O que mantém o teatro vivo
Não, não estou de mau humor nem deprimida. Resisto bravamente e me abrigo num objetivo claro – preservar a minha mente funcionando bem. Para isto, preciso manter o bom humor, quer dizer, ter a visão clara de que as tristezas fazem parte da vida, mas… devem ser contidas ali no seu quadrado.
A vida precisa, para ser vida, correr feliz, com amor, leve e solta. Tristezas não pagam dívidas, título de uma chanchada brasileira de 1944 parcialmente perdida, das tantas que não preservamos, a primeira a contar com a dupla Oscarito e Grande Othelo. De certa forma, há neste pensamento uma forma popular brasileira.
Volto ao passado. Sim, sou historiadora. Escolhi estudar História do Teatro, mais exatamente História do Teatro Brasileiro. Uma prática artística desprezada, considerada menor, inferior, mesmo por críticos e por cabeças teatrais, no tempo em que comecei a estudar teatro, nos anos 1970.
Sim, desde o século XIX há um embate surdo no interior do teatro brasileiro. Poderíamos dizer que há um confronto, uma oposição, elitistas versus populares. Portanto, afinal, o mesmo conflito que marca a sociedade brasileira, incapaz até hoje de ultrapassar os quadros existenciais coloniais, o padrão escravista imperial. A nossa colônia se prolongou no império e abraçou a república.
No fundo, vivemos num pobre país miserável dominado por capitães donatários, líderes de uma aldeia qualquer à beira mar, supostos senhores de capitanias que se sentem titiriteiros de um populacho – todos os que não são bem nascidos, evidentemente – considerado, este populacho, pela elite desengonçada, como boçal, inculto e idiota.
O populacho é a população em geral, claro; como é considerado boçal, deve ter uma vida podre, com escolas podres, casas podres, água podre, esgoto podre, ar podre, comida podre. A sua cultura, para a elite, é claro que é podre. Neste jogo, a elite, no final, paga uma conta salgada, bem feito. Pois não conseguimos ter estadistas ou quadros políticos de elevado padrão intelectual, já que a política, a administração dos podres, é só a arte de garantir a sobrevivência da aldeia quatrocentona e de seus agregados: a política precisa ser podre.
Ainda hoje, para muita gente que parece gente boa e faz pose de beneméritos, no Rio de Janeiro, nascer ou viver do lado de lá do Rebouças é um atestado de óbito mental ou existencial. A luta recente contra a implantação do metrô na parte mais nobre da Zona Sul e o uso corrente da expressão “programa de índio” para falar de diversões populares atestam esta realidade.
Neste quadro, discutir teatro brasileiro adquire um colorido peculiar. Pois a mentalidade donatária pensa que existe uma cultura superior, inefável, que só os donatários iluminados compreendem e podem praticar, e um reino da grosseria e da estupidez, o pântano em que chafurda o povão, o popular e o popularesco. São as trevas do populacho.
Mais de uma vez, nos anos setenta, sim, na década de 1970, na escola de teatro, ouvi com espanto a afirmação, de cabeças coroadas da cena, de que o ator brasileiro não tinha capacidade para entender Shakespeare. Ou que o ator brasileiro não tinha quadro mental para entender o grande teatro. Consequentemente, o teatro oferecido nos palcos brasileiros era visto como inferior, mal feito, fruto equívoco de árvores ruins. Portanto, a crítica devia ser exercida como se fosse um chicote de feitor, cortando firme a carne mal exposta.
Intelectuais, críticos, estudiosos tinham a nobre função redentora de fazer o teatro brasileiro entender a sua ruindade. Em lugar de se discutir o trabalho apresentado, debater as ideias formuladas ou os efeitos produzidos, o ideal era sentar o pau. Claro, não naqueles poucos que, afortunados, colados à elite e aos críticos, aderiram às ideias mais avançadas do momento, em voga nas oropas e quetais.
A síndrome da inferioridade colonial, a ser tratada com pregação catequética e chibatadas (ainda que verbais), sempre se manteve como força motora do teatro brasileiro. Como ela não foi rompida pela classe teatral, a própria classe teatral reproduziu no seu interior o padrão elitista x populares. A origem de classe dos atores, até o avançado do século XX, isto é, até o palco moderno, era modesta. A História do Teatro Brasileiro conta com um belo elenco de atores analfabetos ou semi-alfabetizados: aprendiam de ouvido. Assim, a hierarquia elite-populacho aparecia nítida dentro da classe.
