De barra em barra
Cuidado, ela está de olho em você. Sim, você pode tentar ignorá-la, fingir que não liga para ela ou não a conhece. Mas você está perdido: não vai escapar. Ela vai te arrastar pelos cabelos, vai zunir a sua casca oca no espaço sideral, com a violência que o turbilhão voraz de todos os tempos garante. E nada restará de você.
Sabe de quem estou falando? Da História, claro. Ninguém vive fora dela. Ninguém pode ignorá-la. A máquina do tempo comanda a sua vida e, queira você ou não, ela determinará que tipo de poeira humana você vai ser quando o seu jogo banal com os dias for encerrado. Até agora, aqui no Brasil, fizemos tudo errado, se considerarmos o ponto de vista da vida, do humano e da História.
Sim. É ela quem revela o mistério assustador que nós, brasileiros, somos. Somos ocos humanos. Corpos que se agitam sem vida verdadeira dentro. Vivemos ao léu, à deriva, trastes inúteis aos trancos e barrancos no fluxo da vida.
Filhos de uma colonização mercantilista devastadora, herdeiros da escravidão humana moderna mais boçal, não enfrentamos a História até hoje, cara a cara. O resultado? Sim, este oco que somos. Fantasmas, almas mortas à espera de D. Sebastião.
Vivemos à espera de uma saída, um líder, um messias, um paidapátria, uma luz no fim da curva, uma panaceia. Qualquer truque barato nos ilude, qualquer retórica pomposa nos pega pelo pulso. Por quê? Porque somos serezinhos tropicais violentos e selvagens, nos interessa apostar na rede. Quer dizer, na inação. Alguém faça alguma coisa em algum momento, por favor, é a síntese do nosso pensamento.
Se não fôssemos estas almas mortas de aluguel, lutaríamos, de saída, por escolas em profusão, empregos sociais, acesso pleno à cultura, ao saber e à dignidade. Formularíamos e tocaríamos projetos – propostas efetivas de mudança do horizonte social brasileiro.
Não é possível aceitar que uma parte imensa da população brasileira viva em condições insalubres subumanas, ignorar o nosso nível de apodrecimento social, sobretudo quando imensas parcelas desta doença social está logo ali, entre a Zona Sul e o aeroporto Internacional do Galeão. Ou está um pouco adiante, ao redor do sistema de captação de água do Guandu, o caldo de esgoto fétido que sai das torneiras de toda a cidade.
Alguém vai logo perguntar – mas por quê raios esta gente condenada à miséria mais degradante não reage? Ou por quê os que têm casa, teto e livros não agem? A única resposta possível está numa palavra: escola. Quer dizer, falta de escola. Somos uma multidão dos que não sabem e dos que sabem mas não sabem como agir. É o casamento da inação com o desespero.
Como assim? Pois é – aos desfavorecidos, importa oferecer ferramentas de ação social efetiva, ferramentas de transformação da vida. Formação para o empreendedorismo, crédito fácil popular, escolaridade profissional consistente. Para os estabelecidos, é urgente demonstrar a condição da sociedade como conjunto articulado, totalidade – cada pouco que se faz soma para o muito. Ninguém deveria ser feliz enquanto uma criança morre de fome ou dorme na rua.
E o teatro? O que fazer no teatro? Acredito que a era do teatro de denúncia, de exposição de cenas de miséria no palco, se esgotou – precisamos entender o profundo vazio da alma brasileira. São mais do que meio século de teatro social e nada mudou.
Ou melhor – mudou para muito pior. Se nos anos cinquenta e sessenta havia uma favela romântica, colorida, sambista e risonha, a partir dos anos setenta a expansão do crime e da contravenção em geral mudou radicalmente o cenário. As peças sociais dos anos 1950 hoje soam como páginas de absurda ingenuidade.
Vale, então, pensar e trabalhar ao redor desta ideia de fortaleza vazia, recusa da ação, ausência do princípio de estruturação inerente ao homo faber. No máximo, esta potência, aqui, aflora como manifestação particular, pessoal, de inventiva criatividade. O desfile das escolas de samba é uma das maiores provas do fato. Mas fica a pergunta inquietante: o povo não faz a escola de samba, ele é feito por ela. Alguém faz a escola de samba para o povo sambar e criar…
Uma peça estreou ontem online – teatron legítimo – e aponta para este universo urgente. Desnuda um pouco da barra pesada que é ser brasileiro. Trata-se de uma tragicomédia histórico-digital: De Bar em Bar, de Rogério Corrêa.A concepção geral do espetáculo, sob a direção de Isaac Bernat, aponta o futuro – toda a narrativa foi pensada como linguagem online.
As quatro apresentações programadas acontecerão a partir de quatro locais diferentes, com imagens estruturadas especialmente para sacudir a percepção do espectador em relação à História e ao presente. Para tanto, optou-se por uma linguagem híbrida – um lugar de encontro entre teatro, cinema, televisão, design de imagem.
A equipe reúne nomes de larga experiência, aptos para mergulhar na aventura – Thiago Sacramento, diretor de imagem, videomaker e artista gráfico, dialoga com a direção de arte de Doris Rollemberg e a direção musical de Charles Khan. A atuação conta com Letícia Isnard, Léo Wainer, Ângela Rebello e Thadeu Matos – nomes tarimbados em matéria de ser-Brasil.
A discussão de linguagem proposta interessa muito, não dá para perder. Mas, além do avanço diante dos desafios artísticos e técnicos do presente, há de saída uma sintonia sofisticada com a História do Teatro – segundo o autor, o texto foi inspirado pela peça Kennedy’s Children, de Robert Patrick.
E este texto foi o mote de criação da importante montagem Os Órfãos de Jânio, de Millôr Fernandes, direção de Sergio Britto, em 1980, rascante inventário da ruína humana brasileira nos anos 1960/1970. Em 2001, a peça foi recriada em São Paulo pelo Grupo Tapa, sob a direção de Eduardo Tolentino.
Há, portanto, também, logo se deduz, um atravessamento histórico – a História é o grande personagem oculto da trama, a sua mão tece os fios humanos esgarçados. Nos diferentes momentos focalizados nas peças, o tema profundo é a atitude e a disposição interior do ser diante do poder. Trazer para a cena a memória do final do ciclo militar, do começo da Nova República, escolhidos por Millôr, pode ser um convite decisivo para tentarmos entender o dilacerante drama brasileiro atual.
Na peça atual, a ação acontece no dia 23 de junho de 1996, o dia do assassinato de Paulo César Farias, uma jogada política estratégica para a definição do jogo do poder no país. Na cena, quatro personagens comentam, através de monólogos, a Era Collor e o impacto dos fatos da época em suas vidas. Portanto, não dá para perder: tentar olhar os olhos da História é tarefa urgente hoje.
Em resumo, não perca de jeito nenhum. A História em cena, impregnada de perguntas a respeito do fazer humano, parece ser uma contribuição fundamental para a crise de hoje. Os olhares para os tempos recentes trazem esta pontada aguda: temos sobrevivido de barra em barra. E não contamos com qualquer sinal de alívio no horizonte. Sobrevivemos.
Sobrevivemos por sermos ocos. Então, que venham muitas peças nesta linha, desligadas dos retratos de superfície, focadas na busca de uma compreensão da sensibilidade profunda brasileira. Quem sabe alcançamos, um dia, afinal, algum humano preenchimento.
FICHA TÉCNICA
DE BAR EM BAR
Texto e Idealização: Rogério Corrêa
Direção: Isaac Bernat
Direção de Imagens e Transmissão Ao Vivo: Thiago Sacramento
Elenco: Ângela Rebello, Léo Wainer, Letícia Isnard e Thadeu Matos
Direção de Arte: Doris Rollemberg
Direção Musical / Trilha Sonora: Charles Kahn
Projeto Gráfico: Dante
Assistente de cenografia: Maria Clara Almeida
Assistente de edição e Transmissão Ao Vivo: Joana Guimarães
Edição de Vídeos e teasers: Augusto Rodrigues
Assessoria de Imprensa: Cristiana Lobo / Círculo Comunicação
Fotos: Renato Mangolin
Produção Executiva: Renata Campos
Direção de Produção: Juliana Mattar
Realização: Transa Arte e Conteúdo
Gênero: Tragicomédia histórico-digital
Duração: 40 min (debate posterior com + 20 min)
Classificação Indicativa: 16 anos
Governo Federal, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através da Lei Aldir Blanc e Transa Arte e Conteúdo.
SERVIÇO:
Apresentações: YouTube, dias 14, 15, 21 e 22 de março, (20h).
Bate-papos:
Dia 14/03
Convidado: Guilherme Terreri / Rita Von Hunty
Mediação: Rogério Corrêa
Dia 21/03
Convidada: Marcia Zanelatto
Mediação: Thiago Sacramento
* Os bate-papos acontecem logo após as apresentações
Oficina de dramaturgia:
O projeto oferece ao público três oficinas online e gratuitas de dramaturgia com o autor Rogério Corrêa.
Dias 16, 19 e 24 de março, às 17h, pelo app Zoom.
E-mail de inscrição para oficina de dramaturgia: debarembarteatroonline@gmail.com
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