O sonho do poeta
Uma aragem fina varre a superfície do chão, cacos de poesia bailam ao seu redor. Sua alma terrestre entra em êxtase. Um banho de luz envolve o seu corpo. De repente, nada da vida corriqueira conta: só o que importa é esta forma delicada de levitação. O céu se tornou o mundo.
Veja bem – o mundo não foi elevado; foi o céu, tão distante, que desistiu de manter a sua fria indiferença e lhe abraçou. Portanto, o encanto só vai cessar por decreto celeste. E, encerrada a magia, você voltará a ser você. Ou não. Você será outra pessoa. Será?
Algumas pessoas afirmam objetivas que esta experiência arrebatadora define a arte pura. Ela seria um transe definitivamente alheio ao mundo comum. Para conseguir tal efeito, já se discutiu até a qualidade das diferentes artes, na busca de definir quais deveriam figurar como mestras incontestes desta forma de elevação.
Para este raciocínio, quando, para disparar o devaneio, algum elemento da vida corrente surge na fatura da obra, a arte deveria ser definida como impura. Este seria o caso do teatro, traído por se prender a fatos cotidianos. Para os defensores do reinado senhorial dos sons, a música seria a única arte cênica digna deste nome, desde que não se prendesse a banalidades corriqueiras. E a inferioridade existiria também quando requintados sons envolvem os corpos em volúpia pelos ares. Neste rodopio da ideia, o balé, que conseguiria com a matéria dos corpos disparar o ato do arrebatamento, deveria ser rebaixado como o teatro.
A literatura, dileta filha do pensamento, seria a mais elevada porta de elevação pela arte. Bom, antes que a balburdia comece, é fácil instalar o silêncio. As antigas discussões cessam, perdem força e poder de eco, quando um valor indiscutível, bem alto, se levanta. Por exemplo? Shakespeare. Basta o nome assim, simples, direto. Outrora ele foi chamado de bárbaro. Como cogitar a possibilidade de não definir Shakespeare como fina arte?
Pois bem, confie – se existe dúvida, vai um conselho: corra até a Cidade das Artes Bibi Ferreira e experimente a ousadia de ter o bardo envolto em notas de um conhecido russo ditando os passos e os gestos de uma gente requintada do balé. Isto mesmo: é quase uma salada de arte, palavras, sons e corpos. Ela reúne, de saída, Shakespeare (1564-1616), Tchaikovsky (1840-1893), Ana Botafogo, Marcelo Misailidis e um fulgurante elenco de bailarinos.
ST -Tragédias (Romeu e Julieta/Othello) é um espetáculo marcado pelo desejo de fazer arte no nosso tempo, este tempo tão necessitado de poesia. Assim, ele trafega numa fronteira difusa entre as artes, combina balé, dança, música, teatro, criação visual. A obra comemora os 30 anos de parceria de Ana Botafogo e Marcelo Misailidis.
Para marcar a data, eles escolheram realizar um trabalho ligado à sua trajetória. A coreografia Romeu e Julieta foi criada por ele para um duo com Ana Botafogo há precisamente 20 anos. Nesta versão de agora, os intérpretes serão os primeiros bailarinos do Royal Opera House de Londres, Matthew Ball e Mayara Magri, que dançam a coreografia pela primeira vez.
Já Othello, o Mouro de Veneza atualiza a pauta da relação poética de trabalho, para, com certeza, motivar uma nova comemoração daqui a algumas décadas, pois trata-se de criação inédita de Marcelo Misailidis. Na ficha técnica generosa estão reunidos 16 bailarinos, nomes aclamados da cena do balé – como a primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Marcia Jaqueline.
Pois bem. Há um traço muito ousado na proposta, um convite para pensar definições de arte. De saída, há o tema do encontro de linguagens, prática tradicional do balé, mas que já motivou áridas discussões a respeito do tema da identidade artística. Surge aqui também um outro ponto, o desejo de diálogo poético com duras realidades cotidianas do presente.