Daí o deslumbramento diante de todo e qualquer estrangeiro, a embriaguez desvairada diante das propostas de qualquer sinal de fumaça do mundo dito civilizado. Daí a luta dentro da classe contra os cômicos, contra os musicais, contra os comerciais, contra os que não teriam dentro de si as palavras puras do ato teatral. O que seriam as tais palavras puras, nem Dionyso nas suas maiores bebedeiras ousaria tentar saber. Trata-se apenas de um bruto jogo de poder, reducionista e mesquinho. Baixa política, política de exclusão do outro através de sua desqualificação.
Curiosamente, também este mesmo impulso adestrador, catequético, de aniquilamento e submissão costuma povoar as iniciativas vanguardeiras revolucionárias, egressas, claro, do teatro elitista capitão donatário. Quer dizer – quando o teatro elitista formal empertigado cansa de si, ele inventa uma vanguarda tão autoritária quanto ele.
Por vezes, simulando se apropriar de formas populares, tais vanguardas namoram o populismo, passam a ensinar para plateias de classe média alheias ao modo de vida da pobreza algo do que acontece na periferia miserável – formas de dançar na rua, simulacros de macumba e de rituais afro-brasileiros ou indígenas. Instaura-se um zoológico de modos populares para classe média esclarecida ver ou praticar, sem o risco de vagar por lados ermos da cidade.
Quando este tipo de teatro sai do seu nicho de mercado, devotado à classe média esclarecida – pois é um fato de mercado, tem bilheteria, preço, patrocínio, produção, apenas se disfarça de não-mercado – e se dirige às camadas populares, quase sempre para cumprir cotas de leis de incentivo, há uma inversão perversa digna de registro. Nestes casos, o teatro vai ao povo, que dança nas ruas há séculos, bate tambor, faz despachos e pratica a macumba faz tempo, para fazer com que ele dance a sua dança e vibre com a sua própria religião.
A desculpa usada pela vanguarda para cultivar este teatro, afinal um teatro preguiçoso, sujo, mal acabado, entregue como esboço à plateia, para ela completar a cena, pois a ideia é a de que a plateia entre na obra, é o estímulo à livre expressão. Ou pseudo livre expressão. O teatro participativo não seria autoritário, já que estaria aberto à adesão do público.
São dois problemas. Primeiro, o espírito catequético-redentor, que supõe que a plateia é castrada, limitada, incapaz de desenvolver a sua expressão, precisa da cena para se liberar. Segundo, há o espírito autoritário-cínico, pois a plateia deverá, na realidade, participar e não criar. Já existe um roteiro, uma obra, o público tem que ser coadjuvante contente, não protagoniza e não cria. E mais, vai entrar na roda, quer dizer, invasão física, bolinagem, toque não autorizado – vale tudo.
A proposta se abriga num sofisma primário, portanto, a de que estaria promovendo a livre expressão do cidadão ou estimulando a sua liberdade. Mas a liberdade é para fazer o que a cena quer. Assim, a cena, ainda que povoada de atores, monologa, não tem estrutura dialógica, que seria essencial para que houvesse a tal da livre expressão.
A rigor, a pergunta que cabe formular ao teatro brasileiro agora é impiedosa. Será que a urgência, aqui, é mesmo estimular a livre expressão do indivíduo? Será que este país do improviso e da gambiarra tem falta de auto-expressão? Será que falta para o brasileiro-populacho, deserdado pelos donatários, aprender a rebolar e a cantar ritmos populares? Ou será que falta ao brasileiro justamente o conceito para pensar o quadro de opressão colonial que, aqui, nunca foi dissolvido por legítimas forças republicanas? Ou será que faltam ideias para buscar o sentido da paisagem autoritária nacional?
Propostas teatrais dentro do teatrão, quer dizer, dentro da linguagem teatral formal e canônica cristalizada, têm provocado mudanças sensacionais do teatro brasileiro e oferecido às plateias ferramentas intelectuais e sensíveis extraordinárias para a vida aqui e agora. São linhas de produção recentes, mas que remontam a empreendimentos específicos.
