Vai para o trono ou não vai?
Semana premiada. Sim, o prêmio da classe está na pauta imediata. Quem vai vencer? Momento de acarinhar o coração, para enfrentar as emoções da disputa. Importa acompanhar, torcer, e, afinal, comemorar ou sofrer. Será este o ideal? A cerimônia de entrega do Prêmio APTR-2023 de Teatro do Rio de Janeiro vai acontecer amanhã, terça-feira, num grande encontro do teatro, na Cidade das Artes.
Inspire e relaxe. Inspire-se. Comece o aquecimento admirando as homenagens especiais – Zezé Motta, Tonico Pereira, Otávio Augusto e Maria Gladys foram escolhidos pela associação para receber a louvação da categoria, por suas trajetórias na cena brasileira. A partir destas grandezas, dá para tentar conduzir a conversa por um caminho distante da competição banal.
Se a vaidade e a ambição são deixadas ao largo, no saldo final, o momento tem grande importância, conduz as ideias para algo além do mero fervilhar de vitórias, derrotas e frustrações pessoais. Importa manter o foco no ponto mais flamejante: o prêmio celebra o teatro.
Em seguida, dá para fazer as perguntas que incomodam: qual é o teatro que devemos celebrar? Ele merece ir para o trono? Ou levaria um buzinaço do Chacrinha? O povo vibra com o teatro premiado? O teatro é para o povo ou o povo é um detalhe negligenciável?
Prêmio significa oportunidade. A oportunidade surge como excelente pretexto para traçar um panorama da situação do palco aqui e agora, avaliar a sua potência de criação e de invenção, a sua força de diálogo com a sociedade.
Não seriam estas as razões de ser do teatro? Ainda que a lista dos eleitos registre basicamente o olhar de um coletivo, os integrantes da comissão julgadora, não há como negar representatividade aos escolhidos.
Portanto, se a lista dos finalistas do Prêmio APTR relativa aos destaques do ano de 2022 é olhada com atenção, alguns traços fortes devem ser destacados. Pensar estas pistas pode favorecer o hábito de pensar o teatro carioca – e ajudar a luta a favor de um palco cada vez mais significativo para o coração social.
Como no início de tudo surgiu um motor primeiro, o verbo, vale começar o comentário com a categoria autor. Ao primeiro olhar, o time de indicados impressiona por sua variedade notável – estão reunidos dramaturgos de diferentes gerações, com múltiplos perfis estéticos. De certa forma, estão presentes o texto, o não texto, o pretexto e o texto-melodia.
Aliás, alguns dos finalistas são dramaturgos na plena tradição do conceito (Miriam Halfin), outros são muito mais escritores ou roteiristas antenados com a performance cênica ou com a capacidade de provocação do texto para os atores (Marcio Abreu, Rodrigo Portella). Se no primeiro moderno os diretores de projeção insistiam na necessidade absoluta de cultivar a dramaturgia nacional como valor de primeira importância, agora os diretores pós-modernos subsomem a figura do autor.
Nesta ciranda, múltiplos valores se projetam. Há tanto o texto-drama como o texto-cena, o texto-coreografia falada, o texto relato-enunciação, o texto documento… a bem da verdade, digamos, realidades muito diferenciadas. Em alguns casos, o cálculo da dramaturgia se associa ao desejo de reverter a geografia teatral do país, com a associação, no processo criativo, de artistas de diferentes regiões (Henrique Fontes e Vinicius Arneiro).
A busca do novo conduz as partituras a um estado de liberdade surpreendente, por vezes favorecem o jorro cego de pura expressão bruta. As antigas exigências técnicas do jogo teatral surgem esfumadas ou são drasticamente suprimidas. Quem tem, nestes atos, desejo de personagem, conflito, curva dramática, peripécia…?
Também estão presentes na listagem final – e muito bem representados – os impulsos vitais vibrantes do moderno teatro musical brasileiro. Tanto Flavio Marinho (Judy – O Arco íris É Aqui), como Tauã Delmiro (As Metades da Laranja) comprovam a maturidade conquistada pelos libretos dos musicais nacionais. São autores que escrevem com excelência o que se pode chamar de texto-melodia, texto em que a hipótese da música é, digamos, uma certeza de pura ação.