Aparecem, assim, dois sintomas de contaminação da arte, dois indícios para o debate a respeito da condição de arte impura. Primeiro, a busca de produção de uma linguagem na qual o híbrido funciona para gerar uma forma contemporânea. Ao mesmo tempo, a cena, através da união da estética clássica com múltiplas referências de arte, pretende lidar com sentimentos humanos dilacerantes, vivências contraditórias, cegueiras, radicalidades, pequenas opressões devastadoras, fluxos sombrios inclinados a liquidar o amor. Quer dizer, o discurso híbrido da arte teria precisamente como sentido formal e temático dar conta da vida corrente.
Em resumo, o projeto pretende lidar com uma trama tensa de fluxos verbais e musicais, materializada em movimentos de corpos jovens, filhos de um tempo violento, no qual a brutalidade deveria ter sido superada. O quadro sugere a revelação de uma época em que, tanto tempo depois, o ódio contra a vida ainda impera. O programa, então, oferece a chance de ver um trabalho novo da dupla, porém o caso é mais requintado. O cálculo reforça a visão de um conceito de arte adequado ao presente e indica a chance de celebrar hábeis intérpretes poéticos da violenta sociedade brasileira.
A oportunidade soa imperdível: Ana Botafogo e Marcelo Misailidis foram partners de sucesso, arrebataram plateias ao longo de suas carreiras, se destacaram em trabalhos de criação de coreografias. A sua produção atual permite o reconhecimento de sua obra como um gesto de afirmação da arte brasileira.
Muito além da extensa ficha de trabalhos realizados, Ana Botafogo e Marcelo Misailidis estão trazendo para o palco um ato sofisticado de arte contemporânea. Quer dizer – não se trata apenas de um mundo envolvente de criação poética que desaba sobre nós, na plateia, e nos leva para um lugar transcendental. Ao contrário: aqui a rotina miúda pode ser tocada por valores requintados e, assim, fazer com que cada um olhe de volta a vida sob a ótica da poética.
Complicado? Será? O mundo atual garante uma identidade diferente para o universo das artes, cada vez mais ligada à vida e ao cotidiano das pessoas. A arte já foi o lugar do inefável absoluto. Refém das engrenagens do tempo, a arte passou a dialogar com a esfera de produção industrial e a integrar as lides do mercado. A mecânica da sociedade industrial trouxe a possibilidade do lazer universal e o reconhecimento da necessidade diária da arte. Mas, ainda assim, um debate quente ainda envolve a própria definição de arte.
Para alguns, formas híbridas, populares ou pedestres não ganhariam a chance de reconhecimento – vistos hoje como espíritos reacionários, conservadores, eles defendem uma hierarquia das artes, nas quais o continente excluído é enorme, imensurável. A pergunta caminha por um terreno estreito – a partir de que conceito uma obra deixaria de ser ou não ser arte, seria arte menor ou seria grande arte?
A dança, filha natural do corpo, com os limites impostos por esta matéria tão objetiva, pode motivar grandes discussões, realidade comum a todas as formas de arte nas quais a presença e a corporeidade são o ponto central da expressão. Algumas vezes, se cogitou até mesmo propor uma hierarquia dentro da dança e do teatro. Ao lado de manifestações qualificáveis como “arte”, outras seriam apenas “expressões”, construções imediatas e singelas demais. Logicamente, dentro deste pensamento, as artes populares padecem o risco da maldição.
Se a dança e o teatro mal ou bem conseguiram se impor na escala das artes, nem que tenha sido graças a caronas tais como o texto ou a música, nem todos os artistas contaram com sorte semelhante. O caso mais curioso dentre todos parece ser o circo – lá várias modalidades de artistas usam os corpos em desafios reais, concretos, sob cálculos estéticos, para provocar efeitos imediatos. Isto seria arte? A única figura do circo devotada à representação, portanto, talvez, ao fato de arte, para o pensamento restritivo rigoroso inclinado à exclusão, seria o palhaço. Os demais, presos ao adestramento da realidade, lidariam apenas com formas técnicas de expressão. Quer dizer, não seriam artistas.
