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Teatro: veneno e remédio

 

Volta e meia o assunto aparece: o que se faz com uma peça ruim? A rigor, não há nada a fazer, apenas ver e tentar entender o que aconteceu. Como nasce uma peça ruim? Ninguém assina um fracasso por querer. Acontece. E detalhe importante: nem sempre uma peça é ruim para todo o público.

 

Já vi peças detestáveis que o público adorava, urrava de satisfação – exalava o sublime prazer de ser enganado sem arte – e eu não morri por ter estado por lá, no meio da plateia. Sobrevivi sempre e fiquei exercitando os neurônios para tentar entender o desastre, a sua função na linha de trabalho daquele artista. Há sempre uma lógica da arte ao redor das oscilações da arte.

 

Gosto muito de lembrar uma entrevista que fiz com o ator Sergio Britto (1923- 2011), em que ele se declarou contra o teatro na escola – no seu entender, o teatrinho escolar de papel crepom só poderia gerar pessoas de sensibilidade deformada, incapazes de entender a arte. O resultado seria afastar o público do teatro.

 

No entanto, conheci uma faxineira cujo maior encanto de toda a vida foi ter tido a chance de fazer teatro de papel crepom na escola primária, na Baixada Fluminense – por causa da experiência, ela adorava teatro e sempre que podia e o bolso deixava, ela ia ver as peças em cartaz. Não era uma especialista, enquanto convivi com ela nunca deixou de ser uma espectadora singela, mas ela dizia que sempre saía do teatro com a alma leve. Qualquer teatro, vale frisar – mesmo peças que, para especialistas, emanavam o mais puro tédio – faziam a sua felicidade.

 

Portanto, vale concluir a favor da boa intenção eterna do artista, da constituição humana positiva da arte. Quando alguém sobe num tablado, por mais sem noção que o exibido possa ser, ele acredita sinceramente ter algo importante, significativo mesmo, para passar adiante. Busca, então, transmitir esta sua descoberta, a sua produção, algo em que investiu energia e tempo.

 

O artista sabe dos seus riscos. No fundo da alma, teme ser um enganador desclassificado, um blefe. Mas mergulha, confia, não sabe fazer outra coisa. Existe a possibilidade, contudo, de uma hesitação, um vácuo, um vazio, um equívoco. E pronto – a obra não consegue mobilizar o outro, o espectador. Recebe uma avalanche de vaia, coisa rara hoje. Ou esvanece sob pura indiferença. Ou mobiliza um segmento reduzido. Mas, não importa: a obra está ali e sempre estará acionando um fluxo de energia e de comunicação viva, certamente o elo que incendiava a minha amiga faxineira.

 

Sergio Britto também tinha horror ao artista medíocre. Mas, convenhamos, ele existe, tem a sua função e o seu público. O modesto artista suburbano tem todo o direito à sua arte. Nem todo artista é genial, é Rimbaud, cada um faz o melhor que pode e, afinal, o verso do momento do grande poeta pode ser ruim. No meio de uma obra de excelência, um dia aparece o cascalho bruto, o verso torto, menor. Talvez uma procissão de pequenos artistas seja necessária para o nascimento de um ídolo.

 

Mas não é só isto. É mais. Instável, a natureza da arte. O próprio da trajetória da arte, de toda a grande arte, é ser acidentada. É impossível fazer uma obra prima todo o dia, só conceber grandes obras, perfeitas, por mais genial que o artista seja, por mais que disponha de condições ideais de inspiração e de produção.

 

A criação é um processo, atinge um grau mais elaborado em certo momento, mas passa por etapas de formulação mais problemáticas, menos nítidas, com menor clareza de concepção. Ter difusão da arte na sociedade e escola, educação para todos, impulsionam o refinamento da expressão coletiva. O teatro de escola é direito do cidadão, dever do Estado e oxigênio para a arte.

 

Na verdade, tudo pode ficar bem desfavorável para o artista, tudo pode ser bem mais difícil. Numa sociedade de escolaridade nebulosa, a expressão coletiva tende a ser turva. Num cenário teatral rarefeito, instável, com instabilidade de produção, como conseguir uma voltagem produtiva elevada, propícia ao fluxo criativo mais requintado, refinado? No caso do teatro, que não é obra solitária de atelier ou de escrivaninha e depende de condições materiais objetivas de produção, uma arena de arte hostil, como a brasileira, é um enorme obstáculo para o trabalho do artista.

 

Ainda assim, temos grandes artistas – temos artistas guerreiros capazes de sobreviver e produzir sob condições de trabalho detestáveis. No entanto, há um preço, temos sempre uma instabilidade grande de produção. Temos um contingente razoável de peças com resolução obscura. As obras fracassadas – as pecas ruins, digamos – se tornam bem mais dolorosas, pois não se permite, para o artista de teatro brasileiro, o horizonte de hesitação natural na produção de arte.

