Heróis e vilões
Vai lá, confesse – você tem um herói querido para chamar de seu… Pode ser um herói histórico nacional coletivo. Ou até histórico, nacional, mas, digamos, particular. Bom, talvez você admire também algum grande vilão.
Claro, é muito mais fácil confessar os nossos heróis, ainda que os tempos atuais, profundamente críticos, possam passar a tesoura em alguns escolhidos. Afinal, de que vale a vida sem boas emoções? Estátuas postas abaixo estão em voga por todos os cantos. Pode ser a estátua do seu herói…
Heróis, vilões… O que torna tais figuras necessárias? Elas se projetam não apenas a partir da eleição do homem comum. Nem sempre são eleitas, muitas vezes são impostas. Por que não existe uma terra digna de seu nome, se um grande vulto não esclarece um pouco da razão de ser do país?
É caso sério. Um país não sobrevive sem heróis e cada cidadão devia ser estimulado a percorrer a galeria das grandes personalidades nacionais em busca de um nome para chamar de seu personagem querido inspirador. Com certeza a História, uma bela ciência inexata, já cansou de ver ídolos nacionais aclamados hoje e banidos amanhã. São tantos exemplos!
Um caso aqui do Brasil parece bem saboroso: é o de Tiradentes – decididamente uma figura cercada de controvérsias. Executado no reinado de D. Maria I, a avó de D. Pedro I, o gajo não se tornou Mártir da Independência com a proclamação do rompimento do pacto colonial… Ia pegar mal para a família governante, responsável por sua morte e esquartejamento. Só com a República foi aclamado como o Inconfidente – e convenhamos, com muita ênfase, justamente para desqualificar o Império.
Portanto, finas tramas políticas envolvem a criação e o culto de um herói. Com frequência, nas artes, acontece o mesmo. Situações ditadas pela política da linguagem reforçam o refletor sobre alguns eleitos e mergulham em trevas os deserdados. Muitos nomes preciosos para a vida da arte atravessam os dias como se fossem transparentes. E desaparecem.
Várias injunções políticas se articulam para elevar determinado nome ao grande estrelato; acontece, neste jogo, de alguns grandes gênios da arte deixarem de obter o reconhecimento coerente com a sua força de criação. Também há um outro quadro patético: a geração seguinte trata de demolir impiedosamente os grandes mitos da geração anterior.
Portanto, ao lado das correntes dominantes de opinião, a rebelião cidadã devia agir, lançar-se livre na aclamação dos seus eleitos. A oportunidade não deve ser desperdiçada. Assim como cada cidadão devia aproveitar algo do seu tempo livre para estudar e se perguntar a respeito dos seus heróis nacionais, cada artista de teatro deveria se preocupar em construir uma visão histórica dos astros absolutos da cena, na sua visão, para idealizar os seus mitos pessoais. Ah, o campo é fértil.
Saber da arte de Victor Porfírio de Borja, ator português emigrado para o Brasil, pode ser uma escolha. Não se sabe a data de seu nascimento, nem de sua morte – sabe-se apenas que foi ator de projeção entre 1787 e 1852, primeiro em Portugal, depois aqui. Foi senhor de uma arte forte o bastante para marcar a vocação de João Caetano (1808-1863), seu discípulo. Assim começa a lista… E vai longe.
A receita desenhada tem um cálculo incendiário – pretende ressaltar a necessidade de construção da autonomia do cidadão. Nestes tempos em que se pode ter a chance de escrever textos por IA nos quais o convite ao não-pensamento pode ser arrasador, tramar procedimentos para o cultivo diário da liberdade de ideias parece fundamental.
Pois, por aqui, o autoritarismo e o massacre do outro, forças estruturais da sociedade, parecem ter raízes profundas demais, difíceis de erradicar. A coisa é pior do que tiririca em jardim abandonado, quando os jardineiros precisam até pensar em trocar a terra, para se livrar da praga…
A rigor, falar e pensar no século XIX parece urgente. Victor Porfirio de Borja escreveu um pequeno folheto – Plano para a edificação de um teatro publico – propondo soluções para a reconstrução do Real Teatro de São João depois do incêndio de 1824. E nem assim foi aclamado como um herói de forte popularidade.
Ou seja: ele registra um padrão de ação que se tornou norma na História do Teatro Brasileiro. Mas foi em vão! O ator, aqui, século após século, cria, interpreta, empresaria, lidera trupe, arregimenta a classe para causas nobres… Trata-se de um ser dedicado ao jogo social, porém imerso numa imensa solidão. Se o padrão persiste, onde visualizar os entraves históricos que precisam ser transformados? De onde eles vieram?
Temos um autoritarismo de origem muito denso – se a independência foi aclamada em 1822 (? Será? Mas as lutas armadas não persistiram até 1823?), a primeira constituinte foi instalada e dissolvida em 1823… A primeira constituição, outorgada, surgiu em 1824, instaurou a essência do poder autoritário, com o Poder Moderador, do Imperador, temperando os três poderes desejados. Nascemos sob um retrocesso do pensamento liberal.
Na mesma época, reinava sobre as almas portuguesas um padre sinistro, colonialista, autoritário, conservador ao extremo, o padre José Agostinho de Macedo. Os seus textos contrários ao liberalismo e à Revolução Francesa impressionam por sua inteligência e cruel falta de humanidade.
O debate é profundo, denso, inquietante. Visitar as coordenadas em jogo surge como procedimento básico para lutar pela atualização das formas nacionais de ser. Não se trata de intervenção rápida e de superfície, mas de trabalho árduo, capaz de fazer perguntas contundentes à arquitetura da alma nacional.
Ao lado da estrutura rígida e autoritária da matriz do poder na sociedade brasileira, existe a prática prolongada da escravidão e a persistência de mecanismos coloniais de organização da vida. Nascemos e vivemos sobre um chão pródigo em práticas perversas. Devastadoras. O exercício da escravidão prestou uma contribuição decisiva para consolidar uma prática social de aniquilamento permanente do outro. Um dos seus instrumentos mais perversos é o racismo estrutural.
O cidadão brasileiro precisa ter a oportunidade de enfrentar matérias de reflexão a respeito deste emaranhado de formas sociais voltadas para a redução do humano. Só a visão clara destes entraves estruturais profundos pode nos levar a gerar uma sociedade nova, moderna, livre. E impulsionar verdadeiramente o índice de felicidade social.
O cálculo aparece faiscante em pauta na peça Para Meu Amigo Branco, adaptação do livro de Manuel Soares assinada por Rodrigo e Mery Delmond, estreia recente na Arena do Sesc Copacabana. Sob a direção de Rodrigo França, a montagem reúne clareza conceitual, beleza estética e ousadia (saudável) de linguagem.
A sala de aula de um branco ofuscante, organizada em semi-arena com muita habilidade, busca apagar a linha de separação entre o palco e a plateia. A opção não foi concebida de forma autoritária, nem esquemática – o que se pretende, apenas, é oferecer uma vivência teatral forte, direta, de um caso revelador da miséria humana nacional. Sobre a cena, paira uma nuvem de livros embranquecidos, um tesouro da cultura nacional, assinados por autores negros.
A trama gira ao redor de um caso de racismo numa escola. Uma menina de 8 anos sofre agressão verbal pesada de um colega por ser negra, mas o caso seria, para a autoridade escolar, apenas “coisa de criança”. A escola, pródiga na defesa de ideais supostamente elevados, não reconheceu a dor profunda da menina, não teve a iniciativa de acolher a vítima. Assim, o problema se apresenta sob dupla chave: o racismo aliado ao autoritarismo, portanto uma forma abissal de aniquilamento do outro.
Um elenco de atores fortes defende a proposta: Reinaldo Júnior, Alex Nader, Stella Rodrigues e Mery Delmond estão em cena. Stella Rodrigues assina um papel particularmente difícil, num desempenho arrebatador – ela catalisa a emoção da plateia na figura de uma professora esforçada e cheia de boas intenções, mas desprovida de percepção da crise social brasileira contemporânea.
Reinaldo Júnior é o herói da noite: materializa um homem sensível, densamente entregue à luta contra o racismo, porém disposto ao diálogo, à busca de uma inteligência social renovada. Cabe ao excepcional talento de Alex Nader o desenho do vilão – o pai engajado com a escola, progressista na superfície, profundamente reacionário sem o saber, blindado a qualquer possibilidade de transformação. Menos experiente, Mery Delmond alcança bom resultado no papel de mediadora entre os opostos.
É um espetáculo para ver e rever e, com ou sem mesa de bar depois, debater diretamente com o seu Eu interior. Assim como os cidadãos de um país precisam construir dentro de si um panteão de heróis para chamar de seu, assim o teatro deve, entre outros papéis, conduzir o público a pensar o melhor de si, construir o seu herói interior. Uma bela revolução interior pode ser favorecida pela peça. Afinal, a face mais macabra do autoritarismo nacional é o racismo. O seu poder corrosivo é de tal ordem que ele sobrevive em todos nós, à revelia de intenções, desejos e idealismos, sob a forma de racismo estrutural.
Quer dizer – não basta ter heróis dignos deste nome para louvar. E vilões vadios para desancar. Heróis e vilões só conseguem fazer algum sentido se surgem como resultados de um processo de pensamento límpido – será? No fundo, o desafio parece ser bem outro. É imprescindível erigir um castelo interior no qual as ideias figurem como belas alavancas para ajudar a mover a vida, para o seu melhor. A função mais requintada do teatro não seria exatamente esta?
Para dizer o mínimo, faça acontecer: vá ao teatro, veja a peça. Quem sabe você consegue desvendar um grande segredo… consegue derrubar o caminho fácil de servir mecanicamente aos poderes, ao se alimentar de mitos, construir lendas humanas para chamar de suas. Duvida? Pois é. O seu herói interior pode ser apenas um pensamento elevado, seu, sem nome, corpo ou forma humana, na verdade apenas uma forma ideal eficiente para colaborar com a marcha positiva do mundo.
Para meu amigo branco
Ficha Técnica:
Inspirado no livro de Manoel Soares
Texto: Rodrigo França e Mery Delmond
Direção: Rodrigo França
Elenco: Reinaldo Junior e Alex Nader
Atrizes convidadas: Stella Maria Rodrigues e Mery Delmond
Direção de movimento: Tainara Cerqueira
Cenário: Clebson Prates
Figurino: Marah Silva
Iluminação: Pedro Carneiro
Trilha sonora original: Dani Nega
Consultoria pedagógica: Clarissa Brito
Consultoria de representações raciais e de gênero: Deborah Medeiros
Fotografia: Afroafeto por Gabriella Maria
Identidade visual: Nós Comunicações
Assessoria de imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)
Contabilidade: Cristiano Geraldo Costa dos Santos
Produção executiva: Gabriel Garcia e Leticia Kaminski
Direção de produção: João Bernardo Caldeira e Alexandre Galindo
Coordenação administrativa: Paula Martinez Mello
Idealização e coordenação de produção: João Bernardo Caldeira
Realização: Oswaldo Caldeira Produções e Tiago Monteiro Cardozo
Serviço:
Gênero: drama
Temporada: De 27 de julho a 20 de agosto de 2023
Dias e horários: de quinta a domingo, às 20h
Local: Arena do Sesc Copacabana
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Informações: (21) 2547-0156
Lotação: 242 lugares
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 70 min
Bilheteria – Horário de funcionamento: Terça a sexta, das 9h às 20h;sábados, domingos e feriados, das 14h às 20h.