Porém, o mundo anda. O debate pode ganhar um tom inédito se considerarmos o trabalho A Louca das Frutas, da artista argentina Painé Santamaria, radicada no Brasil desde 2013. A partir de sua especialização em malabarismo e antipodismo na Escola Nacional de Circo de Rio de Janeiro, Painé tornou-se uma artista de perfil peculiar, pois a prática da palhaçaria foi combinada com habilidades técnicas diferenciadas, em especial o malabarismo e a dança. Profissional inquieta, ela participou da criação da Companhia de humor, música e malabarismo Las Martas (2014-2021), integra como musicista o bloco Cumbia Calavera, é multi-artista na Cia. feminina “Las Fanfarronas”, figura como palhaça na organização Palhaços sem Fronteiras Brasil e é co-produtora dos Varietes Ninguna Costilla, em São Paulo.
As suas apresentações, para crianças e adultos, como recomenda a rotina circense, acontecerão do dia 16 de julho ao dia 07 de agosto em diferentes pontos da cidade de São Paulo, com entrada franca. O espetáculo participa da 6° Edição do Programa Municipal de Fomento ao Circo para a Cidade de São Paulo, da Secretaria Municipal de Cultura.
A surpresa da cena nasce da aposta no inusitado – Painé Santamaria faz malabarismo com objetos não convencionais, tais como maçãs, abacaxis, melancias. Ao lado da demonstração técnica, o texto explora sob tom humorado as riquezas culturais da América Latina, com destaque para a música, os ritmos e a possibilidade de uma dança excêntrica.
A rigor, uma salada autêntica – aliás, um pouco o cálculo deste texto diante da multiplicidade de formas da arte no nosso tempo. A natureza da arte é a liberdade: por isto se pode muito bem convidar Shakespeare para namorar Tchaikovsky e o encontro resultar em corpos que dançam uma trama outrora apenas palavras, depois sons musicais, para concluir passeando por artes de circo.
Talvez o debate essencial não seja exatamente a respeito do que é a arte e do que a arte nos faz, se existe arte pura ou impura, se a arte precisa ser uma elevação transcendental capaz de nos retirar em transe do mundo. Querendo ou não, a arte impregna a nossa vida, constitui parte estruturante da nossa era. Não dá para escapar.
A arte não está além, ela está por toda a parte. Envolve o nosso olhar. Está nos desenhos, formas e cores cotidianos à nossa volta, nas roupas, na calçada, em todos os objetos. Está na atmosfera de sons e ruídos ao nosso redor. Está nos nossos gestos, na nossa fala. Tente por um instante viver sem qualquer resquício de arte: impossível.
Então o debate surge bem outro: importa saber o que nós fazemos da arte. Como tratamos os nossos artistas. Como retribuímos a poesia nossa de cada dia, que nos alimenta e nos informa as graças imprescindíveis para lidar com os sentidos podres da realidade. A pergunta não interessa apenas ao artista ou ao poeta. Não é o sonho do poeta.
Afinal, não poderemos ir adiante sem arte. Então, perguntamos, para que o nosso trajeto ao longo dos dias, o nosso percurso pela vida, realize esta condição que nos cerca: seja poético. Há um outro nome possível para este encontro entre a materialidade e o absoluto – amor. E quem, afinal, não gosta de viver em estado de amor?