 

O artista teatral brasileiro tem que acertar sempre – o que é uma total impossibilidade. As peças aqui, boas ou ruins, têm pouco público, não podem viver em liberdade o seu fluxo de concepção e criação, vivem pouco tempo. O teatro brasileiro é um cemitério, cheio de fantasmas e de obras vítimas de morte prematura. O teatro é acidental, em lugar de ser um diálogo estético vivo da sociedade. Pouca gente frequenta o teatro para vivenciar a linguagem específica da encenação. Neste contexto, o teatro é outra coisa do que aquilo que ele é: é passatempo, é desfile de celebridades, é fru-fru social, é modinha, é caça-níquel, é passarela de vaidades, é lavanderia. Difícil, então, definir com objetividade o que seria uma peça ruim.

 

Neste jogo insano, dois fatores precisam ser muito valorizados: os prêmios, a escolha dos melhores de cada ano, e a grande produção, com oferta de condições de trabalho estáveis. São dois eixos de importância para o equilíbrio do mercado – devem favorecer a qualidade, a obra de artesanato sofisticado, estimular o burilado da arte.

 

A reflexão importa esta semana por conta de dois grandes acontecimentos – o primeiro, a cerimônia de entrega do Prêmio Shell de Teatro, exatamente a comemoração festiva de trinta anos do prêmio, uma noite de gala no Golden Room do Copacabana Palace. A lista de indicados, abaixo, reúne vários segmentos da arte, com ligeira tendência à valorização da pesquisa de linguagem e do vanguardismo. O Prêmio Shell se tornou um prêmio inquieto, preocupado com o experimentalismo e um tanto distante dos grandes nomes-monumentos da arte, apesar de ser concedido por uma gigante do mercado petrolífero.

 

O segundo acontecimento é, no mesmo dia, a estreia de Romeu e Julieta, de Shakespeare, em versão musical, grande produção da Aventura, cartaz do belo Teatro Riachuelo. A ficha técnica do espetáculo conta com profissionais do mais alto padrão e a expectativa é de que o Rio terá uma peça para celebrar a alma da cidade.

 

Além do grande volume de capital investido, nomes preciosos povoam a ficha técnica. A direção geral coube a Guilherme Leme Garcia, a preparação do elenco ficou sob a responsabilidade da atriz Vera Holtz. O cenário traz a excelência de Daniela Thomas. E vai por aí.

 

A montagem é de importância estratégica para a cena teatral atual por esta condição de grande produção de qualidade. E por trazer à baila, mais uma vez, um debate histórico importante. Assinada por Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, também responsáveis pela adaptação do texto original, a trilha sonora revela um nome novo para o teatro – Marisa Monte.

 

Assim como, no início do século XX, a música popular e o teatro estiveram casados e unidos na cena carioca, para deleite do público, o casamento desfeito volta a acontecer aqui. A música abandonou o teatro, fez carreira solo de imenso sucesso, fugiu para o radio, o cinema, o disco e o show. A volta é uma virada histórica memorável.

 

O caminho foi o segredo irresistível de Otelo da Mangueira, de Gasparani. Fora da linha do musical biográfico, que transpõe para a cena em música a vida de astros da MPB, este formato ousa buscar o andamento dramático de textos consagrados em canções de sucesso do nosso tempo. A ideia é maravilhosa, os artistas envolvidos exemplares e a chance de fazer a cidade cantar teatro é total. Ou seja, está em cena muito do que se precisa para ter peças excelentes, favoráveis à pujança do teatro. Em uma palavra: imperdível.

 

Foto: Felipe Panfili

 

Lista dos indicados da 30ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio de Janeiro:

 
Autor
Marcia Zanelatto por “Ela”
Walter Daguerre por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Braulio Tavares por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Pedro Kosovski por “Tripas”

Direção
Eric Lenate por “Love Love Love”
Rodrigo Portella por “Tom na Fazenda”
Luiz Carlos Vasconcelos por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Paulo de Moraes por “Hamlet”

Ator
Armando Babaioff por “Tom na Fazenda”
Gustavo Vaz por “Tom na Fazenda”
Adrén Alves por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Ricardo Kosovski por “Tripas”

Atriz
Aline Deluna por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Yara de Novaes por “Love Love Love”
Guida Vianna por “Agosto”
Juliane Bodini por “Dançando no Escuro”
Letícia Isnard por “Agosto”

Cenário
Aurora dos Campos por “Tom na Fazenda”
Mina Quental por “Mata teu pai”
Carla Berri e Paulo de Moraes por “Hamlet”
Sérgio Marimba por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Figurino
Beth Filipecki por “Ivanov”
Marcelo Marques por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Kika Lopes e Heloisa Stockler por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Marcelo Olinto por “Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba”

Iluminação
Aurélio de Simoni por “Ubu Rei”
Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni por “Mata teu pai”
Maneco Quinderé por “Hamlet”
Paulo Cesar Medeiros por “O Jornal”

Música
Marcello H. por “Tom na Fazenda”
Ricco Viana por “Janis”
Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Marcelo Alonso Neves por “Dançando no Escuro”

Inovação
“Que legado” pela ocupação cultural que propõe o diálogo entre profissionais de atuações e geografias diversas no Rio de Janeiro.
“Escola Spectaculu” pelo contínuo trabalho de formação e inserção de jovens profissionais na área técnica das artes cênicas.
Espetáculo “Tripas” pela forma de realização entre a universidade, através dos programas de pós-graduação, e a produção teatral.

Homenagem
Hélio Eichbauer por seu trabalho ao longo de mais de 50 anos de renovação da cenografia brasileira.