no caso europeu não existisse escravidão – sim, eles viviam da exploração da escravidão no mundo colonial – não se poderia dizer que os seres, os cidadãos, eram exatamente livres. Uma ordem derivada da sociedade feudal, de rígida hierarquia, garantia a imobilidade das pessoas e, evidentemente, a imobilidade dos cérebros.
Tratava-se de uma estrutura histórica pesada, cristalizada. A monarquia, acompanhada por uma peculiar representação parlamentar da população, em vigor até o século XVIII, mantinha os contingentes “não nobres”, mesmo os que fossem endinheirados, sem direito à participação no poder.
A construção autoritária era um edifício sem arestas graças à aproximação com a vida religiosa. A divisão entre Estado e Igreja não existia. Portanto, o poder se apresentava monolítico. E o poder da Igreja não se restringia ao desenho dos Estados: tanto delimitava a prática da ciência, como do pensamento, naturalmente policiando as mentes das pessoas comuns. A inquisição, o maior instrumento desta vigilância, foi uma instituição brutal.
Pois no interior deste jogo, desde o fim da Idade Média, surgiu uma fresta de ar e rebeldia: o teatro renasceu e funcionou como instrumento de libertação. Não foi fácil. Até o século XVIII, os atores eram excomungados: não podiam receber os sacramentos, não podiam ser enterrados nos cemitérios.
Os atores eram suspeitos há bastante tempo. O raciocínio era simples: eles criavam um mundo de ficção, de mentira. Como o único mundo existente fora criado por Deus, os atores só podiam ser blasfemos e filhos do decaído. Apesar da suspensão das interdições religiosas antigas, notadamente ao longo do século XVIII, os atores ainda se mantiveram sob suspeita no século XIX.
Portanto, este teatro do século XIX que abraçou o homem comum é um teatro muito especial. A dramatocracia não é uma realidade simples. Na lenta incorporação da arte ao jogo do poder, em especial na França, o palco foi domado por formalizações capazes de dotá-lo de uma identidade acadêmica.
O teatro cortesão, cortejado pelo rei, pôde ser rigorosamente codificado a um ponto tal que nem o próprio Aristóteles permaneceu livre. Tornou-se uma entidade acadêmica.
Mas, ao mesmo tempo, o teatro de feira, logo de boulevard, se expandia, captando moedas da crescente massa assalariada. Duas liberdades aí se encontravam: a do artista, voltado para a exploração dos ânimos e das sensações das ruas, e a do homem da rua, sem eira nem beira, propenso a pensar a sua realidade humana.
Este teatro irreverente, transgressivo, por vezes inconveniente, será a essência deste magma libertador que incendiou o século XIX. O epicentro da dramatocracia passa por ele, ainda que o teatro acadêmico encantasse as sensibilidades finas. Mas, por causa dos rebeldes cênicos, muito provavelmente, o palco virou paixão.
No século XIX brasileiro, algo semelhante aconteceu, mas sob um ritmo fragmentado, pois o humano que a cena devia proclamar livre era parte de uma sociedade escravista. Talvez este pecado social – é um tema para pensar e desenvolver – tenha sido o culpado pelo “fracasso” do teatro na sociedade brasileira.
De toda forma, ainda estudamos pouco este teatro, muitos estudos e pesquisas precisam ser feitos e eles com certeza ajudarão muito o processo de entender o país e a sua alma. Vale destacar, por exemplo, a descomunal força antiacadêmica deste teatro musical brasileiro.
O que significa esta afirmação? Significa constatar a existência de um diálogo franco, intenso, desbragado, entre os autores e atores e a sensibilidade ao redor, o grito do imediato. Em lugar de seguir os cânones e ouvir as musas, os autores dos gêneros populares contemplavam o absurdo dos cânones e ouviam as ruas.
Alguns gêneros da época – revista, opereta, burleta, mágica – possuíam uma estrutura de texto plástica, apta para dialogar com o momento. Esta plástica também se estendia à arte do ator – o ator era livre para criar e contribuir. Criações de atores migravam entre espetáculos sem problemas.