ST -Tragédias (Romeu e Julieta/Othello)
FICHA TÉCNICA
Coreografia e concepção artística: Marcelo Misailidis
Codireção: Ana Botafogo
Romeu e Julieta (bailarinos):
Julieta: Mayara Magri
Romeu: Matthew Ball
Othello (bailarinos):
Othello: Edifranc Alves
Desdemona: Marcia Jaqueline
Iago: Marcio Jahú
Emília: Thais Danello
Brabancio: Joao Wlamir
Doge: Areias Herbert
Cássio: Cristian Aguilar
Rodrigo: Igor Arvelos
Bianca: Liana Vasconcelos
Ludovico: Rodolfo Saraiva
Guardas: Aloani Bastos, Ágatha Bull, Bárbara Várady, Jessica Lessa, Marcelle Gomes, Rafaella Brum
Standins: Thais de Carvalho e Anyel Aram
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Figurino: João Paulo Bertini
Cenografia: Marcelo Misailidis
Assistente de direção: Aloani Bastos
Direção de produção: Rômulo Rodrigues
Produção executiva: Romero Monteiro
Visagismo: Domitila Ferreira
Criação do Lenço: Larissa Lessa – Lensoul
Cenotécnicos: Leandro Assis, João Lopes e Derô Martin
Equipe de palco: Manoel Puoci e Murilo Oliveira
Fotografias: Wagner Brum
Programação Visual e mídias sociais: Eliomar Bonavita
Marketing cultural: Gheu Tibério
Assistente de marketing cultural: Paula Rêgo
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
Serviço:
Cidade das Artes Bibi Ferreira – Grande Sala
Av. das Américas, 5300 – Barra da Tijuca
Temporada: 15/07/22 a 17/07/22
Horários: Sexta e
Sábado – 20h30
Domingo – 18h
Ingressos: A partir de R$ 20,00 (meia)
Duração: 80 Minutos
Classificação Etária: 12 Anos
A Louca das Frutas
FICHA TÉCNICA:
Intérprete, Ideia Original: Painé Santamaria
Direção Cênica, dramaturgia: Leticia Vetrano
Direção Musical: Claudia Rivera
Figurino: Alicia Arteaga – Macussa
Cenografia: Guilherme Gasparello e Painé Santamaria
Criação e Técnica de Iluminação: Bruna Isumavut
Técnica de som: Rebeca Montanha
Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini
Identidade Visual: Lucas Fontana
Registro Audiovisual: Vibrante Filmes
Trilha original:
Criação, piano e flauta: Claudia Rivera – Sax: Tetê Purezempla – Trompete: Gabriel Barbalho – Contrabaixo, edição de som e mixagem: Tomás de Oliveira – Percussão: Fernando Lima – Masterização: Florencia Saravia-Akamine
Produção Executiva: Gisele Tressi
Produtora: Danny Passos
Gestão Cultural: Belic Produções
Social media: Pokyra Kaiowá
SERVIÇO:
Duração: 45 minutos
Classificação Livre – Grátis
Temporada de Estreia: 16 de julho a 07 de agosto de 2022
Agenda completa:
Quando: 16 e 17 de julho de 2022
Horários: sábado às 16h e 19h / domingo às 16h e 18h
Teatro Flávio Império
Endereço: Rua Prof. Alves Pedroso, 600 – Cangaíba, Zona Leste de São Paulo – SP, 03721-010
Telefone: (11) 2621-2719
Quando: 21 de julho de 2022 (quinta-feira) – Horários: 20h
Onde: Centro Cultural Tendal da Lapa
Endereço: Rua Guaicurus, 1100 – Água Branca, São Paulo – SP, 05033-002 – Telefone: (11) 3862-1837
Quando: 31 de julho de 2022 (domingo)
Horários: 14h
Onde: Feira Kantuta
Endereço: Bairro do Brás – São Paulo – SP
Quando: 04 de agosto de 2022 (quinta-feira)
Horários: 13h30
Onde: Casa de Cultura Vila Guilherme – Casarão –
Endereço: Praça Oscár da Silva, 110 – Vila Guilherme, São Paulo – SP, 02067-070 – Telefone: (11) 2909-0065
Quando: 07 de agosto de 2022 (domingo) – Horários: 14h
Onde: Largo do Rosário – Bairro da Penha de França – São Paulo
Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini