Teatro sem teto e sem capital
Uma notícia de grande impacto sacudiu a semana. No entanto, não repercutiu. Deveria ter provocado um clamor na cidade. Duas salas do Teatro Leblon – Tônia Carrero e Marília Pêra – fechadas e à venda há bastante tempo, vão ser ocupadas por uma igreja.
Segundo o texto dos jornais, a terceira sala, Sala Fernanda Montenegro, permanece com destinação indefinida. Quer dizer, será vendida igualmente, mas o feliz comprador não foi divulgado. Ao que tudo indica, vai rezar no mesmo lote.
A simples leitura dos nomes das salas causa espanto. Afinal, o pequeno Teatro Bibi Ferreira, em Botafogo, também foi vendido – foi transformado em clínica veterinária. A situação lança um véu sombrio sobre o destino das grandes estrelas modernas.
Apesar de batizadas com os nomes de grandes divas icônicas, para dizer o mínimo, as salas se revelaram voláteis, desapareceram sem deixar rastros. O teatro e as suas divas precisam ser tão perecíveis?
O fato aciona uma espiral de pensamento forte a respeito da vida teatral carioca. Segundo o texto, o valor de mercado em jogo somaria um total de 8 milhões. Não parece ser uma quantia estratosférica. Na verdade, é pouco dinheiro.
A classe teatral não dispõe deste valor para garantir a manutenção da atividade teatral? É preciso mendigar a intervenção do Estado para que a prática do teatro sobreviva? Por que insistir na política de obtenção de apoio por isenção fiscal quando as salas de teatro estão desaparecendo?
O que se desnuda, de saída, no centro da trama, é a precariedade econômica do mercado teatral carioca. E brasileiro, claro. Há um grande mistério por estudar na nossa história do teatro: a trajetória do capital. Trata-se de um campo um tanto hostil, pois os documentos contábeis desaparecem muito rapidamente.
O teatro permaneceu por longo tempo como atividade de um segmento informal – ou mesmo ilegal – da economia. Desde o século XIX, as empresas e os empreendimentos funcionaram por bastante tempo apoiados nas leis das atividades comerciais. A profissão e todos os compromissos envolvidos no palco não eram reconhecidos, nem regulamentados. O teatro não existia, era um tipo de fantasma social.
Ainda assim, o teatro mobilizava a sociedade, provocava os ânimos, sacudia as sensibilidades. A origem do capital teatral era híbrida – tanto provinha das bilheterias, como de ações sociais (festas artísticas de artistas ou empresas, rifas, centenários e outras comemorações de peças) e de extrações da loteria concedidas pelo governo.
Sim, o governo se eximia de formular uma política cultural efetiva para o teatro graças às loterias. Não parece espantoso que hoje aconteça ainda um debate acirrado para que se obtenha (no teatro) dinheiro de taxação… das loterias…? Andamos sempre para trás?
Logicamente a bilheteria contava muito por causa do tamanho dos teatros, os grandes teatros à italiana do século XIX. Um detalhe importante: segundo declaração de Walter Pinto (1913-1994), o grande mago das revistas, rei da Praça Tiradentes, nenhum teatro com menos do que 800 lugares pode ser autossuficiente. Isto desemboca numa conta simples – abaixo deste número, o teatro se obriga a captar recursos fora do seu nicho para se manter. Ou melhor: para sobreviver. A arte necessita drenar recursos da economia em geral para se garantir como atividade econômica.
Assim, o chamado teatro moderno, praticado no Brasil a partir dos anos 1940, nasceu sob uma contradição paradoxal. De um lado, a nova poesia, delicada, intimista, sutil, demandava espaços acolhedores e envolventes – quer dizer, pequenos. Os novos teatros passaram a ter entre 300 e 400 lugares. Ou menos, bem menos. Portanto, economicamente inviáveis, digamos.
Do outro lado, porém, o teatro novo queria ser independente. Mais, até: queria ser de ruptura, inventivo, autoral. Com frequência, teatro de pesquisa, à frente do próprio tempo. Se possível, em choque com a época, furioso, agressivo. Poética de confronto. Mas… qual o público interessado neste programa? Jovens, estudantes, intelectuais, artistas – gente sem dinheiro. Uma parcela reduzida da população. E o topete arrepiado devia se submeter ao pedido de mesada ao Estado?
Na França, grande inspiradora da cena brasileira, quando Jean Vilar (1912-1971) levou adiante o projeto do Théatre National Populaire, em 1951, revendo o projeto de Gémier (1863-1933), cunhou a ideia de um teatro de elite para todos. Ou melhor – a oferta universal de um teatro de qualidade como se fosse um serviço publico, semelhante ao abastecimento de gás.
O sonho era levar o mundo precioso da cultura para o cotidiano dos trabalhadores; logo se vê, nada de agressão… A casa sempre teve mais do que 800 lugares e se tornou peça fundamental da política cultural do Estado. Um parênteses importante – Brecht veio depois, demorou bastante para entrar na França. O debate acerca do popular ainda omitia a questão brechtiana.
O teatro moderno brasileiro, ao contrário, não conheceu nunca nada comparável. Nenhum coletivo ou personalidade conseguiu aqui a criação de teatros públicos estáveis. A ausência foi fatal para a cena brasileira. Rompeu-se radicalmente com o velho teatro dos grandes atores, uma arte capaz de se estruturar econômica e financeiramente com alguma desenvoltura, sem que se conseguisse estruturar algo forte em seu lugar. Como se financiaria o novo teatro?
No teatro antigo, figuras como Leopoldo Froes (1898-1932) e Procópio Ferreira (1898-1979) fizeram fortuna; aliás, reza a lenda que Procópio acumulou e dissipou três fortunas, para morrer na pobreza. Mas, este capital, ao mesmo tempo em que fulgurava como fortuna pessoal e resultava em restritos investimentos na produção, era absenteísta. Não morava no palco, mas nos bolsos pessoais.
Quer dizer, existiu uma velha máquina teatral de fazer dinheiro, porém ela não criou raízes profundas para a estruturação da atividade e o capital gerado não foi transmitido, como saldo ou como saber, para as novas gerações. Walter Pinto não era proprietário do Teatro Recreio, que era o seu teatro, foi obrigado a assistir de braços cruzados a demolição injustificável da casa.
Há neste cenário todo um colorido desalentador para quem ama teatro. Na realidade, existe no Brasil um fosso profundo separando teatro e sociedade, como se os laços outrora tecidos para atar as duas partes, frágeis, tivessem sido rompidos. Uma hipótese para a criação do abismo?
Provavelmente o teatro passou a insistir demais na encenação ou na proposição de grandes revoluções pessoais ou existenciais, para plateias com frequência carentes de pequenos toques de poesia. O teatro da violência, preocupado em sacudir os ânimos e instaurar pequenas revoluções cotidianas na vida da plateia, pode soar irritante ou ridículo para plateias massacradas por oito horas de trabalho diárias envolvidas em caos urbano.
Outro tanto de impopularidade nasce do hermetismo e do intelectualismo esnobe ocioso. O teatro tornou-se um código de iniciados, um ato de comunhão interessante exclusivamente para uma parcela da classe média: chegou a virar, por vezes, um simples produto para ostentação.
Então, todo o problema pode ser resumido numa equação singela. Basta contar, considerando todos os teatros do Rio, quantos lugares existem na plateia carioca. Depois, é só apurar a equivalência deste número X com o total da população carioca em idade compatível com a ida ao teatro. Não é necessário incluir a população flutuante, os turistas e cidadãos das cidades vizinhas.
O resultado permite perceber a qual percentual dos habitantes da cidade o palco pretende se dirigir, supondo-se que haja sempre lotação esgotada nas casas de espetáculo. Garanto que os números apurados serão chocantes. Demonstrarão algo triste, mas histórico, a superar com urgência: o tal abismo, enorme, separando o palco da população da cidade. Vivemos num vazio teatral assustador.
Como superar o problema? Com certeza não será com singelos discursos de defesa das leis de fomento, no final de cada espetáculo. Quem vai ao teatro em geral gosta de teatro, aprova as leis e sabe o bastante a respeito. O foco é quem está lá fora.
Para vencer o abismo e alcançar o jogo social, são necessárias ações políticas urgentes. A primeira de todas é deter o processo de fechamento dos teatros. É preciso pressionar os governos do Estado e do Município para criar leis de redução de impostos das casas de teatro, de interdição de demolição e de mudança de atividade fim, fixar a obrigação de construção de teatros em shoppings e centros comerciais. Importa também obter a concessão de linhas de crédito com juros baixos para coletivos e artistas interessados em construir os seus teatros.
Uma outra frente, a ser desenvolvida a partir das associações de classe, especialmente a partir da APTR, é a implantação de políticas contínuas de formação de plateia. Além da inclusão do ensino de Literatura Dramática nas escolas de primeiro e segundo grau, importa ter a visita permanente das escolas aos teatros do bairro ou adjacências, com ou sem peças para ver. Os estudantes das escolas de teatro podem ser cooptados para bolsas de trabalho com este fim.
Finalmente, logo ali, na Argentina, acontece uma proposta de dinamização da vida teatral, a Escuela de Espectadores de Buenos Aires, criada pelo crítico e historiador Jorge Dubatti. Trata-se de algo tão forte que se espalhou pela Argentina e já se disseminou por aqui, ainda que o Rio permaneça sem contágio.
A ideia se diferencia dos antigos clubes de teatro difundidos entre nós, mais mercantilistas, por ser um empreendimento cultural. O foco é muito objetivo: transformar a ida ao teatro numa experiência cultural privilegiada. Isto significa conhecer efetivamente as peças e os autores, os movimentos teatrais e a história do teatro. É bem mais do que ir ao teatro para ver o ídolo da novela das oito, numa peça enigmática, para depois posar de gente bem nas rodas sociais…
Talvez, se existisse uma verdadeira política de teatro, proposta pela classe teatral e contemplada pelos governos, mesmo que sob pressão, fosse possível atenuar algo da imensa selvageria nacional, lutar contra a existência de um território continental que insiste em ser bárbaro. É bárbaro no pior sentido da palavra, o mais truculento, único destino para os países que insistem em não ter política cultural de Estado.
Diante da “política ignorantal de Estado brasileira”, parece natural o fechamento de teatros batizados com os nomes de grandes deusas da cena nacional. Afinal, quem se importa? Para quê honrar os nomes e a arte de Tônia Carrero, Marília Pêra, Fernanda Montenegro? Serão estrelas eventuais destinadas a desaparecer no vazio, o vazio em que o teatro, outrora bela religião social, finalmente se tornou. Então, adeus aos palcos, que venham a nós os templos.
A celebre foto de Procópio Ferreira, em Deus lhe Pague, a imagem do mendigo esmolando na porta da igreja.
SERVIÇO
A coluna, em virtude de mudança da biblioteca da autora, entrará em férias e só retornará no dia 23 de outubro.