Uma das práticas – ou técnicas – consagradas do século XIX de imenso agrado popular chegou ao século XXI e constitui uma especialidade nobre do teatro brasileiro: o travesti. Curiosamente, ela foi gerada a partir da intolerância e da perseguição ao teatro, talvez por isto tenha sido sempre entendida como transgressão profunda e amada integralmente pelo público.
Naturalmente, na Idade Moderna, no renascer do teatro, por causa da proibição do exercício da profissão pelas mulheres, era rotina entregar os papéis femininos aos rapazes. Especialmente ao longo do século XVII, as mulheres conseguiram se tornar atrizes. Mas, em Portugal, no século XVIII, D. Maria I, seguindo o exemplo de sua mãe, começou a restringir o acesso das mulheres aos palcos até chegar à interdição total. Assim, alguns atores se especializaram em papéis femininos. Um ator de grande destaque, que migrou para o Brasil e aqui se tornou célebre, Victor Porfirio de Borja, um artista ainda por estudar, teria difundido bastante a arte.
Nas revistas e nas operetas, os papéis em travesti eram enormes sucessos. Um caso de franca aclamação no final do século XIX foi o do ator Brandão, o popularíssimo, dedicado à paródia de Sarah Bernhardt. O quadro qualificado na imprensa como extraordinário se chamava Je suis Sarah Bernhardt.
No século XX, esta foi uma das grandes especialidades de Oscarito, em números que faziam o delírio da plateia. Grande Otelo também marcou feitos históricos absolutos na arte. E bem perto de nós temos Chico Anísio.
Estamos, portanto, perto de um grande mistério – a capacidade do palco brasileiro de envolver ou de distanciar os contemporâneos. Parece existir, aí, como mola mestra, uma renúncia da cena em falar a linguagem do país, uma vontade do palco de se fechar em si ou se aproximar dos poderosos – letrados, sociais ou legais.
Se olharmos para esta dinâmica com atenção, dá para ter uma ideia do significado da perda de Paulo Gustavo para o teatro brasileiro. Com certeza ele era, nos tempos recentes, uma figura rara, capaz de obrigar a cena a se abrir para a rua, abrigar a sensibilidade nacional.
Sob o ponto de vista da História, ele seguia a senda de Oscarito. Mas há uma mutação. Oscarito, como em geral aconteceu na tradição travesti brasileira, construía paródias – La Violetera, por exemplo, se transformava em La Bananera. Paulo Gustavo trouxe o novo, além da paródia, presente numa lista imensa de personagens originais, ele criou a mãe, uma divertida forma ácida de falar nas relações de afeto cotidianas, uma visão renovada do duelo diário com o presente. Paulo Gustavo detinha a fórmula preciosa de transmudação do teatro, capaz de fazer com que o palco passasse de templo solene vazio a arena agitada de calor humano.
Evidentemente, nestas condições, parece absolutamente importante a proposta da deputada Jandira Feghali de criar o Prêmio Paulo Gustavo para a valorização do humor e da comédia. Ao lado do melodrama e do dramalhão, gêneros hoje sem espaço no palco, a complexa máquina do riso contém um mecanismo singelo de extrema importância: o diálogo íntimo entre o teatro e a realidade nacional.
Talvez esteja bem aí a oportunidade para aproximar o palco da população do país. Poderíamos superar, enfim, o vasto campo de preconceito que, sob assinaturas tão solenes como as de José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo, e mesmo Machado de Assis, tanto fez para apagar a verve popular do teatro e jogá-lo num limbo refratário às percepções do mundo ao redor. Afinal, o teatro é um primo bastardo da literatura: nas suas veias não corre a tinta dos gabinetes, mas, sim, o suor das ruas. Ele se move, portanto, num ritmo próprio; o seu nome verdadeiro tem horror à indiferença, o seu nome é paixão.
Para Roger Xavier, que mudou a pauta.
FOTOS: CEDOC/Funarte.