O pensamento a respeito do tema palavra x cena, tão marcante no debate do pós-moderno, também aparece com força na categoria direção. Apesar do renascimento recente aqui da figura do diretor de grandes textos, renovada, a figura preciosa, com uma visão plástica da cena muito contundente, os finalistas do ano apresentam uma característica comum: são mais criadores da cena, encenadores, do que diretores dedicados à materialização da poesia dos textos.
Os vínculos institucionais dos diretores indicados oscilam entre o trabalho de grupo (Bruce Gomlevski, Renata Tavares), a continuidade de criação cênica (Marcio Abreu), a liderança de equipes orgânicas (Rodrigo Portella), o engajamento comunitário (Luiz Fernando Lobo), com variações na inserção profissional de cada um no mercado. Mas, ainda assim, a lista projeta uma linha clara de ênfase: a cena espetacular
Às cenas de visualidade intensa correspondem atores totais ou performáticos – quer dizer, atores distantes das formas pulsantes, mas talvez antigas, do puro dizer sonoro. Todos os atores e atrizes finalistas, nas diferentes categorias dedicadas à sua arte, professam um estado de presença absoluta em cena.
Para eles, a palavra surge como – digamos – uma das formas corporais correntes. Isto significa a prática de um teatro corpóreo – em outras palavras, significa que o texto desencadeia formas físicas sensíveis intensas. Um traço expressivo comum une, consequentemente, os eleitos, do intérprete consagrado ao nome-revelação. São todos atores marcados por um tipo de interpretação total, na qual alma e aura se encontram conectadas.
Tal condição, um traço distintivo forte do teatro do nosso tempo, obriga o pensamento estético a destacar uma modalidade de criação artística que se tornou estratégica para as formas cênicas atuais – a chamada direção de movimento. A rigor, tanto a antiga marcação de cena como toda a expressividade dos corpos nos palcos, inclusive as diferentes modalidades de coreografia, estão incluídas na categoria.
Portanto, ao olhar a lista de indicados escolhidos no interior do imenso continente dos trabalhos de corpo, percebe-se claramente a multiplicidade e o ecletismo do campo. Há tanto o burilamento dos gestos cotidianos, da expressão espontânea, de certa forma a estetização dos atos simples da vida, como o encontro, bem mais abstrato, entre as artes plásticas, a poesia e a teatralidade, passando-se pela dança em suas formas mais variadas. Ao lado da multiplicidade de vozes, de visualidades e de palavras, desponta a multiplicidade dos corpos. De repente, o corpo na cena se tornou uma teia gigante feita de tentáculos que buscam o infinito.
Outro tanto de fortuna criativa aparece na música: a variação das estruturas musicais do teatro brasileiro hoje é imensa, abarca desde as criações em sintonia com a música universal até o fervilhante mar criativo da música brasileira. Ou afro-brasileira. E mais: também a função cênica da música obedece a uma variação interessante de opções. O quadro geral vigente na dinâmica produtiva transparece na lista de indicados.
Antigamente, o teatro brasileiro distinguia rigorosamente o teatro musical do teatro declamado, usando com ênfase estas classificações. Havia então (será que acabou, não existe mais?) um pesado preconceito contra os formatos musicais do teatro, vistos como amostras de um teatro menor.
O retorno recente – a partir do final do século XX – do teatro musical aos palcos nacionais provocou uma retomada técnica da modalidade, com um forte reconhecimento da música como elemento constitutivo da ação dramática. A retomada significou sofisticação estética, adensamento da poética.
No teatro declamado, de texto convencional, a ação acontece em função dos diálogos; a criação musical significa a criação de climas e paisagens, sem intervenção decisiva para a ação – se a música for retirada, a peça se sustenta por si. Já no teatro musical, sem a música a cena desaba. Nos dois formatos, o teatro brasileiro conhece artistas de grande potência criativa.
A criatividade, aliás, percorre as demais modalidades de intervenção encontradas na cena atual. Longe do velho formato de funcionamento técnico, a iluminação, a cenografia e o figurino afirmam partituras artísticas decisivas, essenciais, com a funcionalidade se associando à forma e ao efeito poético de maneira profunda.
A rigor, estes lugares de criação ainda não contam com cem anos de história, se marcarmos o tempo desde a época em que eram quase que apenas rotinas de oficinas técnicas, para as tarefas de iluminação e de cenarização, ou, no caso dos figurinos, mera função expressiva dos atores. As escolhas atuais situam linhas criativas originais, subjetivas, autorais, capazes de intensificar o projeto artístico da encenação.
Na lista de concorrentes ao prêmio nas três categorias, destacaram-se trabalhos de profundo rigor técnico e poético e, fato curioso, particularmente críticos – ou distanciados – da visão realista da cena. Todos os coloridos agenciados pelos artistas criadores finalistas funcionam a favor da expressão lírica, simbólica, sentimental ou emocional, por vezes enveredam por matizes racionalistas, mas sempre se estruturam como procedimentos distantes da fotografia do real. São atos de desterritorialização. De certa forma, é como se agissem a favor da renovação do nosso olhar para o mundo, em busca de outras compreensões para o que se vê…
Portanto, só existe uma atitude possível diante do prêmio e de sua festa: a alegria de reconhecer a profunda capacidade de criação do teatro brasileiro. Trata-se de uma arte que atingiu a maioridade, que se articula livremente segundo o desejo de ser conversa de arte, ciosa de suas tradições, mas intensamente ligada aos desafios humanos do presente.
Em vários momentos históricos já se afirmou por aqui que, se o teatro desaparecesse, ninguém sentiria a sua falta, pois ele teria se tornado um acontecimento de baixa repercussão social. Pode ser que os números envolvidos pela arte na nossa época, com público reduzido diante do crescimento explosivo da população, contribuam para sustentar este estereótipo, apenas uma maldosa frase de efeito.
Contudo, vale levar as ideias para outro caminho. Depois da pandemia, depois de uma crise política memorável, distante da possibilidade de se constituir como forma de expressividade institucional consolidada, por conta da eterna recusa do Estado brasileiro de transformar em prioridade a arte, a cultura e a educação, a planilha do prêmio soa objetiva, pois nela o teatro nacional demonstra uma impressionante capacidade de produção.
É fácil chegar à constatação. Basta examinar com a atenção a lista dos finalistas do Prêmio APTR e buscar perceber as dimensões do monumental edifício de arte ao redor do qual ela se ergue.
A operação torna evidente um fato: a cena nacional, sob todos os revezes, trata sempre de mergulhar intensa na aventura criativa e busca se manter em estado permanente de comunicação com a alma do país. Atento às formas mais afiadas do presente, o diálogo social proposto pelo teatro se afirma como necessidade transcendental.
Resta a todos os que amam o teatro uma única opção: que venha o prêmio, vamos comemorar. Viva o teatro. A lista dos vencedores, assim como a lista dos finalistas, não vai fazer soar a buzina do Chacrinha.
Por falta de espaço, a coluna, muito feminista, preferiu publicar fotos de finalistas mulheres, após as categorias Autor e Espetáculo. Imagem da abertura – foto de divulgação de Enquanto você voava, eu criava raízes.
Confira a lista dos indicados – veja quais os seus escolhidos, para torcer e conferir o resultado oficial:
Espetáculo
‘Enquanto
você voava, eu criava raízes’
‘Ficções’
‘Morte e Vida Severina’
‘Sem palavras’
‘Uma Revolução dos Bichos’
Autor
Flavio Marinho — ‘Judy – O Arco-Íris é Aqui’
Henrique Fontes e Vinicius Arneiro — ‘Peça de Amar’
Marcio Abreu e Nadja Naira — ‘Sem Palavras’
Miriam Halfin — ‘O homem do planeta Auschwitz’
Rodrigo Portella — ‘Ficções’
Tauã Delmiro — ‘As Metades da Laranja’
Direção
Bruce Gomlevsky — ‘Uma Revolução dos Bichos’
Luiz Fernando Lobo — ‘Morte e Vida Severina’
Marcio Abreu — ‘Sem Palavras’
Renata Tavares — ‘Nem Todo Filho Vinga’
Rodrigo Portella — ‘Ficções’
Ator
em papel protagonista
Lucas Drumond — ‘Órfãos’
Mario Borges — ‘O Homem do Planeta Auschwitz’
Robson Torini — ‘Tráfico’
Thelmo Fernandes — ‘Dignidade’
Tiago Barbosa — ‘Clube da Esquina – Os Sonhos Não Envelhecem’
Atriz
em papel protagonista
Ana Carbatti — ‘Ninguém Sabe meu Nome’
Deborah Evelyn — ‘Três mulheres altas’
Denise Fraga — ‘Eu de você’
Luciana Braga — ‘Judy – O Arco-Íris é Aqui’
Vera Holtz — ‘Ficções ‘
Ator
em papel coadjuvante
Ary Coslov — ‘A última ata’
Bruno Quixote — ‘A Vida não é justa’
Cláudio Mendes — ‘Tudo’
Ernani Moraes — ‘Órfãos’
Atriz em papel coadjuvante
Analu
Prestes — ‘A última ata’
Carmen Frenzel — ‘O Balcão’
Dany Barros — ‘Tudo’
Lilian Valeska — ‘Marrom – O Musical’
Marya Bravo —’Clube da Esquina’
Jovem talento
Cadu
Libonati — ‘Clube da Esquina – Os sonhos não envelhecem’
Elenco jovem do Tablado no musical juvenil ‘Cálice’
Lucas Popeta — ‘Olhos da Pele’
Mateus Amorim — ‘A Jornada de Um Herói’
Yumo Apurinã —O Balcão
Direção de movimento
Gabriela
Luiz — ‘Nem Todo Filho Vinga’
Kenia Dias — ‘Sem palavras’
Lavinia Bizzoto — ‘Bu’
Regina Miranda — ‘Olhos da Pele’
Toni Rodrigues — ‘Tudo e Tráfico’
Música
Claudia
Elizeu e Wladimir Pinheiro — ‘Vozes Negras – A Força do Canto Feminino’
Federico Puppi — ‘Ficções’ e ‘Enquanto você voava, eu criava raizes’
Guilherme Terra — ‘Marrom – o musical’
Itamar Assiere — ‘Morte e Vida Severina’
Liliane Secco — ‘Judy – O Arco-Íris é Aqui’
Iluminação
Artur
Luanda Ribeiro — ‘Enquanto Você Voava Eu Criava Raízes’
Bernardo Lorga —’Tráfico’
Cesar de Ramires — ‘Morte e Vida Severina’
Paulo Cesar Medeiros — ‘Ficções’
Sarah Salgado —’ Crime e Castigo 11:45′
Figurino
Beth
Filipecki e Renaldo Machado — ‘Morte e Vida Severina’
Fábio Namatame — ‘Barnum’
João Pimenta — ‘Ficções’
Ligia Rocha, Jemima Tuany e Marco Pacheco — ‘Marrom – O Musical’
Wanderley Gomes — ‘Vozes Negras’
Cenografia
Artur
Luanda Ribeiro e André Curti — ‘Enquanto você voava, eu criava raizes’
Bia Junqueira — ‘Ficções’
J.C.Serroni — ‘Morte e Vida Severina’
Natália Lana – ‘Órfãos’
Rogério Falcão — ‘Barnum’
Comissão julgadora do 17º Prêmio APTR de Teatro:
Bia Radunsky, Carmen Luz, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Tania Brandão e Wagner Correa.
Comissão da associação:
Bianca De Felippes, Eduardo Barata, Gaby de Saboya, Márcia Dias, Maria Angela Menezes e Marta Paret.