Espetáculos tais como Besouro Cordão de Ouro, de Paulo Cesar Pinheiro, de 2006, direção de João das Neves, ou a série de trabalhos assinados pela Companhia dos Comuns, fundada por Hilton Cobra em 2001, com atores negros e temática negra, sacudiram o eixo da cena nacional com uma intensidade tectônica. Some-se à lista as produções com a presença de Lázaro Ramos, a linha cáustica emocionante e renovadora liderada por Rodrigo França e, naturalmente, o recente acontecimento que foi Oboró – Masculinidades Negras, texto de Adalberto Neto dirigido por Rodrigo França.
Há neste teatro negro – e em todo o teatro antigo popularesco nacional – uma pulsação de vida impressionante. Difícil descrever em palavras, mas quem se interessa por teatro, aqui, precisa considerar o vasto referencial histórico que pode nos ajudar a pensar e a criar nestes tempos de crise – se a busca é por resposta, se a pergunta é o que fazer, em lugar de recorrer à velha mania de macaquear o estrangeiro, fazer pastiches, ou mergulhar num teatrinho ensandecido de mímica desbotada das práticas populares, vale olhar a fortuna legada pelos antepassados.
Algo do que foi feito ainda não foi destruído pelo tempo. Muita coisa desapareceu, pois não gastamos dinheiro para preservar a memória nacional. Cenas preciosas da cinematografia nacional, muito calcada no teatro do seu tempo, estão perdidas para sempre. Mas ainda existe alguma coisa para ver. Sugiro um passeio pelo site da Cinédia, por exemplo. E pesquisas na internet.
Há um filme que a Petrobras deveria ter recuperado – O Petróleo É Nosso, de 1954, em estado bastante precário, mas que ainda se pode ver. Nele, um par caricato sensacional transforma a cena num baile de criação – Violeta Ferraz (1902-1982) e Catalano (1904-2000). São atores absolutos. Recomendo especialmente o número de dança caricata, no qual Violeta Ferraz consegue criar momentos geniais de irreverência e humor a partir de soluções gestuais mínimas.
O que há mesmo de importante nestas cenas para os tempos vividos hoje, para o teatro que se poderá fazer a partir de agora? O que há é a vida. Simples assim. Duvido que você veja estas cenas e não sinta uma súbita esfera de luz acender no plexo solar.
É o sentido da vida, do viver, como pulsação absoluta de vigor de ser, de liberdade. Violeta Ferraz, Catalano, Oscarito, Grande Othelo – para ficar num pequeno número – são personalidades criativas em estado livre, em sintonia plena com uma visão estética do mundo. São amantes do belo, da explosão sensível.
Em cena, eles revelam um compromisso com uma grandeza humana fundamental, uma energia capaz de enfrentar todo e qualquer cenário, inclusive, é claro, a selvagem sociedade brasileira. Sim, porque boçais são as nossas elites, os nossos governantes, os nossos políticos, testas de ferro de donatários arrogantes que sentem um desprezo profundo pelo país, visto como pasto em que se possam cevar.
Deste poder, que é projeto de teatro social da pior qualidade, nasce um teatro, que é projeto de poder elitista, arrogante, manifestação de um saber de opressão. Dele, não precisamos mais, já tivemos bastante, e não deu certo por isto, por sua arrogância intrínseca. É um teatro podre, faz parte do mundo podre, em que pese tantas personalidades fulgurantes de criatividade e potência de arte. A moldura empanou a tela.
Vai ser preciso reinventar a cena, mas ninguém precisa demolir os teatros ou derrubar os palcos. O que precisa ir abaixo é uma ética sem vergonha antiga, ultrapassada, fruto de um modo colonial que precisa ser, finalmente, vencido. Portanto, a hora é grave, mas contém, lá no fundo, um humor brasileiro nativo, do populacho, que nasce daquilo que ninguém nos tira, uma intensa alegria de viver.
Serviço:
Foto: cena do filme O Petróleo É Nosso, Violeta Ferraz e Catalano. Publicação da página Violeta Ferraz, a caricata do cinema brasileiro, facebook.
Na internet há bastante material filmico a respeito dos velhos atores populares brasileiros – ou portugueses, Violeta Ferraz era portuguesa. Mas este é um outro debate.
Vale pesquisar a filmografia, conferir a história dos filmes do acervo e o estado atual das fitas: